A burca em questão

O governo de Nicolas Sarkozy, que se orgulha de ser considerado um dos governos europeus que mais respeita as liberdades individuais, prossegue na sua cruzada contra os muçulmanos.

Em Dezembro do ano passado, o governo francês aprovou uma lei proibindo o uso de símbolos religiosos nas escolas, entre eles o véu islâmico. Agora, a lei está para ser votada no Senado e depois sujeita ao crivo do Conselho Constitucional, por iniciativa do próprio governo. Ela multa em 150 euros o uso em espaços públicos do véu integral (burca ou niqab), além da obrigação de participar de um “curso de cidadania”. As penas mais pesadas vão para quem seja condenado por obrigar as mulheres ao uso do véu integral: um ano de prisão e multa até 30 mil euros. O governo francês alega, com essas medidas, estar a defender o princípio democrático da separação Igreja-Estado.

Os ritos religiosos em geral oprimem e humilham as pessoas, subordinando-as à ordem existente. É uma questão de direitos humanos o respeito às opções religiosas de cada um. Mas é igualmente uma questão de direitos humanos que uma mulher não seja apedrejada no meio da rua porque resolveu romper o seu casamento com um homem. Como resolver essa contradição? Os governos burgueses, à direita e à esquerda comprometida com a manutenção da ordem vigente, acham que basta votar uma lei no Parlamento.

A burca, espécie de túnica que cobre as mulheres da cabeça aos pés, é uma imposição religiosa. É uma das muitas formas de cumprir o preceito do Corão de que as mulheres sejam recatadas. Dependendo do momento histórico, esse preceito é mais ou menos radicalizado. E a burca surgiu há pelo menos um século, e impôs-se de forma mais contundente depois de grupos fundamentalistas mais conservadores, como os Taliban, se terem imposto no mundo islâmico.

Muitas mulheres seguem esse costume de usar a burca porque acreditam que assim estão respeitando os preceitos religiosos; outras porque o véu já faz parte de sua cultura e outras porque têm medo de serem reprimidas. O facto é que essa imposição religiosa, por mais absurda que possa parecer aos olhos de quem não vive num país islâmico, é algo integrado na cultura islâmica e uma imposição para as mulheres que a estão obrigadas a seguir.

Religião combina com dor

As práticas obscurantistas sobreviveram aos tempos. Em algumas religiões, os homens chicoteiam-se até arrancar sangue das costas para pagar os pecados; em outras, os crentes usam uma coroa de espinhos na cabeça para sentir “a dor que Cristo sentiu”, outros jejuam dias e dias na crença de estarem assim purificando o corpo. As práticas obscurantistas, graças ao desenvolvimento desigual e combinado, convivem com concepções avançadas, materialistas, e entram em contradição umas com as outras.

As práticas que causam sofrimento e dor são marca registada de todas as religiões, sem excepção, e levam-nas a cometer barbaridades contra as pessoas. Nos países onde houve a separação entre Igreja e Estado, algumas dessas práticas ficaram restritas ao âmbito religioso, atingindo apenas os praticantes desta ou daquela seita. Mas naqueles onde a separação Igreja-Estado não se consumou, ocorre um sincretismo maior entre os costumes religiosos e os costumes seculares. Por isso a burca, uma imposição religiosa constante do Corão, ultrapassou os limites da religião e passou a ser parte da própria cultura dos povos. O Corão é ensinado nas escolas; desde pequenas as crianças aprendem a ler aquelas palavras ditas sagradas; antes das refeições, os pais recitam as suras e os filhos são obrigados a repeti-las e aceitá-las, sem qualquer tipo de crítica ou questionamento.

Logo, a burca estendeu-se a toda a sociedade, e a mulher que se recusa a usá-la pode sofrer as penas da lei e da sua própria consciência, sem contar com o repúdio por parte da família, a tal ponto que a mulher que não usa a burca, mesmo de forma consciente, pode sentir-se excluída do convívio social.

Só isso já dá uma leve dimensão da gravidade do problema religioso e cultural para a soberania dos povos e o respeito aos direitos humanos. Proibir ou permitir uma prática religiosa ou cultural não é um acto fortuito, sobre o qual deputados de direita ou de esquerda possam decidir, que governantes burocratas desta ou daquela espécie possam legislar. Envolve toda a história de um povo e, como lembrou Marx, já no século XIX, os costumes e as crenças são o último elemento a serem transformados na vida humana. Antes é preciso transformar toda a base económica da sociedade, as relações de produção precisam sofrer uma revolução profunda para que as superestruturas ideológicas, políticas e culturais comecem a esboçar os seus primeiros movimentos de renovação ou superação. As crenças, as ideologias, os valores humanos são tributários das relações de produção e, portanto, das condições materiais de vida.

O vexame da esquerda francesa

 

Nesse sentido, algo que parece simples ao governo francês que, com um golpe de caneta, quer proibir o uso do véu, deixa de ser um problema meramente cultural, de costume ou de moda, e assume a sua verdadeira dimensão: é um problema político com sérias implicações sociais. Engana-se aquele que acha que proibir a burca é uma medida democrática, que vai libertar as mulheres. Enganam-se as feministas que aplaudem essa medida, porque assim estariam salvando as muçulmanas da opressão secular. Engana-se o democrata ou o militante de esquerda que acredita que essa lei do governo francês visa defender a liberdade religiosa.

Num momento em que os imperialismos americano e europeu travam uma guerra fratricida contra o Iraque e o Afeganistão pelo controle do estratégico da região, deixando um rastro de destruição de forças produtivas e o consequente desastre nas condições materiais de vida, a atitude da França, antes de qualquer coisa, é uma atitude política que colabora para aumentar o preconceito contra os povos muçulmanos que estão sendo massacrados e humilhados. E aqueles que apoiam esse tipo de repressão – porque é disso que se trata a proibição da burca – contra povos que estão sendo atacados pelo imperialismo, colaboram com o agressor.

A França tem hoje a maior comunidade muçulmana da Europa Ocidental: cerca de 5 milhões de pessoas. Inclusive, grande parte da classe operária francesa mais combativa é formada por trabalhadores argelinos e imigrantes vindos de outros países islâmicos. É contra eles que vem essa lei. A maioria da esquerda francesa compactua com essa política criminosa. Foi inclusive da mente estalinista de um deputado do Partido Comunista Francês que saiu essa lei. André Guerin foi o relator da comissão que preparou a lei proposta pelo governo e é um dos seus maiores defensores com argumentos em torno da luta contra o fundamentalismo islâmico. Com isso ele colocou o restante do PCF numa saia justa, porque os demais deputados desse partido tiveram de abandonar a sala para não ter de votar contra o seu colega de partido. Quanto ao Partido Socialista, três deputados votaram a favor da lei. Os ecologistas, ao invés de votarem contra, saíram da sala para não participar da votação. Jean Glavany, deputado do PS, explicou a difícil posição do seu partido nesse debate: “Muitos de nós não podíamos votar contra o texto, porque somos contra o uso do véu integral. Mas não podemos votar a favor porque o debate sobre a burca faz parte das manobras do governo sobre a questão da identidade nacional. E a abstenção seria difícil de explicar à opinião pública”.

Em sã consciência o governo francês sabe que é muito difícil que uma mulher que use a burca prejudique o que quer que seja na sociedade francesa. Esse é apenas um álibi para justificar uma campanha internacional contra tudo o que tenha a ver com os países árabes e os povos muçulmanos. A França, país que tem em sua história a vivência da ocupação nazi-fascista, sabe que o ataque aos costumes de um povo, por piores que eles sejam, é um ataque à sua auto-estima, à sua cultura, à sua história. Para subjugar os franceses na Paris ocupada, Hitler proibia a música francesa ou fazia as dançarinas de can-can despirem-se diante de uma plateia de generais sanguinários. Quando Paris foi libertada, a população saiu em massa às ruas cantando a Marselhesa – hino nacional que havia sido proibido – como um grito de guerra pela reafirmação de sua identidade. Para lutar contra os seus inimigos, os homens e mulheres precisam de ter a sua identidade fortalecida. A imposição cultural, a propaganda subliminar, a substituição mecânica e autoritária de uma cultura por outra são formas eficazes de subjugar os povos. Há séculos a burguesia aprendeu essa lição e o imperialismo não é outra política do que subjugar os povos.

Nada como apelar para um sentimento tão em voga nestes dias que correm, uma bandeira que foi hasteada pela esquerda feminista nos anos 60 e arrastada na lama pela mesma direita fascista que agora lança mão dela para humilhar os povos árabes votando essa lei no Parlamento francês. O sentimento de que as mulheres também são seres humanos é uma bandeira que, se deixada nas mãos da burguesia e do imperialismo, ganha o signo oposto e passa a servir para oprimir ainda mais as mulheres.

É o que está a acontecer com a burca. O véu islâmico integral é um elemento tradicional da cultura muçulmana. A proibição de seu uso tem a ver com a política do imperialismo de integrar os muçulmanos no restante da população francesa ou dar a eles uma identidade cultural puramente francesa, como se a cultura boa fosse a cultura francesa, ou como se essas mulheres não tivessem cultura própria, fossem objectos inanimados. É uma espécie de limpeza étnica subliminar, uma tentativa de apagar do mapa uma cultura milenar como a islâmica.

Mulheres-zombies ou mulheres-bombas?
Os povos árabes há tempos que vêm dando uma lição de soberania e coragem no Afeganistão, no Iraque, na Palestina, em praticamente todo o Médio Oriente. É preciso quebrar essa resistência. E nada como usar as mulheres para isso. A hipocrisia não podia ser maior. De facto, existe uma justa indignação em relação à situação dramática em que vivem as mulheres nesses países. As revistas burguesas estampam fotos com mulheres sendo apedrejadas. Mulheres com burcas ficam a parecer fantasmas, e grandes fotógrafos conseguem fazer fotos assustadoras dessas mulheres-zombie. Mas também existem fundamentalismos noutras religiões sem esses símbolos tão assustadores quanto a burca. Na ortodoxia judaica as mulheres são tratadas como crianças, seres incapazes de tomar decisões, e devem aceitar casamentos arranjados. A tão aclamada “mãe judia” não passa de uma escrava, proibida de fumar diante do marido e de emitir opiniões dentro de casa. No catolicismo, a mulher é um ser inferior e desprezível, uma pecadora por natureza que, para salvar a alma, deve obediência ao homem pelo resto da vida.

Faz parte da opressão que pesa sobre as mulheres em todos os povos a ideologia de que a mulher é um ser inferior, incapaz, movida pelas emoções e não pela razão. A ideologia de que mulher é mais instinto do que inteligência, aproxima-a da natureza, dos animais irracionais, das plantas e das ferramentas. Apesar de todos os avanços feitos no mundo contemporâneo, apesar de as mulheres terem conquistado um grande espaço na sociedade, ainda não nos distanciamos das concepções de Aristóteles, para quem as mulheres, diferentemente dos animais e das enxadas, eram ferramentas falantes.

É uma das distorções do capitalismo ver as mulheres como animais, apesar de a antropologia moderna haver demonstrado cabalmente que foram elas as primeiras a domesticar os animais já no período Neolítico ou Idade da Pedra Polida (para mais detalhes ler Gordon Childe, O que Aconteceu na História).

A burca esconde as expressões faciais, esconde a tristeza e também esconde o ódio, a revolta. A mulher passa a ser vista como um zombie, um ser sem expressão facial, como os animais.

No entanto, neste caso cumpre-se uma das leis mais comuns da história: o feitiço voltar-se contra o feiticeiro. Por mais terrível que a burca possa parecer, os povos oprimidos costumam lançar mão justamente dos instrumentos do opressor para lutar por sua libertação, ainda que com métodos bastante questionáveis. E a burca vem servindo para que as mulheres-zombies se transformem em mulheres-bombas, uma das maiores dores de cabeça do imperialismo hoje.

A raiz mais profunda da religião é o medo

No entanto, não se pode buscar a explicação para a situação da mulher muçulmana na religião ou nas relações de género, mas na explicação da religião e das relações de género na mulher real. A religião e os costumes nascem das condições concretas de vida e servem para legitimá-las.

As religiões sempre foram utilizadas pelos setores governantes para dominar os povos, escravizar e manter sectores da sociedade oprimidos para serem melhor explorados.

Num texto de 1909, Lenin demonstrava que “a raiz mais profunda da religião em nossos tempos é a opressão social das massas trabalhadoras, sua aparente impotência frente às forças cegas do capitalismo, que a cada dia, a cada hora, causa aos trabalhadores sofrimentos e martírios mil vezes mais horrorosos e selvagens do que qualquer acontecimento extraordinário, como as guerras e os terramotos. O medo criou os deuses. O medo à força cega do capital – cega porque não pode ser prevista pelas massas do povo – que a cada passo ameaça o proletariado ou o pequeno proprietário com a perdição, a ruína ‘inesperada’, ‘repentina’, ‘casual’, convertendo-o em mendigo, em indigente, lançando-o à prostituição, levando-o à morte por inanição: eis aqui a raiz da religião contemporânea que o materialismo deve ter em conta antes de mais nada se não quer ficar como aprendiz de materialista. Nenhum folheto educativo será capaz de afastar a religião das massas oprimidas pelos trabalhos forçados do regime capitalista, e que dependem das forças cegas e destrutivas do capitalismo, enquanto as massas não aprenderem a lutar unidas e organizadas, de modo sistemático e consciente, contra essa raiz da religião, contra o domínio do capital em todas as suas formas”. (A atitude do partido operário diante da religião).

Os diversos imperialismos que tentaram apossar-se do Médio Oriente fizeram o mesmo. Depois da conquista do mundo árabe pelos otomanos, o imperialismo inglês usou a religião para lançar as massas contra o império otomano na primeira guerra mundial; soube aproveitar o sentimento anti-imperialista das massas árabes para lançá-las contra os otomanos e depois assegurar sua própria dominação colonialista.

Desde o século XIX, os imperialismos têm sido os grandes responsáveis pela manutenção do atraso na região como forma de assegurar a sua dominação. E, como consequência, têm sido os grandes responsáveis pela situação de opressão da mulher muçulmana.

Símbolos de opressão e identidade

O imperialismo coloca no véu a causa de todos os males da mulher muçulmana. É uma forma habilidosa de não admitir que a verdadeira causa desses males, ou pelo menos dos piores males, que são a fome, a miséria, a falta de empregos, que cortam o caminho da emancipação feminina, está na sua política de dominação do Médio Oriente e da Ásia Central, regiões que concentram as maiores reservas de petróleo do mundo.

O que oprime a mulher afegã não é propriamente o véu ou a burca. Esses são apenas símbolos que, inclusive já foram usados como símbolo de resistência às diversas investidas imperialistas contra a soberania e a cultura islâmicas.

A opressão da mulher, e não só da mulher muçulmana, mas de todas as mulheres trabalhadoras e pobres, agrava-se conforme se agravam as condições de vida. A pilhagem imperialista contra os países árabes torna cada vez mais distante a solução do problema da mulher porque agrava a situação económica, aumenta a fome e a miséria, a falta de emprego e de condições básicas de vida.

Sejamos categóricos: se o imperialismo americano e europeu conseguem aplicar seus planos no Médio Oriente, o horizonte para a mulher muçulmana ficará ainda mais dramático, com ou sem a burca. Porque a pilhagem imperialista na região, o espezinhar da soberania dos povos árabes e muçulmanos e o desprezo por sua cultura, não encontrarão obstáculos.

A síntese de Lenin, de que nenhum folheto educativo ou curso de cidadania será capaz de afastar a religião das massas oprimidas pelos trabalhos forçados do regime capitalista, enquanto as massas não aprenderem a lutar unidas e organizadas, de modo sistemático e consciente contra o domínio do capital em todas as suas formas, é perfeitamente aplicável no caso da burca e outras imposições culturais e religiosas. Serão as próprias mulheres muçulmanas, com suas lutas, que irão se consciencializar e superar as suas barreiras. Não será um governo imperialista a libertá-las.

 

Adaptado de artigo redigido por Cecília Toledo (PSTU)

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