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Transgénero: para tornar o direito à autodeterminação efetivo é preciso investimento público!

Nos últimos dias surgiu uma intensa polémica sobre um despacho que define as medidas concretas que visam aplicar, nas escolas, a lei da identidade de género, aprovada em 2018.

Fruto de mobilizações nacionais e internacionais, luta e pressão da comunidade LGBT, o Governo viu-se na necessidade de legislar sobre o mínimo no que diz respeito à igualdade plena de direitos para a comunidade transgénero. Este despacho das escolas estabelece um direito básico que há muito já devia ser garantido na nossa sociedade: o direito de ser, em pleno, sem entraves burocráticos e sem a descriminação de uma comunidade estudantil, devidamente informada naquilo que diz respeito à identidade de género. Dessa forma, é desconcertante que um conjunto de direitos tão básico expluda, por ação da direita e dos seus setores mais conservadores, numa polémica tão grande.

 

O despacho explicita, claramente, em que moldes a lei deve ser aplicada nas escolas, ou seja, a forma como todo o sistema educacional, desde os professores, tutores, diretores até aos auxiliares, devem acuar para garantir os direitos de estudantes transgénero. O ponto fundamental da nova legislação prende-se com a possibilidade de as escolas passarem a incluir o novo nome e género, com que o(a) aluno(a) se identifica, nos documentos oficiais. O nome é o primeiro passo de transição para uma pessoa transgénero, algo que a coloca aos olhos da sociedade com a mesma identidade com que se identifica.

Como não poderia deixar de ser, a formação do corpo docente e auxiliar de ensino também está prevista: “As escolas devem promover a organização de ações de formação dirigidas ao pessoal docente e não docente, em articulação com os Centros de Formação de Associação de Escolas (CFAE), de forma a impulsionar práticas conducentes a alcançar o efetivo respeito pela diversidade de expressão e de identidade de género, que permitam ultrapassar a imposição de estereótipos e comportamentos discriminatórios”.

Portanto, o que está aqui em causa não é o ensino de “doutrinas” ou “ideologias de género”, forma como os obscurantistas do CDS-PP, da JP e do PSD querem intoxicar a questão e, consequentemente, a sociedade. A direita tradicional aproxima-se assim da extrema-direita, agitando a existência de uma suposta “ideologia de género” ou de expressões como “marxismo cultural”, fantasmas que ninguém sabe exatamente que conteúdo encerram, mas que, exatamente por isso, são passíveis de serem preenchidos por cada um com os preconceitos que bem entender. O objetivo da direita e extrema-direita não é informar ou esclarecer. É apenas espalhar a confusão, criar o caos e o medo nos setores mais conservadores e desinformados sob os quais pretende ter influência política e eleitoral.

Mas, é por trás da intoxicação que a direita e extrema-direita utilizam que está a verdadeira questão. A autodeterminação da identidade de género coloca em causa ideias e regras sociais que nos são ensinadas como inquestionáveis e universais: o sistema em que vivemos de azul vs rosa, meninas vs meninos, bonecas vs carrinhos, formam um conjunto de ideias que servem o propósito de garantir que “o lugar da mulher é na cozinha” ou de que “o transgénero ou homossexual não tem lugar na nossa sociedade”. Enquanto aceitarmos que “o lugar da mulher é na cozinha” ou que “a transgénero não tem direito a ver reconhecida a sua identidade”, estamos a permitir que uma parte da sociedade seja discriminada, tenha menos direitos, e até se justifique o recebimento de um salário menor. O efeito geral na sociedade, é uma classe trabalhadora compartimentada que, ao fim do dia, obedece caninamente aos tais papéis inquestionáveis e universais: trabalhar pelo salário mais baixo possível, afinal tem de ser produtivo, manter-se calado quanto às suas miseráveis condições de vida e reproduzir os preconceitos que lhe são impostos.

Vemos, portanto, o espaço público ocupado com a discussão centrada no acesso às casas-de-banho/balneários. Sinal claro de como a direita e extrema-direita querem enclausurar este tema no obscurantismo da ignorância. O que está efetivamente previsto no despacho, é que qualquer medida só será aplicada em relação a crianças e adolescentes cujos pais ou encarregados de educação tenham dado autorização, e que estejam a passar pelo processo de transição de género, permitido a partir dos 16 anos de idade, ou que se preparam para o fazer. A direita e extrema-direita, para além de descentrar a discussão para algo que não contribui para um entendimento do que realmente está em causa, o direito a não ser discriminado, agrega argumentos que não decorrem no campo dos factos ou da ciência, mas sim no campo dos preconceitos, mitos e equívocos.

A direita e extrema-direita contribuem, então, para a ignorância generalizada quanto às definições básicas de identidade de género, orientação sexual e sexo biológico, quanto ao processo de transição de uma pessoa transgénero (o que motiva, em que idade é que pode acontecer, etc) e até mesmo quanto ao despacho em si. Este não é um debate sobre o acesso a “casas de banho”, este não é um debate que sirva para opor a “maioria” às “minorias”.

Este é um debate fundamental para nós trabalhadoras(es), precárias e oprimidas sobre um direito fundamental: o respeito pela autodeterminação da identidade de género.

É um combate contra a discriminação, contra a violência, contra a segregação a que as pessoas trans estão sujeitas, todos os dias, em todos os espaços, na nossa sociedade.

É um combate pela unidade de todos e todas os trabalhadores e trabalhadoras, pois só nós teremos a capacidade para alterar a nossa sociedade para melhor, em torno dos direitos básicos de cada um a não ser discriminado.

É um combate contra a direita e a extrema-direita conservadoras, representadas mundialmente por Trump, Bolsonaro ou Salvini, e nacionalmente por Cristas, Rui Rio ou André Ventura que significam duros e pesados ataques sobre o direito à existência das comunidades LGBT.

As LGBT muito têm lutado para conquistar o seu lugar neste mundo, contudo, ainda há muito a ser feito para atingir a igualdade plena. Vemos os vários avanços na lei portuguesa como positivas, fruto de lutas e exigências, mas não bastam. Não queremos leis para o pinkwashing turístico de Portugal, nem para a Geringonça ficar bem na fotografia. Este é também um combate para que o Governo PS, com o apoio de BE e PCP, tornem efetivo aquilo que legislaram. Pois não basta legislar. Tornar efetivo exige investimento real nas escolas, na saúde, nos transportes e em tantas outras áreas da sociedade. É preciso parar as cativações e investir seriamente nos serviços públicos que estão à beira da rutura. É preciso contratar mais profissionais. É preciso investir em meios e equipamentos. É preciso investir na formação dos profissionais dos serviços públicos e torná-los espaços preparados para receber as pessoas trans, sem discriminar nem oprimir quem todos os dias enfrenta o preconceito. É preciso deixar de enterrar dinheiro na banca e retomar o nível de investimento nos serviços públicos anterior à Troika!

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