Gaza e as cem Hiroshimas

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Ainda antes de chegar o novo ano, dobrou-se o cabo dos 20.000 mortos em Gaza sob o fogo de armas israelitas. Em proporção, este número equivale a 100.000 portugueses ou a três milhões de norte-americanos. É um por cento da população da Faixa de Gaza, ou seja, equivale a cem vezes a catástrofe de Hiroshima (a bomba atómica norte-americana exterminou “apenas” 0,01 por cento da população japonesa). Não se contam nos 20.000 mortos de Gaza os muitos milhares que estão desaparecidos sob os escombros, a morrer de fome, de sede, de doenças curáveis, de ferimentos tratáveis, de falta de cuidados médicos, e em breve também de frio num território onde mais de metade do parque habitacional já foi destruída e onde 29 dos 30 hospitais existentes já foram arrasados.

Vergonhosamente, grande parte da imprensa portuguesa, com destaque para a televisão pública, continua a falar de “guerra de Israel contra o Hamas” mas, para quem ainda tivesse dúvidas, os especialistas em direito internacional são categóricos: estamos a assistir a um genocídio perpetrado pelo Estado de Israel contra o povo palestiniano.

Incidentes sucessivos vão desmascarando o carácter da campanha israelita: os homens que são separados das suas famílias no bairro de Al Remal para serem sumariamente abatidos em seguida; os que são exibidos e fotografados semi-nus, como supostos combatentes do Hamas, e que eram, afinal, médicos e enfermeiros; os três reféns israelitas abatidos pelo exército depois de terem tentado entregar-se, agitando uma bandeira branca – exemplo revelador do destino reservado a todos os palestinianos que tentem render-se.

Também revelador é o facto de a agressão israelita não se limitar à Faixa de Gaza. Por toda a Cisjordânia sucedem-se os assassinatos em série e por vezes em massa, que foram mais de 300 desde outubro, as 4.500 detenções de adultos e crianças e os ataques mortíferos aos campos de refugiados. Só o de Jenine já sofreu 16 incursões do exército israelita desde outubro. É toda a resistência palestiniana que Israel pretende destruir, como mostra também a recente transferência de Marwan Barghouti, um dos mais populares dirigentes palestinianos, detido há mais de 20 anos, ou o rapto e detenção de Munther Amira, conhecido organizador e activista do campo de refugiados de Aida.

O mundo indigna-se com o genocídio, a Assembleia-Geral da ONU vota por larga maioria uma das suas habituais resoluções não-vinculativas, e os Estados Unidos bloqueiam no Conselho de Segurança qualquer resolução vinculativa. Os outros membros do Conselho de Segurança negoceiam uma resolução comum, que poupa aos EUA o impopular recurso ao veto, e acabam por aceitar um consenso estéril, que chora umas lágrimas de crocodilo sobre a catástrofe humanitária, mas que não diz uma palavra sobre a urgência de um cessar-fogo.

A União Europeia começa também a chorar as suas lágrimas de crocodilo, e com ela a diplomacia portuguesa, sem se mostrarem preocupadas com as cem Hiroshimas que já se abateram sobre Gaza. Os representantes de Israel continuam a ocupar as suas poltronas nas respectivas embaixadas.
Dos políticos cínicos e hipócritas que governam as grandes potências, nada se pode esperar. Mas há felizmente muito a esperar de um movimento de massas que atinge proporções só comparáveis àquele que combateu a invasão do Iraque em 2003.

Em Londres, na Irlanda, em Espanha e nos Estados Unidos e mesmo em países onde as manifestações foram proibidas, como a França ou a Alemanha, centenas de milhares de pessoas encheram as ruas em protesto contra a agressão israelita e em solidariedade com a resistência palestiniana. Como resultado da campanha de boicote contra Puma, iniciada em 2018, a marca, acusada de cumplicidade com o apartheid israelita por patrocinar a Federação de futebol de Israel que mantém clubes nos colonatos, acaba de anunciar que não renovará o seu contrato. Nos portos de Barcelona, da Bélgica e da Califórnia, os estivadores recusaram-se a carregar armamento destinado a Israel.

Em Portugal, o movimento de solidariedade nas ruas não tem atingido a mesma envergadura que nestes países. Mas uma campanha direcionada para cortar as pontes entre o sionismo e sectores da economia ou da sociedade que este procura influenciar pode ser a chave para uma contribuição portuguesa na campanha global contra o genocídio. Há exemplos muito recentes a seguir, como o da realizadora Catarina Vasconcelos, que retirou o seu filme em competição no IDFA, após a direcção deste prestigiado festival de cinema de Amsterdam ter condenado um grupo de participantes que tinha ousado gritar “From the river to the sea, Palestine will be free”. E há o exemplo dos quase duzentos profissionais de saúde que assinaram uma carta aberta apelando ao cessar-fogo e ao fim do bloqueio a Gaza e do apartheid israelita.

É com a nossa participação activa no movimento internacional de Boicote, Desinvestimento e Sanções – BDS – que em Portugal podemos contribuir para uma Palestina livre da colonização.

Elsa Sertório, membro do Comité de Solidariedade com a Palestina

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