Invasão russa da Ucrânia: fragilidades russas aprofundam-se

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Na noite do passado dia 23 de Junho, o mundo foi surpreendido com um bizarro motim do grupo russo de mercenários Wagner contra o regime de Putin. Em menos de 24 horas, o grupo de mercenários, composto por cerca de 25.000 elementos armados, chefiados pelo instável Yevgeny Prigozhin, ex-aliado de Putin, ocupou, praticamente sem resistência, a cidade de Rostov, um dos principais centros logísticos russos para a invasão da Ucrânia, assim como a sede do comando militar das operações russas para o Sul da Ucrânia, tendo, de seguida, avançado com forças motorizadas na direção de Moscovo. A coluna só parou a 200 km de Moscovo, já na tarde do dia 24, quando foi negociada uma trégua entre Prigozhin e o regime de Putin.

Daquilo que se sabe, Prigozhin aceitou a trégua – intermediada pelo presidente da Bielorrússia e conhecido fantoche de Putin, Alexander Lukashenko – sob a condição de que nem o próprio, nem os membros do grupo Wagner sob o seu comando, poderem vir a ser alvo de qualquer acusação criminal. Para além disso, Prigozhin exilar-se-á na Bielorrússia e os mercenários Wagner, que assim o desejem, podem assinar contrato com o ministério da Defesa ou regressar a casa sem qualquer acusação. Desde então, o paradeiro de Prigozhin tem sido alvo de inúmeras especulações, sem nenhuma certeza.

Estes acontecimentos levantam muitas dúvidas que, eventualmente, só se dissiparão com o tempo. No entanto, a informação de que dispomos permite-nos fazer algumas leituras e retirar algumas conclusões sobre o conflito na Urcrânia.

O esforço de guerra é cada vez mais pesado para Putin

Considerando que Putin esperava concretizar uma invasão relâmpago da Ucrânia, resolvida em semanas, ao invés de se ver envolvido numa guerra de meses e sem fim à vista, juntando-lhe as sanções das potências imperialistas ocidentais, é certo que o esforço de guerra esteja a pesar nas suas contas mais do que o previsto.

Face aos acontecimentos, Putin foi forçado a reconhecer publicamente, através da televisão russa, a relação encoberta que tem sustentado, há anos, com o grupo Wagner, fazendo notar o pagamento de 1.000 milhões de dólares que fez ao grupo de mercenários, pelos serviços militares prestados na invasão da Ucrânia1, durante o último ano.

Contudo, este montante não só não foi suficiente para que o grupo Wagner fizesse uma diferença qualitativa na invasão da Ucrânia, tendo ficado atolado na sangrenta batalha de Bakhmut, uma cidade completamente secundária, durante cerca de 6 meses (até finais de Maio de 2023), como a insuficiência de meios fez despoletar crescentes críticas e exigências públicas de Prigozhin, líder do grupo. Segundo Prigozhin, os últimos meses da batalha de Bakhmut foram marcados pela falta de fornecimentos, por parte do Estado russo, no que diz respeito a meios financeiros, logísticos e militares ao grupo Wagner, responsabilidade que oportunamente sempre dirigiu, não a Putin, mas sim ao ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu, e ao chefe do estado-maior, Valeri Guerassimov.

Ora, a decisão de Putin, tornada pública em inícios de Junho, segundo a qual pretendia colocar um fim ao estatuto especial de que o grupo Wagner beneficiava, passando pela integração compulsiva dos seus mercenários nas forças regulares russas, parece procurar resolver de uma vezada estes dois problemas: racionamento de custos militares e destruição do feudo militar privado de Prigozhin, personagem que foi escalando o conflito aberto com a autoridade e decisões do Presidente russo, nos últimos meses.

E terá sido precisamente esta decisão que fez disparar o gatilho da indignação de Prigozhin que, vendo-se apartado do seu empreendimento mercenário privado, decidiu mobilizá-lo em torno de um motim que permitisse forçar o regime russo a reverter tais medidas e tentar manter os seus benefícios pessoais: financiamento e fornecimentos do Estado russo ao grupo Wagner, assim como o acesso à apropriação de múltiplos espólios de guerra e recursos naturais.

Aprofundam-se as divisões no regime de Putin

A insurreição do grupo Wagner ou foi muito mal preparada, ou não passou de um acto de desespero de Prigozhin que apenas procurou uma posição de força que lhe permitisse negociar a sua retirada pessoal.

É inverosímil que Prigozhin, tal como o mesmo chegou a referir, ainda que quisesse apenas negociar o estatuto especial do grupo Wagner sem depor Putin, tenha acreditado na possibilidade de que mobilizava um motim para tomar Moscovo, afrontava a autoridade do Presidente, expunha as fragilidades do regime para o exterior e que Putin cedia às suas exigências, sem demais consequências.

Por outro lado, pode ter-se dado a hipótese de que Prigozhin tenha contado com que as forças militares regulares russas não tivessem disposição para resistir à sua investida ou até aderissem ao motim. No entanto, não é igualmente plausível que a liderança do grupo Wagner, experimentada nos mais variados cenários de conflito armado, esperasse como certa tal hipótese sem a preparar antecipadamente, munindo-se dos necessários aliados políticos e militares do interior do próprio regime.

Já para não falar que, sem a adesão ou neutralização das forças militares regulares russas, os 25.000 mercenários do grupo Wagner talvez fossem insuficientes para tomar Moscovo, ainda para mais numa operação que estendeu os seus operacionais ao longo de centenas de quilómetros, numa única autoestrada, em campo aberto, deixando os flancos e retaguarda expostos a contra-ataques.

Portanto, tudo parece indicar que Prigozhin, num acto de desespero, depois de meses de retórica irascível contra o regime de Putin, tenha utilizado a sua empresa de mercenários para alcançar uma posição de força que lhe permitisse negociar a sua retirada pessoal. A rapidez com que alcançou um acordo de exílio parece mesmo atestar tal hipótese.

Seja como for e mesmo que Prigozhin não tenha conseguido mobilizar nenhum sector das elites russas em seu apoio, nem mesmo despoletar um entusiasmo público involuntário da ala belicista das elites russas, não será o único descontente com a condução da invasão por parte do regime de Putin. Na imprensa, fala-se de uma ala das elites russas, mais nacionalista e belicista, que exige uma acção militar mais robusta, colocando a economia russa completamente centrada no esforço de guerra, e uma outra ala das elites russas, com negócios e interesses nas potências imperialistas ocidentais, mais tendente ao desescalar da invasão e à abertura de negociações.

É muito provável que assim seja. A manobra de Prigozhin veio desestabilizar o regime de Putin, evidenciar fragilidades e abrir espaço à acção de ambas as alas.

Ainda que, de facto, Putin não tenha precisado de mobilizar qualquer contingente da frente de batalha da invasão da Ucrânia, este sai diminuído, com a sua autoridade abalada, revelando ainda e, mais uma vez, aquilo que pareceu uma ausência de resposta e prontidão por parte das forças militares regulares russas, agora no plano interno. Entre a passividade e relativo consentimento para com o motim do grupo Wagner, as forças militares regulares russas foram simplesmente improvisando trincheiras e erguendo barricadas a Sul de Moscovo.

Como se tudo o que foi referido não fosse suficiente, as declarações públicas de Prigozhin, de 22 de Junho, colocaram ainda em causa a narrativa oficial sobre a invasão russa da Ucrânia: “fomos para a Ucrânia combater neonazis e não os havia”; “a única coisa que a Ucrânia fazia desde 2014 era disparar umas morteiradas na direção das zonas do Donbass que estavam connosco, nunca lhes passando pela cabeça invadir-nos com o apoio da NATO”; e sobre a verdadeira situação na frente de combate: “milhares de baixas por dia e muitos locais onde os ucranianos estão a ganhar-nos terreno”2.

Portanto, Parece ficar demonstrado que Putin não controla tudo e que, para evitar o aprofundar da crise interna, terá provavelmente que negociar novos pontos de equilíbrio entre as diferentes alas da elite russa. A, agora conhecida, reunião entre Prigozhin, os seus 34 comandantes e Putin, que teve lugar 5 dias após o motim3, em Moscovo, pode bem ter sido parte desta negociação com vista a neutralizar, pelo menos, para já, o grupo de mercenários e as alas das elites russas que neles podiam reconhecer um ponto de apoio ao desgaste do regime de Putin. Desta reunião saiu publicamente o comprometimento dos comandantes com a lealdade a Putin.

Por outro lado, a manobra de Prigozhin veio, com certeza, alimentar a desmoralização das tropas russas. Deu corpo à possível fragmentação do regime de Putin, mas, acima de tudo e no imediato, contribuiu para alimentar o descontentamento existente entre muitos dos soldados, sargentos e oficiais face à cúpula do regime, fazendo evidenciar as fragilidades russas.

Ou seja, a capacidade de combate da Rússia saiu novamente degradada e os ucranianos, assim como as potências imperialistas ocidentais, certamente, tirarão vantagem destes acontecimentos. Quem o assume é o próprio Putin, ao reconhecer que as acções insurrecionais do grupo Wagner “só beneficiaram a Ucrânia e aliados”4. No futuro, teremos provavelmente uma ideia mais aproximada da profundidade das divisões internas e da crise do regime de Putin de que a manobra de Prigozhin acaba por ser expressão actual.

As potências imperialistas ocidentais aproveitam para reafirmar coesão

As potências imperialistas ocidentais mantiveram-se expectantes face aos surpreendentes acontecimentos na Rússia. O distanciamento face ao motim do grupo Wagner e a reafirmação da coesão em torno do apoio à Ucrânia, foi a tónica assumida pelo G7 e UE5.

Se por um lado, a destabilização interna do regime de Putin é vantajosa para aquelas potências, a possibilidade de Prigozhin poder depor Putin, poderia efectivar uma transformação do regime russo, ganhando este um caracter ainda mais belicista, o que significaria um escalar imediato da guerra, algo que as potências imperialistas ocidentais têm procurado manter dentro de certos limites.

Ao que tudo parece indicar, tanto Putin como as elites das potências imperialistas ocidentais mantêm o interesse em continuar a guerra. Ou as fissuras internas são suficientemente profundas para que Putin tenha de abrir algum processo de negociação de paz, ou, para não evidenciar mais fragilidades, continuará a guerra, pelo menos, pela conquista efectiva e estabilização, sob o seu domínio, das regiões ucranianas actualmente ocupadas. Mas para isso também dependerá a forma como Putin conseguirá resistir ou não à contraofensiva ucraniana. O desfecho da invasão russa da Ucrânia confunde-se, cada vez mais, com o futuro de Putin, o mesmo que vai insistindo que: “vamos ganhar a guerra, estão todos contra nós, mas nós vamos vencer”; “vai demorar mais, mas vamos vencer”.

Do lado das elites das potências imperialistas ocidentais, a guerra continua a ser vantajosa. Em primeiro lugar, as sanções ocidentais à Rússia que seguem em crescendo, isolam, cada vez mais, esta potência concorrente. Ainda antes do motim armado do grupo Wagner, nessa mesma semana, Bruxelas tinha acabado de aprovar o 11º pacote de sanções à Rússia6. Em segundo lugar, a guerra continua a servir de boa justificação para o processo inflacionista mundial que continua a impor uma brutal destruição salarial sobre trabalhadores, por um lado, e oportunos lucros extraordinários para os grandes grupos económicos ocidentais, por outro. Em terceiro lugar, mantêm-se as transferências de dinheiro ocidental em troca de contrapartidas para a Ucrânia, numa metamorfose deste país para um Estado refém dos interesses económicos e financeiros das potências imperialistas ocidentais. A Comissão Europeia acaba de propor o aumento do orçamento comunitário até 2027 para apoiar financeiramente a Ucrânia7. Em quarto lugar, a indústria de armamento ocidental continua satisfeita com os benefícios retirados pela continuidade do conflito. Em quinto lugar, as potências imperialistas aproveitam para continuar a alargar a influência política e militar da NATO a mais países, com a adesão da Finlândia e da Suécia.

O Governo Zelensky, por sua vez, não é só refém da estratégia ocidental como é seu alegre cúmplice, mesmo que para tal vá hipotecando a soberania da Ucrânia aos senhores do Ocidente. Se por um lado, reconhecemos a legitimidade de a Ucrânia se defender da invasão russa, necessitando para tal de recorrer à ajuda financeira e militar das potências ocidentais, não poderemos deixar de criticar a sua política totalmente subserviente ao imperialismo americano e europeu. Zelensky luta para retirar a Ucrânia e o seu povo da opressão militar russa, mas caminha alegremente para os braços da exploração económica e dependência financeira ocidental, mantendo o futuro do povo ucraniano hipotecado.

Continua a não existir, portanto, qualquer interesse ou possibilidade de negociações de paz, seja de que parte for. O que vemos é movimentos que poderão precisamente significar o escalar do conflito a nível internacional, quer seja pela instabilidade interna russa, quer seja pelo alargamento da NATO ou do criminoso fornecimento americano de bombas de fragmentação à Ucrânia. Veremos que mais desenvolvimentos podem decorrer dos actuais acontecimentos.

Uma coisa é certa: a invasão russa da Ucrânia vai aprofundando debilidades no seio do regime de Putin. À invasão da Ucrânia malsucedida e submersa na desmoralização militar russa, proveniente de um conflito injusto e sem fim à vista, ressaltam agora as divisões internas, através da insurreição de um dos braços armados mais importantes e não-oficiais do regime russo, responsável por muito do trabalho sujo nos mais variados conflitos internacionais. Putin acabou mesmo por admitir a possibilidade de uma “guerra civil” caso não tivesse chegado a acordo com Prigozhin. Do lado ucraniano, abre-se uma boa oportunidade para avançar com a contraofensiva, processo que se prevê custoso e demorado.

Seja como for, só a mobilização solidária dos povos poderá colocar um fim imediato às guerras que lhes são completamente alheias, nomeadamente, a actual invasão russa da Ucrânia. Não à guerra. Putin fora da Ucrânia. Não à NATO. Não ao aumento dos gastos militares. Exigimos toda a ajuda financeira e militar à resistência ucraniana, mas sem contrapartidas que tornem o seu povo refém das elites ocidentais. Fim de todos os blocos militares. Toda a solidariedade com a resistência do povo ucraniano. Pela defesa do seu direito à soberania e autodeterminação.

1 Putin diz que financiou grupo Wagner em quase mil milhões de euros (dn.pt)

2 Cinco pontos para entender o golpe de Prigozhin na Rússia – Expresso

3 Prigozhin esteve reunido com Putin cinco dias depois da rebelião – SIC Notícias (sicnoticias.pt)

4 Putin diz que rebelião do Grupo Wagner só ajudou a Ucrânia – Expresso

5 Zelensky discutiu rebelião russa com Biden :”É preciso pressionar Moscovo até que a ordem internacional seja restaurada” (expresso.pt)

6 Bruxelas “acompanha com atenção” a situação, “um assunto interno russo” – Expresso

7 Bruxelas “acompanha com atenção” a situação, “um assunto interno russo” – Expresso

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