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Lar de Reguengos de Monsaraz: este sistema não é para humanos

Editorial – 25 de Agosto de 2020

A pandemia que atravessamos, como qualquer crise, tem a particularidade de colocar a descoberto todos os problemas e contradições da sociedade em que vivemos.

Os já de si precários são os que perderam mais rapidamente o emprego. Os mais pobres, com maiores carências de saúde, são os que mais probabilidades têm de serem infectados. As crianças e jovens com maiores carências sócio-económicas são as que têm registado maiores dificuldades escolares. Também nos lares, entre instituições apoiadas pelo Estado, privadas e ilegais, a dignidade com que se é tratado tem uma relação directa com a dimensão da conta bancária do utente. Em Portugal, 38,8% das vítimas mortais da Covid-19 ocorreram em lares de idosos1.

Estes aspectos não se registam exclusivamente em Portugal. São transversais a todos os países, pelo que nos devem fazer questionar: que sistema desumano é este em que vivemos?

O lar de Reguengos de Monsaraz é ilustrativo. A 24 de Junho, registou-se a primeira morte por Covid-19. Três dias antes, a 21 de Junho, já os médicos de medicina geral e familiar que estavam na primeira linha de resposta alertavam as autoridades públicas (Direção do Agrupamento de Centros de Saúde e à Autoridade de Saúde Pública) para as “péssimas condições” existentes naquele lar.

O relatório feito pela Ordem dos Médicos aponta “a falta de espaçamento entre camas, a inexistência de equipamentos de proteção individual adequados e de álcool gel, o calor extremo, lixo no chão, mau cheiro e vestígios de urina no chão”; “doentes acamados, desidratados, desnutridos, alguns com escaras com pensos repassados, alguns só usando uma fralda, completamente desorientados”; “vários doentes referem que há vários dias que não lhes é administrada a medicação habitual”2. Quando se deslocaram ao lar para fazer os primeiros testes, os médicos não “conseguiram terminar a tarefa pelas más condições que dispunham”. Simplesmente, os médicos não encontraram o mínimo de condições de higiene e segurança para as boas práticas clínicas.

Se estas são as condições de um lar em plena pandemia, podemos bem imaginar as condições dos lares nacionais em circunstâncias normais.

Foram necessários 18 dias e um total de 16 mortes para que o Governo Costa reagisse e decidisse pedir uma investigação da Segurança Social ao lar de Reguengos de Monsaraz (a 12 de Julho). O relatório ficou concluído a 14 e foi enviado para o Ministério Público a 16 de Julho.

Costa defende-se com a acusação de que a Ordem dos Médicos não tem competência para fazer a auditoria que fez. Neste momento, esta acusação apenas serve para desviar atenções e ofuscar a denuncia que foi feita pela Ordem dos Médicos. Perante o conteúdo do relatório da Ordem dos Médicos, tendo ou não competência para o fazer, aquilo que o Governo Costa tem a fazer, no imediato, é clarificar o que está por se saber, enumerar as falhas, identificar os responsáveis e evitar que volte a acontecer.

No entanto, as condições do lar de Reguengos de Monsaraz não serão caso único pelo que são necessárias medidas estruturais, de fundo.

Do total de 2.520 lares existentes em Portugal, cerca de 30% são privados e os outros 70% estão entregues ao sector social (IPSS, misericórdias e mutualistas). Este é um negócio apetecível e em expansão, cujo sector privado já representa €315 milhões de facturação. Ou seja, uma parte dos lares é gerida em função do lucro dos interesses privados, ligando-se, muitas vezes, a sectores de luxo destinados às classes mais desafogadas, e a grande parte das restantes instituições existentes é gerida em função da sua sustentabilidade financeira, chocando de frente com os interesses dos próprios utentes.

É por isso que, em geral, as condições dos lares nacionais são deploráveis. Quem pudesse dali fugir, fugia. “A evidência científica diz que a qualidade de vida está ligada à funcionalidade, e a maioria dos lares é disfuncional por natureza”, afirma Fernanda Daniel, investigadora no Centro de Estudos e Investigação em Saúde da Universidade de Coimbra3. Aquela mesma investigadora afirma que “cuidados rígidos diminuem a autoestima, a autonomia, a capacidade de tomada de decisão, a privacidade, o sentido de pertença e a perceção de bem-estar”. Por outro lado, Fernanda Daniel alerta ainda que “os recursos humanos do sector não estavam — nem estão — preparados […] a começar pelos técnicos superiores e diretores que trabalham em IPSS”. Para termos uma noção do problema, dos 595 lares inspecionados pela Segurança Social, em 2019, 23% (137) foram encerrados. É uma percentagem muito elevada.

Os lares são encarados socialmente como depósitos de velhos. Basta ver que, em 2012, o Governo PSD/CDS-PP, perante a necessidade de encontrar vagas para os 15 mil idosos à espera de um lar, aprovou a lei que possibilita que um quarto possa ser utilizado por duas pessoas. No entanto, temos 150 mil pessoas idosas que precisam de lares, com condições dignas.

Precisamos de uma reformulação das políticas públicas dirigidas à população idosa que tenha como referenciais a promoção da independência, interdependência e dignidade da pessoa humana. Com um importante foco na saúde, no movimento físico e no estímulo mental, assim como na envolvência da família e na manutenção de conexões com a comunidade envolvente. Sucintamente, as políticas públicas dirigidas à população idosa devem estar orientadas para as necessidades dos seus utentes e não presas ao lucro ou à gestão financeira dos lares. Este é um serviço de interesse público. O Estado é a instituição com o dever de assumir a defesa do interesse público. Como tal, rapidamente chegamos à conclusão de que uma rede nacional e pública de serviços para a população idosa, onde se incluem os lares, é não só urgente. É essencial.


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