Dois meses de invasão russa da Ucrânia: caminha-se para uma nova (des)ordem mundial

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No início do presente mês de Abril, Mario Dragui, primeiro-ministro de Itália, dependente em cerca de 40% do gás russo, em declarações destinadas a pressionar a Alemanha a assumir uma posição sobre as suas relações com a Rússia, diz-nos que está disponível para avançar com o boicote europeu ao gás russo, independentemente do custo que isso venha a implicar, resumindo o problema da seguinte forma: “queremos a paz ou queremos manter o ar condicionado ligado?”.

Esta formulação do problema vem duplamente armadilhada. Primeiro, é feita uma falsa equivalência entre sanções e paz. Ora, as sanções que estão a ser aplicadas à Rússia não são um garante da paz. As consequências das sanções estão a recair sobre a juventude e trabalhadores russos e europeus, sob a forma de uma inflação galopante, contribuindo para o seu empobrecimento. Com a generalidade da esquerda tradicional entregue a projectos de conciliação com as elites que nos têm governado, o descontentamento popular está à mercê da extrema-direita e do seu projecto autoritário, nacionalista, racista e, evidentemente, bélico. Precisamente o contrário da paz e da cooperação entre os povos. E se expectativas havia de que a extrema-direita seria punida pelas suas relações com Putin, estas acabam de sair frustradas com os resultados eleitorais da Hungria e de França.

As sanções isolam e enfraquecem a economia russa, um dos grandes objectivos estratégicos das potências imperialistas ocidentais, mas não garantem a paz. Não é preciso socorrer-nos de grandes exemplos históricos. A actual invasão da Ucrânia foi antecedida de inúmeras sanções das potências imperialistas ocidentais sobre a Rússia, no decurso da ocupação da Crimeia, em 2014. Se as sanções anteriores não refrearam a escalada belicista, não temos porque acreditar que o actual aumento das sanções o possa vir a fazer.

Em segundo lugar, uma parte significativa e crescente da juventude, classes trabalhadoras e classes médias europeias está confrontada com a insatisfação das suas necessidades básicas e não com o sacrifício do supérfluo, como seria a supressão do ar condicionado. Dragui transforma as consequências do conflito na Ucrânia numa caricatura para esconder o que está verdadeiramente em causa, uma vez que, sob o sistema capitalista vigente, não tem como solucionar o empobrecimento e descontentamento generalizado que não seja pela via da escalada belicista.

Aquilo que Dragui está realmente a questionar é: queremos manter a hegemonia das potências capitalistas ocidentais, ou queremos continuar a alimentar o desenvolvimento de potências capitalistas concorrentes, tais como a Rússia ou a China? Esta é a questão que atravessa os nossos tempos e com a qual a burguesia ocidental se confronta.

A manutenção da hegemonia imperialista ocidental não tem sido, nem será pacífica. À disputa económica de recursos em várias nações da América do Sul, África e Ásia; às sanções económicas, comerciais e diplomáticas para travar o avanço das aspirações imperiais da China e da Rússia; à disputa militar imperialista de vários territórios no Médio-Oriente e Norte de África, junta-se, agora, uma guerra na Europa de Leste, sem fim à vista, e de consequências imprevisíveis. Estamos perante uma invasão, uma guerra de agressão da soberania nacional por parte do imperialismo chauvinista russo sobre a Ucrânia – nação dependente. Esta é uma guerra que resulta da disputa, do conflito latente entre os velhos imperialismos ocidentais, por um lado, e os imperialismos em ascensão, Rússia e China, por outro, mas não é, por agora, uma guerra directa entre potências imperialistas, o que desautoriza a sua caracterização como uma guerra inter-imperialista.

A invasão russa sobre a Ucrânia e a escalada de sanções terão o efeito de consolidar a dependência estratégica da Rússia face à China, o que está acelerar a conformação de um polo central alternativo às potências ocidentais. Para consolidar as suas esferas de influência, as várias burguesias mundiais, quer sejam ocidentais, russas ou chinesas, precisarão recorrer a uma crescente autocracia, nacionalismo, sobre-exploração das classes trabalhadoras e juventude e crescente belicismo.

Não temos pretensões de estabelecer a iminência de um novo conflito mundial, nem as suas velocidades ou contornos, mas todos os seus preparativos parecem estar em marcha. As máquinas de propaganda mediática trabalham diariamente na justificação da escalada do conflito na Ucrânia. As indústrias militares estão a ser postas a trabalhar a todo o vapor. Os blocos em confronto estão em formação.

Tal como há um século, o capitalismo confronta-nos novamente com uma disputa entre potências imperialistas por uma nova divisão hegemónica do mundo que poderá vir a desembocar numa nova guerra inter-imperialista. As recentes explosões na Transnístria, região separatista da Moldávia; o acelerar dos processos de adesão à NATO da Suécia e da Finlândia; as promessas de adesão da Ucrânia à UE; assim como o recente corte de abastecimento de gás russo à Polónia e Bulgária, exigindo o seu pagamento em rublos, são elementos da escalada do conflito de ambos os lados da contenda.

A primeira tarefa da esquerda e dos povos é fazer-se valer da sua mobilização em apoio à resistência ucraniana, contribuindo para a derrota da invasão russa. Será preciso renovar a esquerda tradicional, romper com os seus projectos de conciliação com a burguesia e construir uma alternativa política que nos permita derrotar os planos das elites e combater o capitalismo, abrindo caminho à construção de um sistema económico e político alternativo, pautado pela paz, solidariedade e livre cooperação entre os povos, tarefa essa em que o MAS está fortemente empenhado.

Não à guerra. Putin fora da Ucrânia. Não à NATO. Fim de todos os blocos militares. Fim das offshore. Solidariedade com o povo e a resistência ucraniana contra a invasão russa.

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