As presidenciais francesas são mais um reflexo da crise de dominação capitalista a nível mundial. Vemo-lo nos EUA, com a profunda divisão e instabilidade que a burguesia trumpista tem protagonizado. Vemo-lo em França e, agora, num grau mais avançado que nas últimas presidenciais, em 2017.
O desaparecimento eleitoral dos tradicionais partidos do “centrão” – PS francês e partidos de centro-direita – reflecte a decadência estrutural do regime presidencialista francês e dá lugar a uma crescente polarização política e social. É precisamente em França que, nos últimos anos, se têm feito sentir os maiores níveis de contestação social europeia, movimento muito disputado tanto pela esquerda como pela extrema-direita. Isto deve-se a uma presidência que manteve a juventude, trabalhadores, classe média e pequenas e médias empresas sob um duro processo de proletarização, nos últimos 5 anos, enquanto distribuiu benefícios às classes dominantes. Não é por acaso que Macron ficou conhecido como o presidente das elites.
Apesar da forte contestação dos últimos anos, Macron não sai derrotado na primeira volta das eleições francesas. Consegue ficar em 1º lugar, conquistar 9,78 milhões de votos, 27,8%, sobretudo, nas maiores e mais prósperas cidades francesas. Foram mais 1,1 milhões de votos que a sua candidatura de 2017 e com uma maior diferença face ao 2º lugar, ocupado novamente por Le Pen. A pressão para o “voto útil” em Macron como o candidato melhor colocado para evitar uma possível vitória da extrema-direita de Le Pen explicará grande parte deste resultado. Outro elemento importante terá sido o esforço de Macron por se colocar na dianteira das negociações diplomáticas, antes da invasão russa da Ucrânia, conseguindo mobilizar uma parte importante da base eleitoral ao centro, nas principais regiões urbanas. Macron consegue assim ocupar o espaço ao centro, mas, sem par de alternância, não conseguirá cumprir o papel de “vira o disco e toca o mesmo” dos tradicionais “centrões”.
A polarização favoreceu o crescimento da extrema-direita de Le Pen e da esquerda de Mélenchon, que, com campanhas centradas na questão do aumento do custo de vida, atingem resultados semelhantes, com ligeira vantagem para os primeiros. Le Pen ficou em 2º lugar, à frente de Mélenchon, que ficou em 3º lugar, por apenas 420 mil votos de diferença. É deplorável que o conjunto da esquerda não tenha encontrado alguma plataforma de entendimento para evitar que a extrema-direita fosse a uma 2º volta, mas já lá iremos.
Na extrema-direita, Le Pen consegue 8,1 milhões de votos, 23,2%, mais cerca de 460 mil votos que em 2017, e surge Zemmour, racista convicto, destilador do mais abjecto nacionalismo e autoritarismo, que vem ocupar uma parte da extrema-direita deixada pela relativa moderação de Le Pen, conseguindo conquistar o 4º lugar, com 2,5 milhões de votos e 7,1%. Nunca a extrema-direita tinha conseguido tão grande resultado numa primeira volta das eleições francesas. A relativa moderação de Le Pen, no último período, e a oportunista concentração da sua campanha sobre os principais problemas sentidos pela classe trabalhadora, classes intermédias e pequenos proprietários trouxeram resultados, sobretudo, nas regiões mais rurais do Nordeste e Sul de França, assim como em cidades menos abastadas, como Marselha. Zemmour parece acabar por cumprir o contraditório papel de limitar o crescimento de Le Pen, ocupando uma parte da sua base eleitoral, sobretudo a Sul e na capital, mas alargar a base eleitoral da extrema-direita como um todo. Em conjunto, a extrema-direita alcançou os 10,6 milhões de votos.
À esquerda, precisamos recuar às eleições francesas de 1969 para encontrar um resultado eleitoral, à esquerda do PS francês, tão expressivo quanto o actual de Mélenchon, que conquista 7,7 milhões de votos, 22%, mais 655 mil votos que em 2017, numa campanha marcada pela resposta ao aumento dos preços, aumento do salário mínimo, diminuição da idade da reforma, reforço da Saúde pública e por um novo sistema democrático1.
Ainda à esquerda, o PCF, o NPA e a LO registam votações, modestas e em declínio, de 2,3% (802 mil votos), 0,8% (269 mil votos) e 0,6% (197 mil votos), respectivamente. Perante o perigo real de a extrema-direita poder vir a ganhar as eleições presidenciais francesas e mediante a possibilidade, também ela real, de Mélenchon ter conseguido chegar à 2ª volta, no lugar de Le Pen, é de uma profunda cegueira sectária que o conjunto da esquerda não tenha encontrado alguma plataforma de entendimento para derrotar a extrema-direita. Em conjunto, a esquerda, sem considerar o PS francês, alcançou os 9 milhões de votos, mas não consegue colocar-se em posição de representar uma alternativa viável à juventude e trabalhadores que dispute a presidência com Macron.
As possibilidades de Le Pen vir a ser eleita presidente nunca foram tão altas. As actuais sondagens apontam que Macron consegue apenas 51% a 54% das preferências de voto, contra 46% a 49% para a nacionalista, logo, dentro da margem de erro.
Le Pen, colocando-se como uma suposta candidata anti-sistémica, conseguirá capitalizar uma parte considerável do descontentamento popular e da polarização política da sociedade francesa, assim como o apoio dos sectores burgueses mais nacionalistas e autoritários. Macron beneficiará do apoio da maioria dos sectores sociais mais abastados, assim como da maioria da burguesia nacional e internacional. As classes dominantes das potências da NATO e da UE torcerão por Macron, face à possibilidade de a França poder vir a sair da Aliança Atlântica, tal como defendido por Le Pen, ou “face à possibilidade de uma ‘admiradora de longa data do Presidente russo Vladimir Putin’ passar a mandar num dos países mais importantes dos 27”2. Qual destas conjugações de grupos sociais conseguirá ter mais peso eleitoral, é ainda uma incógnita.
Sem que signifique diretamente uma derrota irreversível da juventude e dos trabalhadores, uma possível vitória eleitoral da extrema-direita, num país central da Europa, como França, é um perigo gigantesco no caminho do autoritarismo, nacionalismo, racismo e até no sentido do acirrar das disputas imperialistas internacionais e da escalada dos conflitos militares. Esperamos estar errados, mas a cegueira sectária da esquerda francesa pode vir a sair-nos cara, a toda a juventude e classe trabalhadora europeias. Também em França, a juventude e os trabalhadores têm um importante caminho a percorrer para criar uma alternativa política de esquerda, anticapitalista que vá ao encontro das suas necessidades e anseios.
1 https://melenchon2022.fr/programme/version-courte/
2 https://expresso.pt/internacional/2022-04-11-Le-Pen-tem-hipoteses-de-vencer–Tantas-como-Trump-em-2016.-Eis-os-factores-decisivos-da-batalha-pela-Franca-914b74f0