Extrema-direita dos EUA procura pôr fim ao direito ao aborto. Não passarão!

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Na passada segunda-feira, 2 de Maio, foi revelado pelo site americano POLITICO, um projeto de decisão judicial, assinado pelo juiz do Supremo Tribunal dos EUA, Samuel Alito, acerca do caso Dobbs vs Jackson Women’s Health Organization, com a intenção, da maioria ultraconservadora do Supremo, de anular a decisão que prevê o direito ao aborto no país.

A decisão judicial final, prevista para o mês de Junho, a ser aplicada conforme o projecto que veio a público, terá a consequência de anular a decisão de 1973, tomada no caso Roe vs Wade, processo que, pela primeira vez, instituiu o direito ao aborto nos EUA. Esta decisão passou a garantir que nenhum Estado pode ilegalizar o aborto, no primeiro trimestre da gravidez, numa altura em que mais de 30 Estados não reconheciam o direito ao aborto. A sua origem reside no caso de Jane Roe, mulher de 21 anos, quando descobriu que estava grávida pela terceira vez. Por não ter condições, lutou pelo direito a abortar no Estado do Texas, onde a interrupção voluntária da gravidez era proibida. O caso arrastou-se na justiça até o Supremo Tribunal dos EUA reconhecer o seu direito constitucional ao aborto, considerado estar protegido, na constituição dos EUA, pelo “direito à privacidade”. A decisão chegou tarde para Jane Roe que foi obrigada a dar a filha para adoção, mas foi um marco histórico na vida de muitas mulheres.

Em 1992, a decisão do caso Roe vs Wade foi rectificada através do caso Planned Parenthood vs Casey, garantindo o acesso ao aborto durante as primeiras 24 semanas, ou até ao momento da chamada viabilidade fetal, enquanto Roe vs Wade salvaguardava a possibilidade de abortar até às 12 semanas. Desde então, vários Estados têm aprovado sucessivas limitações do direito ao aborto e caso o actual projecto de decisão do Supremo Tribunal seja aprovado podem mesmo chegar à sua ilegalização. É importante ainda notar que o acesso ao aborto nos EUA, após as 12 semanas, raramente é respeitado, tanto por Estados que conseguiram aprovar leis que o impedem, como por profissionais de saúde que se recusam a fazê-lo. Isto torna-se especialmente preocupante considerando que, não só as intervenções feitas nesta fase da gravidez são escassas, como são na sua maioria feitas por haver problemas de saúde do feto ou risco para a saúde da mulher.

A inacção do partido Democrata é bem demonstrativa da sua oportunista posição sobre o assunto. Convém recordar que, no início de carreira como Senador, Joe Biden votou a favor da anulação da decisão Roe vs Wade, afirmando que a lei tinha sido levada longe demais. Biden opôs-se também à comparticipação do aborto, dentro do seguro de saúde público Medicare, tendo oportunamente mudado de posição apenas durante a campanha Presidencial de 2019, com o objectivo de garantir o apoio de importantes grupos feministas sob a influência política democrata. Ainda assim, refira-se que estes grupos, nomeadamente o histórico NOW, Women ‘s March e o Planned Parenthood, perante a lei passada, em Setembro de 2021, no Texas, que aprovou a limitação e criminalização do direito ao aborto, após as 6 semanas de gravidez, continuam sem expressar uma clara posição em defesa da decisão Roe vs Wade. Se não forem tomadas as medidas necessárias para proteger a decisão Roe vs Wade, os legisladores estatais vão continuar a encontrar brechas na lei de forma a limitar o direito ao aborto.

A recente ilegalização do aborto na Polónia já levou à morte de, pelo menos, uma mulher, no ano passado. Izabella de 30 anos que, na 22ª semana de gravidez, desenvolveu uma septicemia, acabou por falecer, uma vez que os médicos não puderam intervir para tirar um feto com anomalias conhecidas até que o seu coração parasse de bater, resultando na morte de ambos. Infelizmente, Izabella não foi nem será a única mulher a morrer por falta de cuidados de saúde humanizados.

Não nos espanta que o direito ao aborto continue a ser alvo de oposição por sectores conservadores e ultraconservadores de direita, uma vez que continuamos a viver sob um sistema patriarcal, machista, fruto do capitalismo vigente. Um sistema económico e social que reserva à mulher um papel dependente e submisso, ligado às tarefas de reprodução e cuidados, custe-lhe o que custar. A história e a ciência têm demonstrado que quando os direitos reprodutivos são atacados os abortos ilegais e sem cuidados de saúde aumentam, determinando a morte de mais mulheres, sobretudo, as mais pobres.

A garantia do direito ao aborto seguro e humanizado, assim como o acesso a informação e autonomia de escolha dos métodos contraceptivos são a única forma de proteger a saúde física e mental das mulheres. O direito ao aborto apenas foi alcançado através de importantes mobilizações de mulheres em grupos feministas, movimentos sociais, sindicatos e partidos políticos.

Trump foi eleitoralmente derrotado, mas o ultraconservadorismo trumpista continua a dividir a sociedade americana. O ataque que se vive nos EUA pode abrir portas para ataques a outros direitos fundamentais, como o casamento homossexual, direitos laborais das mulheres ou até mesmo o seu direito ao voto, a nível internacional. Este possível retrocesso deve servir de aviso para que a luta por um mundo justo e seguro para todas e todos seja permanente e decididamente anticapitalista, uma vez que, dentro deste sistema, não podemos tomar qualquer direito por garantido.

Por fim, aproveitamos para fazer notar que, em Portugal, o direito ao aborto é permitido até às 10 semanas de gravidez, o período mais baixo de todos os países onde o aborto é legal na Europa. Para além do período legal para abortar ser curto, o acesso à intervenção não é generalizado. Os hospitais e profissionais de saúde reservam ainda o direito de se recusar a fazer abortos, criando imensas barreiras burocráticas a quem precisa de abortar e tem uma janela de tempo bastante limitada. Os hospitais privados podem também cobrar várias centenas de euros caso a pessoa não seja reencaminhada pelo centro de saúde. A pandemia veio piorar a situação, visto que vários hospitais e centros de saúde fecharam consultas consideradas menos urgentes e a linha telefónica SNS 24 passou a funcionar apenas para doentes COVID-19. Por fim, a lei portuguesa exige que pessoas menores de 16 anos obtenham a autorização de um tutor para ter acesso ao aborto, vulnerabilizando ainda mais adolescentes em situação de abuso ou abandono familiar. A luta pelo acesso justo e generalizado e seguro ao aborto continua. O MAS está fortemente empenhado na defesa do direito ao aborto seguro e humanizado.

Marta Shiels

Assistente pré-escola e activista feminista

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