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Capitalismo incubador de pandemias

Temperaturas extremas, furacões intensos, ondas de calor, subida do nível do mar, incêndios florestais, secas crónicas, escassez de água, crises alimentares e… pandemias.

Há pelo menos duas décadas, que cientistas e ativistas ambientais alertam governos para os efeitos devastadores da forma agressiva como o sistema capitalista explora o planeta, levando-o a um desequilíbrio que coloca a nossa existência, enquanto espécie, em risco. Hoje, a pandemia da COVID-19 torna mais visível a fragilidade do sistema para lidar com uma crise epidémica, dando também uma perceção mais real do que significa termos de enfrentar pandemias cada vez mais frequentes devido ao aumento da temperatura média global e à destruição de ecossistemas.

Ao mesmo tempo, a atuação dos governos face à crise da COVID-19 tem sido comparada, não por acaso, à sua atuação perante a crise climática, com uma recusa inicial em ouvir os alertas dos especialistas e agir preventivamente, seguida da colocação em marcha de medidas de contingência não só tardias como insuficientes, deixando claro que, até nos cenários mais catastróficos, a prioridade do sistema capitalista continua a ser a preservação do lucro, mesmo que o preço a pagar seja a vida de milhares de pessoas


Compreender as alterações climáticas: de onde vêm e para onde nos levam?

Todas as formas de vida que conhecemos não existiriam se não fosse pelo efeito de estufa, já que é este processo que impede a Terra de ter – como Marte, por exemplo – amplitudes de temperatura extremas entre o dia e a noite. De forma simples, os gases de efeito de estufa (GEE) absorvem parte do calor e da energia que recebemos do espaço, mantendo o planeta aquecido e em níveis estáveis, enquanto outra parte é radiada de volta. Sem este mecanismo, o planeta seria cerca de 30ºC mais frio do que é hoje.

No entanto, desde o início da revolução industrial, a concentração de GEE presentes na atmosfera tem vindo a aumentar exponencialmente, devido sobretudo a emissões de CO2 provenientes da queima de carvão, gás e petróleo, provocando um grande desequilíbrio neste mecanismo natural. Mais GEE significam mais calor e energia a serem absorvidos na nossa atmosfera, motivo pelo qual nos confrontamos hoje com o aquecimento global do planeta.

De facto, a temperatura média na superfície da Terra aumentou cerca de 1.1ºC, em pouco mais de um século, o que significa uma mudança a uma velocidade sem precedentes, já que as alterações climáticas que ocorreram no passado, todas elas anteriores à nossa existência como espécie, foram processos lentos de milhares de anos. Concretamente, os últimos 5 anos foram os mais quentes de que há registo, com efeitos que já se fazem sentir em todo o globo, como, por exemplo, catástrofes naturais mais intensas e frequentes, a subida do nível do mar e a perda de biodiversidade.

Quanto mais a temperatura aumenta, maior o desequilíbrio que enfrentamos e mais intensos os seus efeitos, sendo que, a partir de certo patamar (aquecimento de mais de 2ºC), começaremos a alcançar pontos sem retorno que podem tornar as alterações climáticas irreversíveis, pois perderemos o controlo sobre um conjunto de mecanismos naturais que contribuirão para o aquecimento global, num efeito de bola de neve. Por exemplo, se a Terra aquece, temos mais incêndios, que libertam mais CO2 para atmosfera e por sua vez aquecem mais o planeta e provocam ainda mais incêndios; o derretimento do gelo do Ártico leva a que haja mais superfície de água, a qual absorve mais calor do que o gelo, pelo que os oceanos aquecem e mais gelo derrete; as reservas de permafrost (o gelo permanente) na Sibéria derretem, libertando grandes quantidades de metano (um gás com efeito de estufa cerca de 20 vezes mais potente que o CO2) para atmosfera, causando mais aquecimento e, portanto, mais derretimento.

Os estudos mais otimistas e conservadores apontam que nos devemos manter abaixo de 1,5ºC de aquecimento para impedirmos o colapso, mas mesmo esse limite exige uma redução drástica das emissões a nível global, visto que, ao atual ritmo de exploração e produção, demoraremos apenas 5 a 10 anos a atingir essa meta e até ao fim do século alcançaremos um aumento de 5ºC, cenário em que teríamos já vastas regiões completamente inabitáveis devido a secas e cheias, bem como escassez de alimentos e de água potável, gerando crises migratórias sem precedentes em busca da possibilidade de sobreviver. Atualmente, os governos de todo o mundo assumem, segundo o Acordo de Paris, a necessidade de reduzir emissões de maneira a manter o aquecimento abaixo de 2ºC, mas não só as metas estabelecidas são insuficientes para impedir que se ultrapasse esse aumento, como também as emissões de CO2 já aumentaram 4% desde a assinatura do acordo em 2015.


As alterações climáticas e o aumento das pandemias

O sistema capitalista, baseado na exploração desenfreada de recursos, cria mercadorias e serviços sem uma orientação para a satisfação das necessidades, tendo como finalidade a acumulação de mais e mais capital, o mais rapidamente possível, por parte daqueles que individualmente detêm os meios de produção. É um sistema orientado para o crescimento infinito dos lucros de uma minoria, num planeta cujos recursos são finitos. Tal como explicou Engels, “como os capitalistas individuais estão envolvidos na produção e na troca em prol do lucro imediato, apenas os resultados imediatos mais próximos são levados em consideração. Enquanto o fabricante ou comerciante individual vender uma mercadoria fabricada ou comprada com o habitual lucro cobiçado, ficará satisfeito e não se preocupará com o que posteriormente se tornará da mercadoria e de seus compradores. O mesmo se aplica aos efeitos naturais das mesmas ações. O que importava os fazendeiros espanhóis em Cuba, que incendiaram florestas nas encostas das montanhas e obtiveram das cinzas fertilizante suficiente para uma geração de cafeeiros altamente lucrativos – o que os preocupou que as fortes chuvas tropicais depois lavassem o estrato superior desprotegido do solo, deixando para trás apenas rocha nua! Em relação à natureza, quanto à sociedade, o modo atual de produção está predominantemente preocupado apenas com o resultado imediato, o mais tangível; e então se surpreende que os efeitos mais remotos das ações direcionadas a esse fim acabam sendo bastante diferentes, são em grande parte completamente opostos em seu caráter” (Dialética da Natureza, 1883).

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Fonte: Global Carbon Project e NOAA

Esta forma devastadora de o ser humano interagir com o planeta, intrínseca ao sistema capitalista, tem dois resultados que, juntos, são a receita perfeita para que, a par de outros impactos extremamente negativos, também o aumento de pandemias se vá tornando uma constante: por um lado, o aumento da temperatura devido às emissões excessivas de CO2 provenientes da queima de combustíveis fósseis e, por outro, a destruição de habitats selvagens para exploração cada vez mais profunda de recursos em locais anteriormente inacessíveis ao ser humano. Assim, podemos resumir em 3 pontos-chave os motivos pelos quais estes dois elementos da realidade fazem do capitalismo um verdadeiro incubador de epide­mias.

Em primeiro lugar, o aumento do contacto entre animais selvagens e humanos expõe-nos a mais doenças. A destruição de habitats, tanto direta – através da intervenção humana em busca de novos locais de extração de recursos– como indiretamente – através do colapso de ecossistemas devido às catástrofes naturais causadas pelo aquecimento global –, leva forçosamente a uma maior proximidade na competição por recursos entre a nossa espécie e outras espécies animais, o que aumenta o número de doenças zoonóticas (doenças infeciosas naturalmente transmissíveis entre animais e humanos) a que estamos expostos. O insuspeito John Scott, responsável de risco da seguradora Zurich Insurance Group, publicou um artigo no site do Fórum Económico Mundial onde afirma que a “desflorestação tem aumentado constantemente nas últimas duas décadas e está ligada a 31% dos surtos, como o vírus do ébola, do Zika e de Nipah”, pois a “desflorestação afasta os animais selvagens dos seus habitats naturais e a aproxima-os das populações humanas, criando uma grande oportunidade para doenças zoonóticas”.

Vários cientistas já alertaram para o facto de as alterações climáticas poderem tornar os surtos de ébola – vírus que tem como reservatório mais provável o morcego-da-fruta e que matou milhares de pessoas na África Ocidental, em 2014 – uma realidade constante e cada vez mais alargada nessa região, uma vez que os morcegos preferem, em geral, habitats quentes e húmidos, sendo expectável que, ao ritmo atual de emissões, a área total favorável à sua acomodação aumente pelo menos um quinto em relação a hoje. Mesmo em relação à COVID-19, a hipótese mais provável trabalhada pelos especialistas é a de que o vírus tenha sido transmitido, de animais para pessoas, num mercado de Wuhan, na China, tendo como intermediário de transmissão da doença um pangolim, o qual estaria infetado pelo contacto com morcegos. Como referiu Jorge Palmeirim, presidente da Liga para a Proteção da Natureza, em entrevista ao Expresso, “muitas dessas espécies selvagens estão imunes a esses vírus nos seus ecossistemas, mas quando são introduzidas no consumo humano abre-se a porta para pandemias como a que estamos a assistir”, as quais, num mundo globalizado, rapidamente se espalham por todo o globo.

A destruição da Amazónia e da selva africana ou a caça desenfreada de animais selvagens são exemplos de práticas que levam os seres humanos a entrarem em contacto com espécies com as quais nada contactávamos, espécies essas que transportam novas doenças, vírus e bactérias que as nossas defesas naturais não estão preparadas para combater. Kate Jones, investigadora de Ecologia e Biodiversidade na University College de Londres, afirmou no início de abril que o surto de COVID-19 “é em grande parte devido ao comportamento humano. Estamos a mudar a transmissão das dinâmicas entre a vida selvagem e as pessoas ao converter paisagens e deslocar espécies domésticas como nunca aconteceu antes, expondo-nos nós próprios a novos agentes patogénicos”.

Ao mesmo tempo, o aquecimento global cria mais condições habitáveis para doenças tropicais, como a febre-amarela, a dengue e a malária, já que, num planeta mais quente, aumenta o território em que certos patogenos (organismos que produzem doenças infecciosas) se sentem confortáveis para se desenvolver. Se o ritmo atual de emissões se mantiver, teremos já em 2050 cerca de metade da população total do globo a viver em áreas onde o mosquito Aedes aegypti terá condições ótimas para o seu desenvolvimento, sendo este um vetor de transmissão de várias doenças (como dengue e Zika) e uma das maiores ameaças à saúde humana, devido à resiliência que apresenta em ambientes urbanos e à preferência que tem por locais de água parada em torno de casas. Moritz Kraemer, epidemologista no Hospital Pediátrico de Boston, afirma no seu estudo que “os mosquitos já estão bem estabelecidos em muitos locais, mas embatem numa barreira que não conseguem ultrapassar porque o clima não é o certo para eles. Assim que o clima se tornar favorável, os mosquitos poderão avançar rapidamente para chegarem a esses novos sítios”.

O mesmo se aplica ao mosquito tigre asiático, que também é um transmissor de dengue e Zika e que será capaz de se espalhar pela Europa e EUA. Ainda no mesmo estudo, Kraemer afirma que, devido ao aumento da temperatura média que já alcançámos, até nos estudos de melhor-cenário estaremos a enfrentar “uma tendência crescente, que é alarmante no sentido em que esperamos a expansão destes mosquitos independentemente de como adaptarmos as nossas emissões”. Nos estudos de pior-cenário, os especialistas apontam para que haja, ainda neste século, um aumento de mil milhões de pessoas infetadas pela primeira vez por estes vírus.

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Em segundo lugar, os fenómenos de seca extrema e prolongada, a perda massiva de territórios habitáveis e propícios à agricultura, bem como a maior incidência de catástrofes climáticas em várias partes do globo irão provocar migrações em massa, as quais também contêm um alto potencial para gerar surtos epidémicos, tanto nas deslocações internas para grandes áreas urbanas como nas deslocações de populações entre países. Em ambos os casos, a falta de recursos e a sobrepopulação implicarão um aumento da vulnerabilidade às doenças. No seu relatório sobre o papel das alterações climáticas nos conflitos e deslocações, a Fundação por Justiça Ambiental refere como exemplo o caso da Síria, salientando que a migração provocada pelas alterações climáticas contribuiu significativamente para o aumento de tensões nos anos anteriores ao estalar do conflito, uma vez que, no seguimento de uma seca prolongada, mais de um milhão de pessoas tiveram de abandonar os territórios onde viviam para se concentrarem em torno de centros urbanos como Homs e Damasco, pois a falta de água levou, entre 2006 e 2010, ao colapso de cerca de 75% das quintas sírias e, nalgumas regiões, os agricultores perderam 80% das suas criações de gado, acrescentando às tensões políticas de regime, fatores como a escassez de água, a insegurança alimentar, sobrepopulação e falta de condições sanitárias.

Se não houver uma redução séria de emissões, a projeção do Banco Mundial é de que as migrações devido a desastres naturais alcancem 143 milhões de pessoas até 2050. Os exemplos hoje em dia já nos permitem ver como o sistema capitalista lida com estas situações de vulnerabilidade, colocando milhares de pessoas em campos de refugiados sobrelotados, com acesso extremamente limitado a água e a comida e onde é pouco afirmar que faltam condições sanitárias, todos eles fatores que contribuem e contribuirão cada vez mais para o aprofundar do aparecimento de surtos de doenças que se propagarão rapidamente, ao mesmo tempo que as próprias deslocações de migrantes contribuirão para o contágio.

Em terceiro lugar, o derretimento do permafrost, que cobre atualmente cerca de 25% da superfície terrestre do hemisfério norte, não se limitará a libertar grandes quantidades de gás metano para a atmosfera. O desaparecimento do gelo e a consequente exposição dos solos que têm estado congelados há milhares de anos permitirão também a libertação de patogenos desconhecidos, trazendo de volta vírus e bactérias de há seculos atrás com os quais nunca contactámos e, portanto, não só desconhecemos como não estamos imunes a eles. O permafrost é o ambiente ideal para micróbios, vírus e bactérias permanecerem conservados e vivos por milhares de anos, uma vez que é um ambiente frio, escuro e onde falta oxigénio. Em 2016, um rapaz de 12 anos foi contaminado por antrax, na Sibéria. Pelo que os dados apontam, o seu contágio aconteceu devido ao descongelamento de um cadáver de rena afetado por esta doença décadas antes, o qual terá libertado a bactéria para a água e o solo, infetando 2000 renas, o que levou à contaminação e hospitalização de pelo menos 20 pessoas, revelando que a bactéria em nada tinha sido afetada pelo largo período de congelamento.

A par deste exemplo, cientistas descobriram já dois tipos de vírus conservados no permafrost, um deles com 30 mil anos de idade, e ambos os vírus rapidamente se tornaram infeciosos, ainda que estes em particular não afetem os humanos. Jean-Michel Claverie, da Universidade de Aix-Marseille em França, afirma que “vírus patogénicos que podem infetar humanos ou animais podem estar preservados em camadas antigas de permafrost, incluindo alguns que causaram epidemias globais no passado”. No entanto, e apesar do perigo que o derretimento já representa por si só, grandes empresas e governos consideram atualmente a hipótese de aproveitarem o facto de a costa Norte da Sibéria se tornar agora mais acessível para iniciar projetos de exploração industrial que se estão a tornar agora rentáveis, como a mineração de ouro ou perfurações para extração de petróleo e gás. Claverie alerta que “neste momento, estas regiões são desertas e as camadas mais profundas de permafrost são intocadas. No entanto, estas camadas antigas podem ser expostas por escavações envolvidas nas atividades de mineração e perfuração. Se ainda lá estiverem partículas de vírus viáveis, isto pode significar uma catástrofe”.


O modelo de exploração capitalista empurra-nos para o caos

É urgente mudarmos a forma como interagimos com o planeta, mas o sistema capitalista não suporta a mudança radical de que precisamos. Tal como Marx descreveu, o capitalismo deu início a uma “rutura metabólica” entre as nossas sociedades e a Natureza no seu conjunto, pois os processos que servem de base ao modelo económico e social capitalista, de caráter rápido e cada vez mais acelerado, não são compatíveis com os ciclos longos do sistema terrestre, o que torna a atividade humana capitalista insustentável. Ao mesmo tempo, a indústria de combustíveis fósseis tem sido uma das pedras basilares de todo o sistema produtivo capitalista, primeiramente com o carvão e depois com o petróleo e o gás. Mesmo após o acordo de Paris, os 33 maiores bancos do mundo investiram 1,9 triliões de dólares para financiar os combustíveis fósseis, apesar de ser de conhecimento geral que os 20 principais emissores de GEE no mundo são petrolíferas como a Chevron, a Exxon-Mobil, a BP e a Shell, empresas que gastam 195 milhões de dólares, por ano, com o financiamento de estudos e propostas políticas destinadas a atrasar ou bloquear medidas de combate às alterações climáticas.

A relação do capitalismo com os combustíveis fósseis é de tal forma umbilical, que a mudança drástica e imediata de que precisamos para resolver a crise climática não está ao nosso alcance dentro deste sistema, que coloca e colocará sempre o lucro à frente da vida das pessoas. Da mesma forma, só teremos a possibilidade de lidar com o aparecimento mais frequente de epidemias num sistema que seja capaz de suportar a existência universal de serviços de saúde públicos, gratuitos e de qualidade, direcionados às necessidades das populações. O controlo de emissões exige, além da nacionalização de setores estratégicos como a energia, os transportes e a saúde, que a prioridade de investimento seja a transição energética. É necessário reconverter fábricas e edifícios e requalificar trabalhadores, requisitando às grandes multinacionais os lucros que estas têm obtido à custa de hipotecarem o nosso futuro. Tudo isto, a fim de que sejamos capazes de, no tempo que nos resta, substituirmos o capitalismo por um sistema que neutralize as emissões de forma socialmente justa, planificando a produção, organizando a distribuição e criando emprego ambientalmente sustentável.

Afinal, justiça climática é justiça social.

 

Referências

“Special Report: Global Warming of 1.5 ºC,” Intergovernmental Panel on Climate Change,

Glenn Scherer, “Climate Science Predictions Prove Too Conservative”, Scientific American, December 6, 2012,

Ian Angus, Facing the Anthropocene: Fossil Capitalism and the Crisis of the Earth System (New York: Monthly Review Press, 2016), chap. 6.

 

Publicado originalmente na Revista Ruptura 156, Maio 2020

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