A criação de Israel, oficialmente declarada em 15 de maio de 1948, marcou o início da “catástrofe” (‘Nakba’), o longo exílio, com a expulsão do povo palestiniano a ser celebrada pela instalação de outro povo no seu lugar. Chegamos assim a mais um ano de comemorações da criação deste estado baseado num regime de apartheid, sem que se vislumbre, mais uma vez, um fim para o conflito. A apropriação de terras, a limpeza étnica e as violações dos direitos humanos perpetradas por Israel contra os palestinianos continuam a ser incessantes, impunes e imputáveis
Este ano assinala-se o 75º aniversário desde que Israel foi estabelecido como Estado, sobre as ruínas da Palestina, já que, para que esta nova “pátria judia” fosse, demograficamente, sustentável, ou seja, para que se garantisse que a maioria da população fosse efectivamente judia, nos meses anteriores à da independência, em 1948, as milícias e forças militares sionistas iniciaram uma limpeza étnica de grande parte das cidades e vilas palestinianas, conduzindo à expulsão de mais de 80% desta população. Foram então implementadas leis que, por um lado, negaram aos palestinianos o direito a reentrarem no seu território e, por outro, expropriaram as terras e casas daqueles mesmos palestinianos.
Este sistema legal, de base racista, vigora até aos dias de hoje, podendo ser ilustrado com o seguinte exemplo de dois cidadãos portugueses, nascidos em Portugal. O cidadão português A, filho de palestinianos, expulsos da Palestina, em 1948, não pode, mesmo detendo nacionalidade e passaporte portugueses, visitar a terra dos pais. O cidadão português B, judeu, certificado por um rabi (autoridade religiosa), pode não só visitar, como obter cidadania israelita e viver no local de onde foi expulsa a família do cidadão A.
Por outro lado, para os cerca de 20% de cidadãos israelitas, de ascendência palestiniana (com origem nas famílias que não foram expulsas), contam com várias dezenas de leis que os discriminam negativamente. Em 2018, no contexto da deriva autoritária e de extrema-direita do Governo israelita, foi aprovada uma emenda à constituição que reitera Israel como Estado-nação judeu e consagra a minoria palestiniana como cidadãos de segunda.
A guerra de 1948 deixou a sociedade palestiniana sem líderes, desorganizada e dispersa. Este acontecimento não foi um resultado inevitável do conflito entre judeus e árabes na Palestina. Pelo contrário, foi uma política deliberada de limpeza étnica levada a cabo pelas milícias sionistas, encorajada pelas autoridades coloniais britânicas que procuravam manter o seu controlo sobre a região.
Como a natureza do Estado israelita não se satisfaz com as fronteiras que lhe foram inicialmente atribuídas, a sua expansão, com a expulsão e expropriação de palestinianos, também se mantém até aos dias de hoje. Várias décadas após a descolonização oficial de África pelos Estados europeus, em pleno século XXI, Israel promove a colonização de terras retiradas aos palestinianos por indivíduos de cidadania israelita.
A Nakba não terminou em 1948. Continua até hoje, com Israel a expandir os seus colonatos e a anexar mais terras palestinas, em violação do direito internacional. Nas décadas seguintes, assistimos ao crescimento da força e do domínio deste novo “Estado”, que se tornou uma superpotência regional. Atualmente, Israel é uma potência nuclear com um exército classificado como o quinto maior do mundo. Goza do apoio incondicional dos países ocidentais, especialmente dos Estados Unidos.
Os Estados Unidos fornecem a Israel armamento avançado, partilha de informações e apoio político e diplomático. O Ocidente considera-o como parte integrante do mundo ocidental. A União Europeia concedeu a Israel um estatuto privilegiado no comércio e no acesso aos programas de investigação da UE, como se fosse um Estado europeu. Por ocasião do aniversário de Israel, neste Abril passado, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, esmerou-se em elogios a Israel, chegando mesmo a dizer que Israel tinha “feito florescer o deserto”.
Quanto às vítimas da criação de Israel, os palestinos, forçados a perder quase tudo, não mereceram qualquer honra ou louvor, nem lhes foi atribuído qualquer estatuto. Desde 1948, à medida que Israel foi ganhando poder e prestígio, os palestinianos têm lutado até ao fim para preservar o que resta da sua presença na terra, da sua história e da sua memória coletiva contra uma formidável campanha israelita para os apagar. Atualmente, mais de 60% dos cerca de 14,3 milhões de palestinianos estão deslocados. Os restantes encontram-se nos territórios ocupados, na Faixa de Gaza e em Israel, onde têm sido objeto de discriminação e de surtos de violência comunitária.
E a cada ano que passa, a situação dos povo palestino apenas piora. A eleição, em dezembro de 2022, de um governo israelita de linha dura, composto por extremistas religiosos e fanáticos ultranacionalistas, agravou profundamente a situação dos palestinianos. O programa político do novo governo baseia-se na anexação de terras palestinianas, no apartheid e na limpeza étnica – tudo sustentado por um pressuposto de supremacia judaica. Os efeitos desta ideologia são bem visíveis no aumento da perseguição dos palestinianos desde a entrada do novo governo.
Não é de surpreender. Israel tem seguido um programa de política anti-palestina desde 1948, de forma descarada ou dissimulada. Como descrever de outra forma a expulsão da maior parte da população palestiniana em 1948, repetida em 1967 e continuada desde então, a ocupação militar da Cisjordânia, de Gaza e de Jerusalém Oriental, a construção de colonatos, o cerco desumano de Gaza, e o regime de apartheid imposto aos palestinianos? De certa forma, o atual governo de Netanyahu até deve ser felicitado por expor esta feia realidade de forma tão flagrante, em contraste com a apresentação enganosa feita pela UE de Israel como uma democracia segundo o modelo ocidental.
Há já muito que a atuação de Israel deveria ter suscitado a repulsa da comunidade internacional e uma firme rejeição do sionismo. Mas, até hoje, nada disso aconteceu. Para os aliados ocidentais de Israel, tudo continua como sempre, com um Estado que viola regularmente o direito internacional, ataca os seus vizinhos, oprime os palestinianos, cujas terras ocupa, e lhes impõe um sistema de apartheid. E, por isso, o Ocidente abraçou Israel como uma parte estimada do seu rebanho.
Atualmente, o território entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo é uma entidade única, sob a administração de um governo israelita soberano. O resultado é que Israel/Palestina em 2023 é um Estado único, mas desigual, com direitos e classes de cidadania diferenciados. A sua população é composta por 6,8 milhões de judeus israelitas com cidadania e direitos plenos, 1,8 milhões de palestinianos com cidadania israelita, mas direitos limitados, e 4,7 milhões de palestinianos sem cidadania e sem direitos. Este último grupo está sujeito a um sistema de apartheid israelita bem documentado.
O 75.º aniversário da Nakba ocorre numa conjuntura crítica e perigosa, já que se tem assistido a uma escalada implacável das intervenções violentas israelitas contra os palestinianos nos territórios ocupados e em Gaza, que começou com a ‘intifada (revolta) da unidade’ em 2021. Em 2021, 313 palestinianos, incluindo 71 menores, foram alegadamente mortos na Faixa de Gaza e na Cisjordânia (incluindo Jerusalém Oriental) pelas forças de segurança israelitas. Um recorde de 204 palestinianos foram alegadamente mortos em 2022, tornando-o o ano mais mortal para os palestinianos na Cisjordânia desde 2005. Em 2023, contam-se até ao momento 96 palestinianos que foram mortos durante os primeiros quatro meses de 2023. E assim continua.
Até agora, Israel tem conseguido levar a cabo esta injustiça devido à permissividade do Ocidente em relação aos crimes israelitas e à existência da Autoridade Palestiniana, que absolve Israel da responsabilidade pelos palestinianos ocupados. À medida que este acordo começa a desfazer-se, começando com as revoltas comunitárias palestinianas, sem precedentes, de maio de 2021, que visavam tanto a AP como Israel, o resultado inevitável de tudo isto aproxima-se.
A Nakba não é apenas um acontecimento histórico, mas um processo contínuo de desapropriação e colonização. Os palestinianos continuam a ser vítimas de discriminação e violência por parte das forças israelitas e dos colonos, bem como da falta de direitos humanos básicos, como a liberdade de circulação e o acesso à água e a outros recursos. A comunidade internacional, em especial as potências ocidentais, como os Estados Unidos, não quis responsabilizar Israel pelas suas violações dos direitos dos palestinianos, dando, em vez disso, apoio diplomático e militar às suas ações.
A Nakba não foi um acidente, mas um ato deliberado de injustiça. Não existe solução justa e democrática para este “conflito”, sem ter em conta o direito ao regresso dos palestinianos expulsos, assim como os seus descendentes, ou o fim do apartheid legal que vigora e vai sendo reforçado, actualmente, no Estado de Israel e territórios por ele ocupados. Não existe solução justa e democrática que inclua um estado racista e colonialista que serve de posto avançado do imperialismo no Médio Oriente.
É partindo de um boicote, que os trabalhadores solidários de todos os países, podem lutar pelo fim deste apoio e por sanções que façam desmoronar o estado racista, para que se erga, no seu lugar, uma Palestina multiétnica, laica, democrática e inclusiva.