Estarão os Estados de Emergência ao serviço de salvar vidas?

Não podemos perder de vista que o Estado de Emergência abre períodos de excepção legal para os governos aplicarem medidas que contrariam os direitos democráticos historicamente conquistados e constitucionalmente previstos. A restrição de liberdades é já um dos principais problemas associados aos Estados de Emergência que foram decretados, com graves consequências sobre a saúde pública, os rendimentos dos trabalhadores, o emprego e as micro e PME. Não estamos certos que efeitos terão sobre os regimes políticos europeus, mas é certo que deixarão marcas. Há motivos para temer o desenvolvimento de restrições aos nossos direitos democráticos. E não nos iludamos: a ameaça à democracia é tão ou mais perigosa que a pandemia. A ciência vive de democracia. Sem ela, torna-se um dogma. E nós precisamos da ciência para vencer a pandemia.

O Estado de Emergência como resposta à descapitalização das políticas públicas

Contrariamente ao que nos tem sido dito pelo Governo de António Costa e pelos media, o SNS entrou em ruptura. Os milhares de doentes que ficaram por acompanhar, o aumento de mortos não-COVID-19, os problemas de saúde mental que atravessamos e a exaustão a que os profissionais de saúde estão a ser sujeitos é disso prova mais que suficiente.

Podemos olhar para qualquer outro serviço público e encontramos os mesmos problemas: desinvestimento e descapitalização em benefício dos privados. Este tem sido o plano neoliberal aplicado, nas últimas décadas, pelos sucessivos governos, em Portugal e no resto da Europa. A pandemia apenas veio tornar evidente os problemas advenientes da destruição das políticas sociais.

As infecções alastram, o número de doentes internados e a precisar de cuidados intensivos aumenta até à saturação dos sistemas de saúde descapitalizados, as mortes diárias acumulam-se e o medo ganha uma amplitude social. Sem suporte social, vivemos na selva do “cada um por si”. A crise social e económica alastra, alimenta a ansiedade, o abandono, o desespero e a desagregação social. Sobra, portanto, a força bruta para conter o possível descontentamento.

O sacrifício e a humanidade com que os profissionais de saúde tratam os doentes não será suficiente para evitar a desumanização a que temos sido sujeitos. Sem serviços públicos devidamente dotados, as populações desesperadas, acabam por não ver outra alternativa que não seja o Estado de Emergência e o confinamento, chegando mesmo a exigi-lo. O papel dos governos fica assim facilitado. Empurrando responsabilidades para onde as circunstâncias permitirem, os governos conquistam uma ampla margem de manobra para decretar os Estados de Emergência e todo o tipo de restrições às nossas liberdades, direitos e garantias.

Temos combatido a pandemia com o mínimo de políticas sociais, mas muito policiamento. Está instalado um clima de medo, suspensão da democracia que cria precisamente o ambiente social que alimenta as mais nefastas tendências políticas autoritárias e reacionárias. O perigo é real. Ainda para mais, quando os Estados de Emergência são aplicados precisamente pelos governos que têm destruído as políticas sociais e que nos trouxeram até aqui.

Já é uma realidade: a pandemia ofereceu um “pretexto conveniente” para consolidar o poder, suprimir as vozes dissidentes e evitar o controlo do Estado

O que acabamos de referir, não é uma mera opinião. O recente relatório do IDEA (sigla inglesa de Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Eleitoral), intitulado Global State of Democracy in Focus, avaliou os impactos preliminares da pandemia na democracia, em 2020, a nível mundial e concluiu que “em termos gerais, o que a crise sanitária provocou em muitos lugares foi “uma aceleração dos processos de deterioração da democracia que já estavam em curso”1. Aquele mesmo relatório afirma que “quase metade das democracias globais aplicou restrições que foram ilegais, desproporcionais ou desnecessárias”2. Dois dos aspetos mais afetados pelas medidas de contenção contra a pandemia foram a liberdade de expressão e a integridade dos media e 43% das democracias aplicaram medidas de combate contra a crise sanitária que prejudicaram valores políticos e cívicos essenciais.

Um exemplo evidente é a “Lei de Segurança Global”, proposta por Macron, em França, no fim do ano de 2020, através da qual se pretendia proibir cidadãos e jornalistas de divulgar, denunciar ou investigar qualquer acto de violência policial, sob pena de prisão de até 1 ano e multa de €45 mil. Sob uma permanente contestação popular nos últimos anos, Macron pretendia limitar direitos democráticos elementares de escrutínio público sobre a acção do Estado, encobrindo a brutalidade e racismo policiais. André Ventura, da extrema-direita portuguesa, aproveitou imediatamente para fazer uma proposta idêntica, em Portugal.

Em alguns casos, as medidas aplicadas através do Estado de Emergência provocaram mesmo restrições políticas, como o adiamento de eleições. É o caso do Governo de Hong Kong que, em Julho de 2020, sob uma contestação popular com repercussões mundiais, aproveitou para adiar por um ano as eleições, evitando que o descontentamento se refletisse nas urnas3. Rui Rio, com perspectivas eleitorais negativas, já propôs o mesmo para as eleições autárquicas portuguesas de 2021.

Mitigar a disseminação da COVID-19 levou autoridades de todo o mundo a “restringirem as liberdades individuais, os direitos económicos e sociais e a solidariedade global”, conclui um analista político e perito em direitos humanos da organização não-governamental Democracy Reporting International (DRI). Com a actividade sindical e política limitadas, com os trabalhadores mais isolados e sob um clima de medo, podemos aqui incluir a vaga de despedimentos que os grandes grupos económicos e financeiros estão a aproveitar para fazer.

A DRI refere ainda que a pandemia ofereceu um “pretexto conveniente” para consolidar o poder, suprimir as vozes dissidentes e evitar o controlo do Estado. Isto não se limita a regimes democráticos recentes ou débeis, “os casos de democracia em queda estão no seio da União Europeia”. No Estado espanhol, onde existe um extenso historial de mais de 100 presos políticos por simplesmente expressarem a sua opinião, acaba de ser julgado e preso mais um jovem músico, Pablo Hasél, sob a acusação de “injúrias à monarquia e a instituições do Estado, em publicações na rede social Twitter e através de uma canção”, em mais um caso evidente caso de subtração do direito à liberdade de expressão. A pandemia está a aprofundar regimes autocráticos em países não-democráticos e a retirar liberdades e direitos nos regimes democráticos e ainda vamos. Juntemos aqui a repressão, com tácticas de guerra, às manifestações nos EUA e o ataque ao Capitólio, em início de Janeiro de 2021.

Segundo a própria UE, existem problemas quanto ao Estado de direito em todos os Estados membros4, que se têm aprofundado com a pandemia e as medidas adoptadas. Polónia e Hungria são os casos mais evidentes em que a independência dos tribunais está sob “séria ameaça”, mas a estes juntam-se a Bulgária, Croácia, Eslováquia e Roménia, onde “a resiliência das normas que salvaguardam o Estado de direito está a ser testada” pelo poder político e as “falhas estão a tornar-se evidentes”. Na Hungria, logo nos primeiros meses da pandemia, até Maio de 2020, tinham sido presas 16 pessoas e desencadeadas dezenas de investigações a críticos de Órban nas redes sociais, com base na Lei do Estado de Emergência, que permite ao primeiro-ministro governar por decreto5. Em Outubro de 2020, o Governo nacionalista e ultraconservador polaco, conseguiu fazer aprovar, pelo Tribunal Constitucional, para o qual nomeia os seus juízes, mais restrições ao direito ao aborto, num país onde o acesso ao aborto já é dos mais limitados da Europa.

Portugal também não tem passado incólume. O actual Estado de Emergência sem fim à vista, a diminuição de debates parlamentares, diminuindo o escrutínio democrático do Governo, a diminuição das medidas de controlo e acompanhamento dos gastos públicos e da forma como serão investidos os capitais que chegarão da “bazuca” europeia, assim como a intervenção na TAP, seguida de milhares de despedimentos e cortes salariais, são exemplificativos da forma como as medidas de combate à pandemia têm efeitos sobre a nossa democracia.

A juntar a tudo isto, não podemos deixar de referir a propriedade exclusiva das vacinas que impedem a sua produção e distribuição democráticas, essenciais para o combate eficaz à pandemia, a nível mundial.

Todos estes efeitos sobre as nossas democracias, são o reflexo do sistema capitalista em que vivemos, cujas elites dominantes estão dispostas a sacrificar as políticas sociais, a democracia, a ciência, a vida, tudo em função da protecção dos seus próprios benefícios e lucros imediatos. Para defender a democracia, a ciência e as nossas próprias vidas, precisamos pôr um fim ao capitalismo e aos governos que o suportam.

Mais políticas sociais!

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