Antes de falarmos sobre as eleições legislativas francesas do passado domingo, dia 07 de julho (e do domingo anterior doía 30 de junho), precisamos de abordar o contexto político francês.
Desde as eleições presidenciais e legislativas de 2022 que a vida política francesa gira à volta de três grandes blocos, existindo ainda um quarto bloco, mas muito mais pequeno que os anteriores. É a chamada tripolarização.
O bloco mais pequeno é o partido de direita clássica (da área política da AD) chamado Os Republicanos (LR). É o herdeiro do antigo partido gaulista fundado por Jacques Chirac em 1976, que na altura se chamava RPR e que mudou várias vezes de nome mas hoje em dia está muito enfraquecido e nestas eleições dividiu-se em duas partes: uma parte aliou-se a Le Pen e a outra parte permaneceu “independente”.
Entre os grandes blocos, temos a extrema-direita. Esta é dominada por pelo Rassemblement National (RN), o partido fundado em 1972 por Jean Marie Le Pen e atualmente dirigido pela sua filha, Marine, que o “moderou” ao longo dos anos mas sem alterar as suas características básicas. O outro partido de extrema-direita que existe, o Reconquista, que obteve cerca de 5% dos votos nas eleições europeias, não concorreu desta vez.
O segundo bloco é o bloco constituído pelos apoiantes de Macron, ou seja, o centro liberal (para quem por cá votou IL é bom repensar) e que abrange também o centro direita. Consiste em três partidos principais: o Renascença do próprio Macron, o Horizontes do antigo primeiro-ministro Edouard Philippe, e o Movimento Democrático de Franços Bayrou, herdeiro da antiga UDF que lutava com o RPR pela hegemonia na direita clássica francesa nas décadas de 1970, 1980 e 1990. Existem ainda alguns partidos mais pequenos.
O terceiro bloco é constituído pela esquerda (em sentido lato pois predomina a ‘esquerda tradicional’) que agora se apresentou sob o nome de Nova Frente Popular, que se considera herdeira da antiga Frente Popular da década de 1930. Em 2022, apresentou-se sob o nome de NUPES (Nova União Popular, Ecológica e Social). A NFP tem quatro forças políticas principais, a que depois se agregam algumas forças mais pequenas. Essas forças são o Partido Socialista, o Partido Comunista, os ecologistas (EELV) e ainda o movimento da França Insubmissa (LFI) de Jean-Luc Melenchon.
É necessário dedicar algumas palavras à LFI. Do ponto de vista da linha política geral, é um partido semelhante ao Bloco (ou ao Livre) mas apresenta algumas particularidades. A primeira é o estilo truculento e muitas vezes (tido como) agressivo do seu líder que não agrada a muita gente, mesmo no seio da esquerda (moderada, óbvio). A segunda é o funcionamento totalmente antidemocrático da LFI que, à semelhança do RN e do partido de Macron, é completamente dominada pela personalidade do líder. A terceira, mais grave, tem a ver com a questão da relação de Melenchon com movimentos islamitas. Não nos referimos aqui à falsa acusação de antisemitismo que lhe é frequentemente lançada, refiro-me à questão do chamado islamo-“esquerdismo”. Trata-se de uma questão muito complexa mas, no fundo, tem a ver com a perceção de que a LFI, para ganhar votos entre os imigrantes muçulmanos, acaba por fazer acordos comprometedores com líderes religiosos.
A NFP está situada politicamente à direita da NUPES. Enquanto esta era dominada pela LFI, dado o bom resultado obtido por Melenchon nas presidenciais (22%), a NFP foi reequilibrada tendo em conta o resultado do PS nas europeias (14%), acima do da LFI (cerca de 10%).
O sistema eleitoral francês, nas legislativas, é maioritário a duas voltas, ou seja, elegem-se os deputados em 577 circunscrições em duas votações (e não somente em uma como em Portugal).
É preciso dizer que Macron antecipou estas eleições depois de ter sido largamente derrotado pela extrema-direita nas europeias de junho passado. Enquanto o RN (de Le Pen) obteve 31% e o Reconquista 5%, o partido de Macron nem aos 15% chegou.
Provavelmente, Macron não contava com a coligação da esquerda uma vez que nos meses anteriores se tinham aprofundado as divergências entre o PS e a LFI a propósito do conflito no Médio Oriente. E sem essa coligação, a eleição seria polarizada entre o RN e o bloco de Macron, apresentando-se este como uma espécie de baluarte da “civilização” contra a barbárie da extrema-direita. Mas a constituição da NFP alterou a dinâmica das eleições que surgem num contexto de baixa popularidade de Macron e de rescaldo de lutas sociais contra, por exemplo, o aumento da idade da reforma, que, apesar de não conseguirem obter sucesso, deixaram muitas marcas e abriram (sem lugar a dúvida) a esta vitória à esquerda. As lutas de massas, com poderosas manifestações e até greves gerais, não derrotaram completamente o aumento da idade de reforma (passou dos 62 para os 64 anos) mas lutando de modo combativo, o povo francês mantem uma idade de reforma abaixo do que ocorre em Portugal, em aumento crescente, já indo para os 66 anos e 7 meses em 2025.
Na 1ª volta, o RN ficou à frente com cerca de 33% dos votos, seguindo-se a NFP com cerca de 28% e o bloco presidencial com cerca de 20% O LR ficou abaixo dos 10%.
Ou seja, existia o risco de o RN (a extrema-direita de Le Pen) obter uma maioria absoluta no parlamento, ou pelo menos, ficar muito perto disso.
Assim, após muitas pressões de diversos setores sociais e políticos, a esquerda e o bloco presidencial acabaram por fazer acordos de desistência mútua, ainda que os apoiantes de Macron não o tenham aplicado em todos os lugares. Estes acordos não foram extensivos ao LR.
Seja como for, e no contexto de uma participação eleitoral muito superior à de 2022, esses acordos acabaram por produzir efeitos e permitiram evitar a vitória da extrema- direita.
A NFP ficou em 1º lugar mas longe da maioria absoluta (289 deputados), o bloco presidencial ficou em 2º e o RN em terceiro, ou seja, a expetativa que a extrema direita tinha de obter, pelo menos, uma maioria relativa, saiu gorada. Apesar de ainda não se saber a constituição exata dos grupos parlamentares, o quadro geral é o seguinte: cerca de 190 deputados de esquerda, com a LFI com o maior grupo parlamentar, cerca de 160 deputados afetos ao bloco de Macron ou perto dele, cerca de 140 deputados de extrema-direita e aliados e uns 60 deputados de direita clássica.
Ou seja, nenhum bloco político está sequer perto da maioria absoluta. Ninguém sabe o que Macron vai fazer. No sistema francês, o presidente detém poderes consideráveis e as próximas eleições presidenciais são apenas em 2027.
A situação económica não é boa, a performance da economia francesa tem sido fraca e, por exemplo, o défice francês está nos 5,5% e a dívida pública tem aumentado. É certo que a França tem muito mais peso que Portugal e que a EU é uma estrutura antidemocrática na prática dominada pelos grandes países (e os grandes poderes económicos das grandes multinacionais) mas mesmo assim as coisas anunciam-se complicadas.
Existe, pois, uma incerteza muito grande. O perigo imediato de um governo de extrema-direita foi eliminado, mas sem uma alternativa consistente à esquerda, mais cedo ou mais tarde, a extrema-direita poderá chegar ao poder. 2027 não está assim tão longe. A melhor coisa a fazer é alentar novas grandes mobilizações sociais pois normalmente dos parlamentos só vem medidas anti trabalhadores (como foi o caso do aumento da idade de reforma como já referimos) e, em contraste, das lutas de massas, mobilizações de rua e greves participadas e massivas, é quando se faz retroceder os poderes instituídos, sejam eles vindo de esquerdas moderadas que conciliam permanentemente com o capitalismo reinante, seja contra governos de direita clássica e essas lutas serão sempre o maior antídoto para retardar ou até eliminar a possibilidade (ainda que real) da extrema-direita ascender ao poder em um dos países mais importantes da Europa. Note-se que este cenário não é completamente novo e tem muitos elementos com traços semelhantes de há um século, que redundou numa guerra mundial na Europa (a II) com uma destruição massiva, com milhões de mortos e países completamente destruídos. Presumimos que não queremos mais guerras mundiais, logo o caminho é travar a extrema-direita, em primeiro lugar nas ruas, nos parlamentos sempre que possível, mas essencialmente fazer reconstruir uma esquerda ainda mais combativa e alternativa às que hoje ainda predominam, quer em França quer em Portugal e outros países europeus. É nesta luta que o MAS se encontra.