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Eleições na Bolívia 2020

No passado dia 18 de Outubro, o povo da Bolívia foi às urnas. Este ato eleitoral decorreu durante uma conturbada crise política que sucedeu ao golpe militar reacionário que depôs o antigo presidente Evo Morales.

O resultado é o reflexo claro das mobilizações massivas, protagonizadas pelo povo boliviano, durante o último ano, contra o golpe militar que as elites bolivianas, com o apoio de Trump e Bolsonaro, impuseram ao país. Esta é uma importante vitória da mobilização do povo boliviano que, mesmo sem grande apoio das principais forças políticas e sindicais capitaneadas pela cúpula de Evo Morales, não se deixou derrotar.


Eleições de 2019 e o Golpe Militar

Devido às condições extraordinárias em que decorreram estas eleições ? somando-se à situação de golpe militar e de crise sanitária ?, é ainda mais crucial descrever todo o contexto político que se vive na Bolívia.

No dia 20 de Outubro de 2019, a Bolívia teve eleições para a câmara de deputados, para o senado, e para a presidência. O tribunal constitucional permitiu ao presidente incumbente, Evo Morales, concorrer para um quarto mandato, apesar da constituição ter um limite de três mandatos consecutivos. Depois de algum atraso na contagem de votos (normal para o processo eleitoral da Bolívia) a oposição, de direita e extrema-direita, mobilizou-se na rua, contestando as eleições que davam uma nova vitória a Morales. Uns dias depois, os militares e chefes da polícia aumentaram a pressão e exigiram a demissão de Evo Morales, que ainda cumpria o seu terceiro mandato. Morales acabou exilado no México.

A demissão de Evo Morales levou a fortes mobilizações populares pelo país, encabeçado especialmente por setores indígenas e mestiços, assim como importantes sectores operários, onde Morales tem maior apoio. As forças policiais reprimiram brutalmente as mobilizações, chegando mesmo a praticar actos de guerra civil, através de massacres e tortura sobre dirigentes do partido de Evo Morales e manifestantes. Por entre o caos político, a vice-presidente do Senado, Jeanine Áñez, autoproclamou-se presidente da Bolívia. Para além de Áñez, outras forças de direita ganharam mais voz durante esta altura, em especial Luís Camacho, de extrema-direita, que levou uma bíblia para o palácio presidencial proclamando que Deus ajudou a Bolívia a ver-se livre dos “satanistas”, num episódio digno da idade medieval onde o Estado laico ainda era uma miragem.

Sob a presidência de Jeanine Áñez, rapidamente ficou demonstrado o caráter do governo que as elites bolivianas pretendem implementar no país. A Bolívia assistiu a uma reviravolta das suas relações internacionais. Sofreu uma brusca aproximação aos EUA e ao Governo brasileiro de Bolsonaro, colocando-se ao serviço do imperialismo americano na região. Durante a crise pandémica provocada pela Covid-19, o Governo de Áñez foi também criticado, não só pela má gestão da crise, como também por alegações de corrupção na compra de ventiladores a Espanha. Vale a pena lembrar que, durante este mandato, o partido de Evo Morales, o MAS (Movimento ao Socialismo), manteve uma maioria na câmara de deputados.


Novas eleições

Originalmente, o governo interino marcou eleições para dia 3 de Maio de 2020, tendo sido posteriormente adiado para dia 6 de Setembro, devido à pandemia. Foi novamente adiado para 18 de Outubro, momento em que Áñez não conseguiu mais suportar a pressão dos manifestantes que resistiram ao golpe e que estavam fartos dos sucessivos adiamentos a um processo eleitoral há muito prometido.

Foram três as principais opções no boletim de voto. Pelo MAS concorreu Luís Arce, antigo ministro da economia e finanças do Governo de Morales; pelo Comunidad Ciudadana, de centro-direita, Carlos Mesa; e Luís Camacho pela extrema-direita, entre outros candidatos de menor expressão. As eleições deram uma vitória expressiva ao MAS, com mais de 54,5% dos votos, sem necessidade sequer de uma segunda volta.

Jeanine Áñez, cara da oposição golpista, depois de um ano marcado por uma forte resistência popular ao golpe que encabeçou, à qual respondeu com a mais brutal repressão, depois de vários casos de corrupção, depois de uma vergonhosa condução da crise pandémica, à semelhança dos seus aliados Trump e Bolsonaro, e com os efeitos de uma crise económica mundial que se aprofunda, acabou por desistir da sua candidatura numa tentativa de unir o voto anti-MAS.

Para além destes factores, e mais importante, parece-nos evidente que a crise mundial que atravessamos e a fragilidade em que o Governo Trump e seus aliados se encontram, à beira de uma possível derrota presidencial nos EUA, formam a constelação de elementos que explicam que as elites bolivianas golpistas tenham acabado por ser forçadas a canalizar o golpe para as urnas e se tenham contentado tão rapidamente com a derrota eleitoral. Para a história, fica a exemplar mobilização do povo boliviano contra as elites de direita, corruptas e ultraconservadoras.


O futuro do povo da Bolívia

Mesmo com a vitória do MAS, a situação política na Bolívia não está resolvida para o povo boliviano. Por um lado, têm elites selvagens  que, aliadas às forças armadas e aos EUA, já demonstraram a sua facilidade em cometer brutais ataques contra o povo organizado para  aumentar significativamente o seu grau de exploração e extracção de riqueza; por outro, o MAS de Evo Morales vai implementando uma política de coexistência pacífica com essas elites e com o imperialismo, enquanto ilude as massas de que caminham para um sistema diferente do capitalismo, algo semelhante ao que os Governos Lula fizeram e que resultaram no actual Governo Bolsonaro.

Neste cenário, e sob pena de se voltar a repetir um golpe militar por parte das elites bolivianas, o que não é raro na Bolívia, é fácil ver que a conciliação de classes que tem caracterizado os governos da Bolívia desde 2006 é parte do problema e não da solução.

O MAS deste último ano tem mostrado a sua face mais capituladora ao não apoiar as mobilizações populares do #FueraÀñez. O novo Governo de Luís Arce será certamente uma continuação desta política, numa tentativa ingénua de não intensificar os conflitos com a direita. Aliás, numa das suas primeiras declarações depois da vitória, Arce confirmou que irá “governar para todos”, afirmando ainda que “já chega de lutar por questões e interesses estritamente pessoais ou grupais. Vamos construir todas as pontes necessárias para que possam ver que existe uma possibilidade de governar para todos.” Branqueando quer os interesses antagónicos que caracterizam estes “grupos”, quer o efeito do imperialismo americano na região e, consequentemente, na política nacional.

Lançamos assim todo o nosso apoio e solidariedade para com os trabalhadores e camponeses da Bolívia que, durante um ano, resistiram ao golpe imperialista. No entanto, é importante deixar claro que este novo governo não representará os seus interesses nem estará ao seu lado nas lutas mais importantes do país. O povo boliviano precisa de um novo partido independente, insubmisso e assertivo na defesa dos seus interesses.

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