Crise bancária: o espernear do capitalismo em falência

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Desde Março, colapsaram 4 bancos nos EUA: o especialista no sector tecnológico, Silicon Valley Bank, e os especializados em criptoactivos, Silvergate Bank e Signature Bank. O último a colapsar, já em inícios de Maio, foi o First Republic Bank. Na Europa, o veterano Credit Suisse foi alvo de uma resolução relâmpago, fazendo ressurgir os receios quanto à solidez do gigante alemão Deutche Bank.

Os analistas credenciados rapidamente se anteciparam a garantir que não existe nenhum problema estrutural nos sistemas financeiros das principais potências económicas, procurando afastar uma corrida aos depósitos que pudesse culminar num contágio generalizado, assim como fizeram questão de reforçar que a falência do banco europeu, Credit Suisse, nada tem a ver com o colapso daqueles bancos americanos. 

De acordo com os opinadores oficiais, a razão do colapso daqueles bancos americanos deve-se à excessiva concentração da sua actividade em sectores que têm sofrido importantes desvalorizações, fruto do repentino aumento das taxas de juro. Já o Credit Suisse é vítima de anos de má gestão que culminaram com os seus accionistas a negarem novos reforços de capital. 

Com a devidas actualizações, os “erros de gestão” e a “incompetência das administrações” foram precisamente os mesmos argumentos que nos ofereceram em 2008, mas que de nada serviram para entender a crise económica que atravessamos e muito menos resolvê-la. A regulação para evitar os tais “erros de gestão” multiplicou-se, mas parece que de pouco ou nada serviu.

O problema é mais profundo e, para ser resolvido, exige medidas que não passam pela ilusão da regulação, muito menos pelo logro de que serão as classes dominantes a regular a sua própria voracidade. 

Que problema enfrentam as principais potências económicas capitalistas?

Tal como caracterizámos desde o início de 2022, a inflação que atravessamos deveu-se, (i) em parte, às restrições na oferta, provenientes das disrupções causadas pela crise pandémica e (ii) em parte, causadas pela invasão russa da Ucrânia; e, (iii) em parte, à especulação de grandes grupos económicos e financeiros que encontraram nestes eventos a justificação conveniente para recuperar os lucros perdidos durante a pandemia. 

Estando a pandemia debelada e tendo os preços da energia descido abaixo do patamar pré-invasão russa da Ucrânia, a inflação continua a explicar-se pelo único factor que parece sobrar: especulação para aumentar lucros e, sim, como temos assistido, os lucros apresentados por distribuidores, bancos e empresas petrolíferas são astronómicos. 

Até a Reserva Federal e o BCE já reconheceram que a inflação que atravessamos se deve à avidez pelo aumento dos lucros e não pelo aumento dos custos de produção, nomeadamente dos salários. Aos salários tem-se reservado o destino habitual: desvalorização.

Portanto, a inflação que atravessamos é o resultado do aproveitamento desesperado das classes dominantes das principais potências económicas imperialistas para contornar o seu principal problema: a baixa produtividade ou, por outras palavras, a falta de capacidade, registada nas últimas décadas, para manter a acumulação de lucros em crescendo à custa do factor trabalho. Não nos esqueçamos que as principais economias mundiais atravessam, desde o início do século, um longo período de crescimento anémico, polvilhado de crises, expressão da sua fraca capacidade de acumulação de lucros. A baixa produtividade é mesmo o problema que está na raiz da decadência das principais potências económicas. 

E este problema acumula-se há décadas. Desde 1970 que as classes dominantes das principais potências económicas enfrentam uma quebra continua da sua produtividade. Para tentar contrariar tal problema, os mais variados governos converteram-se ao neoliberalismo que operou uma reorganização internacional do trabalho e uma desregulação financeira mundial com vista ao aumento da especulação, naquilo que ficou conhecido como “globalização”, deslocando produção e capitais para o paraíso da produtividade, ou seja, para onde o valor da mão-de-obra é tão baixo que os lucros florescem exponencialmente: Europa de Leste, América do Sul e, sobretudo, Ásia.

No entanto, tal transformação mundial não só não foi suficiente para debelar o problema da falta de produtividade das principais potências económicas como o agravou. Por um lado, a crescente desregulação financeira das últimas décadas significou uma fuga contínua dos investimentos na economia real para os mercados financeiros, onde os lucros são mais apetecíveis e imediatos, socavando a produtividade de tais economias. Ou seja, com um aparelho produtivo em declínio, a produtividade não tem como se restabelecer, pois não há financeirização que a substitua – uma vez que esta é, em última instância, uma espectativa presente de que os valores produzidos na economia real se venham efectivamente a realizar no futuro. 

A crise de 2008 sinalizou precisamente mais um momento em que o capital financeiro das economias ocidentais ultrapassou o limite razoável de se poder vir, efectivamente, a realizar, na produção real. Tal desfasamento entre a finança e a produção real assumiu a forma de crise do subprime, nos EUA, em que as famílias deixaram de conseguir pagar, com os rendimentos auferidos, os seus créditos à habitação, ditando o colapso: falências em massa, desemprego e austeridade sobre as classes trabalhadoras. 

Ao longo destes 15 anos, a perda de produtividade das economias das potências centrais não foi restaurada, pelo que continuamos a afirmar que a crise de 2008 não foi debelada. A crise de produtividade foi, sim, maquilhada com o recurso a mais financeirização: crédito massivo às economias e sistema financeiro. Resumindo, quanto mais se procura tornear a perda de produtividade com o recurso ao crédito e à especulação financeira mais se tem socavado as possibilidades de recuperação produtiva.

Mas não é tudo. A crescente desregulação financeira transferiu importantes poderes de soberania que antes se concentravam nas mãos dos Estados nacionais para a alçada de instituições supranacionais, ao serviço dos interesses dos principais grupos económicos e financeiros multinacionais. A possibilidade de livre circulação de capitais, sem qualquer controlo, associado às novas tecnologias e ao caracter multinacional dos principais grupos económicos e financeiros determinou que os seus capitais deixassem de ter qualquer vínculo nacional, pelo que vão circulando pelas paragens que melhor servem à sua multiplicação especulativa, com especial destaque para os paraísos fiscais.

Daqui resultam dois importantes efeitos. A relação entre Estado e mercado foi completamente invertida. O Estado deixou de regular o que quer que seja que afecte os grandes interesses capitalistas e passou a ser regulado pelos interesses dos mercados, sobretudo, financeiros, onde se concentra a maioria do capital. Como resultado, os Estados são agora obrigados a uma intensificação crescente das medidas de incentivo à captação de investimento privado para as suas economias reais, comparticipando com recursos públicos fatias crescentes de investimento privado, numa declarada redistribuição de riqueza de baixo para cima. É nisso que consiste o actual Inflation Reduction Act, nos EUA, ou a “bazuca” europeia: subsídios públicos ao investimento que gerará lucros privados no lugar de investimento público produtivo, directo e planificado. É nisso que consiste também o rápido aumento das taxas de juro ao invés do controlo de preços e lucros. O aumento constante, nos últimos meses, das taxas de juro, traz como consequência a transferência de rendimentos de quem trabalha, via aumento brutal das prestações do crédito à habitação, diretamente para os bolsos da banca.

Por outro lado, tal mobilidade de capitais não contribui, muitas vezes, nem para a produtividade, uma vez que não é investido na economia real nacional, nem sequer para os Orçamentos do Estado nacionais dos seus “países de origem” – se é que podemos falar em “países de origem” -, uma vez que tem a capacidade de fugir à taxação fiscal nacional, resultando num aumento do endividamento público estatal.

Todos estes factores conjugados, resultam na actual decadência das potências imperialistas ocidentais. 

Para compreender a actual crise bancária…

A actual crise bancária resulta da conjugação destes factores. A falta de produtividade das principais economias mundiais transfere quantidades crescentes de capitais para os mercados financeiros em busca de lucros instantâneos. Tal transferência, associada à completa desregulação financeira, cria sucessivas bolhas financeiras, nos mais variados sectores, que rebentam à exacta medida do seu desfasamento face à economia real, num ciclo incessante

O que se está a passar é que o repentino aumento das taxas de juro dos bancos centrais está a alterar a rentabilidade entre activos financeiros. Com o aumento das taxas de juro de referência, as rentabilidades do mercado obrigacionista ou o risco dos criptoactivos dão lugar às rentabilidades e segurança mais apetecíveis de activos geridos por fundos de activos monetários, tais como depósitos, por exemplo, e os capitais estão a deslocar-se para estes últimos. 

Depois das falências bancárias de Março, para evitar mais falências, dar segurança àquele movimento de capitais de uns activos financeiros para outros e debelar qualquer possibilidade de uma corrida generalizada aos depósitos bancários, os bancos centrais dos EUA e da Suíça, acompanhados pelo BCE, reagiram rapidamente, garantindo todos os depósitos, por um lado, e disponibilizando novas linhas de crédito aos bancos como forma de evitar qualquer inesperado problema de liquidez na banca, por outro. 

Portanto, à superfície presenciamos mais um colapso financeiro, que não é mais que o fruto de uma economia real em declínio, cuja produtividade só será restaurada através da destruição dos capitais menos produtivos e, acima de tudo, da desvalorização salarial (perda directa de poder de compra dos trabalhadores e largos sectores de classe média e pequenos proprietários de negócios) e da destruição dos serviços públicos e das condições de vida das classes trabalhadoras.

É neste contexto que se tem registado uma estagnação ou até mesmo uma destruição salarial, diminuição significativa do investimento público na Educação ou SNS, originando lutas constantes dos seus profissionais (professores, assistentes operacionais, psicólogos, médicos, enfermeiros, etc) por aumento de salários, por carreiras dignas, pela devolução dos anos de serviço roubados que atrasam aumentos de salários e direitos de aposentação…

Aumentar as taxas de juro para controlar inflação ou para destruir salários e aumentar a produtividade?

À primeira vista pod parecer contraditório, mas é só através deste ângulo -o da necessidade urgente de recuperação da produtividade – que se consegue compreender a actual política monetária restritiva dos principais bancos centrais. O que não faz sentido é afirmar que se estão a aumentar as taxas de juro para restringir a procura e, consequentemente, controlar a inflação e, ao mesmo tempo, reconhecer que o processo inflacionista não tem qualquer origem na procura, tal como estão a fazer a Reserva Federal e o BCE. 

O contexto de inflação é oportuno para as classes dominantes por múltiplas razões. Primeiro, o aumento generalizado dos preços permite acumular lucros excepcionais por parte dos principais grupos económicos. Segundo, a inflação trouxe a oportuna justificação, de acordo com a predominante teoria monetária da economia, de retirar as taxas de juro de referência do patamar inaceitável de zero. Terceiro, o aumento das taxas de juro e a, consequente, restrição da procura cumpre os objectivos fundamentais para a recuperação, ainda que momentânea, da produtividade: (i) destruição dos capitais menos produtivos, concentrando-os nas mãos dos capitais hegemónicos, e, acima de tudo, (ii) desvalorização salarial e destruição dos serviços públicos e das condições de vida das classes trabalhadoras.

Christine Lagarde sabe-o, daí afirmar que, através do aumento das taxas de juro, não está a existir um sacrifício da estabilidade do sistema financeiro em troca do combate à inflação. Aquilo que a Presidente do BCE está a dizer-nos é que o “combate à inflação” é apenas o pretexto para desencadear as restrições salariais necessárias ao aumento da produtividade (daí a recusa constante do Governo Costa, por exemplo, em ceder diante as lutas em curso) que, em última instância, no médio-longo prazo, trará a desejada estabilidade financeira, mesmo que para isso tenhamos que atravessar uma “momentânea” falência de alguns bancos ou empresas mais frágeis ou “incompetentes”.

Portanto, o plano passa pela desvalorização da força de trabalho (que o governo actual se tem empenhado mas que um governo das direitas fará ainda pior), degradação constante e destruição de serviços públicos e condições de vida, sob a justificação de “controlo da inflação” que está precisamente a desvalorizar a força de trabalho. É a justificação perfeita!

Enquanto isso, são asseguradas todas as garantias ao sistema financeiro, através de financiamento ilimitado por parte dos bancos centrais. O pior é que os problemas financeiros são múltiplos e profundos e estas medidas poderão não ser suficientes. 

Os recentes anos de injecção massiva de capitais nos sistemas financeiros alimentaram uma especulação desmesurada. Os pequenos bancos americanos regionais, por exemplo, estão atolados em créditos concedidos a empresas para a compra das suas instalações comerciais e escritórios, imóveis estes que têm vindo a sofrer grandes desvalorizações depois do fim da pandemia, uma vez que muitos ficaram vazios por via da falência das empresas ou por via da implementação do teletrabalho. Com a política restritiva aplicada pelos bancos centrais, o incumprimento neste tipo de sectores pode aumentar repentinamente, numa espiral de falências de bancos regionais que poderá ter um impacto significativo nos bancos principais.

Portanto, a actual crise bancária não está terminada, sendo apenas mais um episódio na longa crise na economia mundial capitalista, desencadeada em 2008, e um reflexo da crise estrutural do capitalismo, que só pode ser resolvida com medidas que vão além da confiança iludida na capacidade das classes dominantes regularem a sua voracidade. O capitalismo já não tem mais nada a oferecer a não ser empobrecimento, pandemias, destruição ambiental, extrema-direita e guerra.

Precisamos de outro sistema, de forma a abolir as desigualdades socioeconómicas existentes e construir uma sociedade socialista, baseada na propriedade coletiva dos meios de produção e na distribuição equitativa da riqueza. Isso implica superar a dominação da elite capitalista e estabelecer um sistema em que os trabalhadores tenham controlo sobre os seus destinos, o desenrolar da crise, a luta de classes. Qual vai ser a resposta dos trabalhadores, dos jovens e oprimidos ao ataque das classes dominantes e dos governos? Com a tendência de evolução negativa da economia, os ataques aumentarão de intensidade e, ao fazer isso, criam também condições objetivas para a luta de classes se tornar mais acirrada, como se vê na Europa e, com especial intensidade, em França. Só com a mobilização da classe trabalhadora contra os planos de austeridade dos governos se pode encontrar uma saída para esta crise: ou a pagam os pobres, ou a pagam os ricos.

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