Vazio à esquerda dá espaço à extrema-direita

Cimeiras mundiais tortas

Esteve agendada, e envolta em grande mediatismo, uma cimeira de líderes de extrema-direita, em Lisboa, com o partido “Chega” como anfitrião. A cimeira parecia ter por objetivo reunir as principais figuras e fazer uma demonstração de alinhamento, consonância e solidez dos vários movimentos de extrema-direita a nível mundial, e fortalecer André Ventura como um centro das relações entre estes partidos. No entanto, a conferência  acabou por ser desconvocada devido a embaraços legais de algumas das suas estrelas.

Com avanços e recuos, mas numa trajectória claramente ascendente, a extrema-direita e as  forças políticas reacionárias em países de regime parlamentar têm seguido uma tendência global, acentuada na última década e meia, consolidando-se como o novo normal. Se se destacam figuras como Trump e Bolsonaro, também a Europa não ficou imune a esta tendência, com os movimentos de extrema-direita – mais ultraliberais ou mais autoritários – a sair da marginalidade das sombras, a conquistar espaço mediático e a cativar eleitorado.

A insegurança económica

A fraca recuperação das consequências da crise financeira de 2007-08 tem representado um impulso claro para o crescimento da extrema-direita, incutindo um sentimento de insegurança económica e, em alguns casos, de agitação, comprovado pelas ondas de greves pela Europa, em Portugal apresentando maior expressividade nas greves dos profissionais da educação, e dos os sectores que a eles se somaram. A precariedade, o subemprego, a estagnação e desvalorização dos salários tornaram-se uma realidade persistente para alguns sectores da classe trabalhadora, atingindo igualmente as classes médias.

Mesmo neste período de insegurança económica, a Esquerda deixou de se apresentar como uma alternativa ao empobrecimento do sistema capitalista, preferindo adotar uma política de manutenção do status quo. Esta política é visível em Portugal durante a Geringonça – em que PCP e BE aprovaram orçamentos do PS que em nada resolviam os problemas das pessoas. Mas mesmo depois do fim da geringonça, a esquerda parlamentar portuguesa continua a proteger o PS dos “ataques” da direita e a colocarem em cima da mesa uma nova geringonça.

Com isto, as gerações mais novas têm crescido marcadas por uma ansiedade constante sobre as suas perspectivas de futuro, o que alimenta uma tentação de procurar e experimentar estratégias alternativas de governação. Combinados, estes factores dão à extrema-direita um público cativo. Por isso vemos, em Portugal, o Chega a tentar posicionar-se em terrenos que são tradicionais da Esquerda, por exemplo na questão dos lucros extraordinários dos Bancos que aumentaram com a subida das taxas de juro.

A crise política

Além da instabilidade financeira, pano de fundo e razão fundamental da agitação e exasperação da população, um outro factor a apontar é a crise política e a descrença nos partidos clássicos. O declínio relativo dos partidos que tradicionalmente monopolizam as lealdades políticas da maioria da população vem desencadeando uma pulsão centrífuga, que cria espaço para partidos políticos mais pequenos – à esquerda como à direita – mas com maior sucesso à direita. As crises do centro-direita deixam à deriva elementos sociais mais permeáveis à radicalização, tanto inclinados a apoiar ideias conservadoras, como entre grupos preocupados com a carestia de vida, e o recuo de direitos laborais e sociais.

Por outro lado, com a esquerda reformista a abandonar o seu programa e a descredibilização dos partidos da social-democracia tradicional tem consumido até os países que eram considerados progressistas ou bastiões da tolerância liberal – Geert Wilders do Partido da Liberdade na Holanda, a “Orbanização” da Hungria, passando pela consolidação de Marine LePen e de Éric Zemmour em França, também nos países escandinavos se assiste à deslocação para a esfera de influência de partidos de extrema-direita, como é exemplo a Finlândia, e os recentes resultados eleitorais obtidos pelo bloco conservador, tendo o Partido dos Finlandeses, de extrema-direita, ficado em segundo lugar, com 20% dos votos.

Não perdoamos, mas vamos esquecendo

Também no Sul da Europa, em países onde a memória histórica do fascismo deveria estar mais vincada – Espanha, Portugal, Grécia e Itália – a resistência e imunidade a este tipo de fenómenos se dilui.  A Grécia viu o grupo paramilitar neonazi Aurora Dourada entrar no parlamento em 2012. No Estado Espanhol, o Vox entrou triunfante no parlamento nacional em 2019, sete anos após a sua formação, ganhando 10-15% dos votos. De cravo ao peito, Portugal sofreu o primeiro golpe sério quando André Ventura arrebatou 12% dos votos nas eleições presidenciais de Janeiro de 2021, seguido de perto pela Iniciativa Liberal, em igual ascendência. Em 2022, a Itália entrega o leme aos Fratelli d’Italia. Outra famosa imunidade tem sido posta à prova pela emergência e normalização da Alternative für Deutschland (AfD) na Alemanha, apesar do seu núcleo neofascista.

A crise veste-se de valores

Vivemos numa época de acirramento das competições capitalistas e imperialistas. A ascensão da “antiglobalização” de direita, sob a forma de um modelo económico e político proteccionista, é uma tentativa de enfrentar a nova situação. A combinação conveniente de arranjar bodes expiatórios entre as comunidades migrantes mal integradas, e o receio de ficar para trás na concorrência internacional do imperialismo mundial – factor agudizado pelo impacto da guerra na Ucrânia ao nível do comércio mundial – é uma resposta à subordinação económica à UE que legitima o espírito proteccionista que prevalece entre a extrema-direita.

Assim, para algumas forças de extrema-direita emergentes, a recuperação da soberania nacional é uma das bandeiras de caça ao voto, patente nas alas eurocépticas europeias, em retiradas como o Brexit e nas recentes medidas italianas sobre a imigração, mas que acabam por, na sua maioria, ser uma fachada justificadora da consolidação da agressão imperialista fora das fronteiras, do racismo nas fronteiras e do autoritarismo dentro das fronteiras.

Jogar a abertura do centro

Portugal não é imune a este xadrez, mas apesar destas pressões, o centro, sob a forma do governo de PS eleito com maioria absoluta, tem resistido às polémicas e à pressão eleitoral. A nível mundial, no eixo do centro-direita e centro-esquerda – dependendo de estarem ou não no governo durante as adversidades dos últimos anos – os partidos estabelecidos da democracia burguesa continuam politicamente dominantes, provando a sua capacidade de sobrevivência, reciclagem e de adaptação.

Apesar de certamente estarmos sob ameaça de uma nova crise, e perante um período de alguma volatilidade, o curso das movimentações não se parece encaminhar para uma mudança para um regime fascista, embora a suposta resiliência do centro e da “tolerância” liberal também estejam sujeitas a oscilações. Para fazer a manutenção da falsa dicotomia do mal menor, mesmo quando a social-democracia se desloca para a direita, é necessário cultivar uma certa caracterização das novas direitas como estando constantemente à beira do fascismo. O facto de não estarem não é um motivo para acomodação, porque é deste extremo-centro neoliberal que têm vindo os recuos nos direitos laborais, a crise na habitação, o congelamento de carreiras, a corrupção generalizada, e a política de empobrecimento da classe trabalhadora. O outro motivo para evitar a complacência é perceber a magnitude do problema que é a implantação permanente da extrema-direita como uma força política dominante.

Além do aparatoso circo mediático

O impacto da presença da extrema-direita ultrapassa os soundbites e os resultados eleitorais. Se tivemos algum apoio para as grandes manifestações anti-fascistas e anti-racistas dos últimos anos, reconhecemos igualmente que há uma acomodação gradual da população no que diz respeito ao discurso da extrema-direita em geral. As questões do racismo, islamofobia e a gestão criminosa dos movimentos migratórios de refugiados são um dos exemplos mais evidentes de questões que há uns anos eram consideradas chocantes, mas se encontram normalizadas e dessensibilizadas no quotidiano da Europa Fortaleza. A guerra na Ucrânia veio acrescentar ao coro de vozes reaccionárias a virulência anti-comunista, e o que antes era visto como uma preocupação marginal é agora legitimado, permitindo assim o crescimento da extrema-direita numa base ainda mais radicalizada.

Enfrentar o naipe das direitas

O combate à extrema-direita não é algo que se possa fazer apenas em manobras pontuais de enfrentamento de grupelhos marginais, como se fez no passado, e esta configuração mundial exige uma preparação para uma luta mais estratégica. As lutas e movimentos sociais que possam ajudar a construir e a equacionar alternativas contra a injustiça sistémica não são irrelevantes para a luta contra a extrema-direita, na medida em que nos permitem conquistar uma plataforma que confronte tanto as políticas de empobrecimento do centro, como a fraude da extrema-direita enquanto alternativa.  Movimentos como as greves dos profissionais da educação podem espoletar o levantamento e reivindicações noutros sectores, e devemos empenharmo-nos para impedir a sua parasitação por forças reaccionárias. Esta luta nas ruas, conjugada com um programa anti-capitalista que reverta o empobrecimento e as sem deixar de lembrar que se nos queremos livrar das direitas, temos de nos livrar do centro também, porque a luta é contra o capitalismo.

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