Lula venceu as últimas eleições presidenciais brasileiras e assumiu, neste mês de Janeiro de 2023, o cargo de presidente. Lula consegue derrotar Bolsonaro através de um amplo arranjo com inúmeros sectores das classes dominantes brasileiras, entre os quais se incluem outrora aliados de Bolsonaro. Alckmin, vice-presidente de Lula, é a figura que representa tal arranjo. As poderosas elites imperialistas, nomeadamente, a Administração Biden, não ficaram de fora do acordo. Todos estes sectores procurarão aumentar os seus benefícios, algo que Bolsonaro não garantia, pelo menos, não com a estabilidade que se espera.
Bolsonaro e o seu projecto autoritário foram eleitoralmente derrotados, mas o movimento político permanece com uma influência massiva na sociedade brasileira. A vantagem eleitoral de Lula é mínima e está refém de um arranjo contrário aos interesses da grande maioria da sua base eleitoral: a juventude e as classes trabalhadoras.
Aqui chegados, não podemos deixar de assinalar que o arranjo que sustenta o próximo Governo Lula-Alckmin, apesar das diferenças específicas, pertence ao mesmo género da Geringonça portuguesa. Governos de recurso, em momentos de profunda crise capitalista, compostos ou apoiados por partidos de esquerda, como forma de iludir as classes trabalhadoras de que os seus problemas serão resolvidos, mas umbilicalmente ligados à defesa dos interesses das classes dominantes. Pela experiência que a esquerda portuguesa – BE e PCP – fez, durante 6 anos, com o Governo PS, interessa-nos contribuir para o papel da esquerda brasileira, nomeadamente, do PSOL, face ao próximo Governo Lula-Alckmin.
Um erro que não foi
Durante a campanha eleitoral, o PSOL optou pelo apoio político, participação na campanha e apelo ao voto em Lula em aliança com as elites brasileiras, logo desde o primeiro turno. Na nossa opinião, a participação na campanha e o apelo ao voto na candidatura Lula-Alckmin estão dentro de tácticas possíveis. No entanto, a táctica eleitoral adoptada pelo PSOL foi mais longe e pecou, em boa medida, pelo apoio político acrítico ao projecto de Lula-Alckmin. Ou seja, na nossa opinião, a participação do PSOL na campanha eleitoral de Lula-Alckmin, assim como o apelo ao voto em Lula não deveria ter implicado um apoio ao projecto político dessa mesma candidatura.
A campanha do PSOL contribuiu mais para a falsa concepção de que um futuro Governo Lula-Alckmin defenderá os interesses das classes trabalhadoras, que propriamente ajudar a expor o seu verdadeiro carácter: uma candidatura de um partido de esquerda cooptado pelo sistema – o PT – que, apoiado em promessas de defesa dos sectores sociais mais empobrecidos, preparou, na verdade, um governo ao serviço dos interesses dos ricos e poderosos.
Tanto a participação do PSOL na campanha, como a orientação de voto em Lula-Alckmin deveriam ter sido feitas mesmo que acompanhadas da denúncia do projecto político daqueles protagonistas. A táctica eleitoral deveria ter sido a utilização da candidatura de Lula-Alckmin, sem lhe prestar qualquer apoio, para derrotar Bolsonaro, e não a de ajudar a dar cobertura ao projecto de Lula-Alckmin.
Este não foi um erro inocente, pois o sector mais à direita do PSOL preparou-se e estava pronto para, alegremente, integrar o Governo Lula-Alckmin, posição que, correctamente, acabou (parcialmente) derrotada no interior do partido.
Apoiar as supostas “medidas progressivas”?
Ainda assim, afastada a possibilidade de o PSOL integrar o Governo Lula-Alckmin, a nosso ver, persiste um outro problema. A maioria do PSOL que evitou a integração do partido no Governo Lula-Alckmin, parece utilizar este elemento como moeda de troca para ceder às gigantescas pressões das ilusões das massas e apoiar aquilo que apelidam de “medidas progressivas” do Governo Lula-Alckmin.
Uma vez que Lula conquista um forte apoio eleitoral e, com ele, alimenta as ilusões de prosperidade para as classes trabalhadoras, é uma tarefa árdua fazer evidenciar o seu verdadeiro carácter de governo das elites. Para não chocar de frente com tamanhas ilusões, uma parte do PSOL não vê sequer inconveniente em entrar no Governo Lula e a outra parte fica a meio caminho, prestando-se a apoiar as suas supostas “medidas progressivas” para tentar mediar a não entrada no Governo Lula-Alckmin.
O MES, uma das correntes mais representativas da ala esquerda do PSOL, nas palavras do seu dirigente Roberto Robaina, afirma que “optar por entrar no governo […] é abandonar a razão de ser do PSOL”, mas que o PSOL se deve manter “apoiando as medidas progressistas que o governo adotar, quando adotar”, pois a “nossa obrigação primeira é […] seguir lutando contra a extrema direita”. A orientação é: “face à ameaça da extrema-direita, não faremos parte do governo, mas apoiaremos as suas medidas progressivas, pois este é um governo progressivo”. Esta orientação encerra vários problemas.
Em primeiro lugar, argumentar que o PSOL não lutará por cargos de governação, sem explicitar que não o faz neste preciso Governo Lula-Alckmin, nem em qualquer governo que defenda os interesses das elites, soa a uma qualquer justificação infantil anarquista, contrária a assumir cargos de governação (!), como se o PSOL não tivesse já assumido cargos de governação antes.
Em segundo lugar, aquela orientação não só aliena a denúncia do verdadeiro carácter do projecto Lula-Alckmin em troca do apoio às (uma vez mais) supostas “medidas progressivas”, como alimenta a ilusão de que o Governo Lula-Alckmin, mesmo antes de estar em funções, poderá vir a adoptar “medidas progressivas”. E aqui há uma contradição de ferro: ou o Governo Lula-Alckmin é representante e agente dos interesses dos poderosos (um governo burguês em sentido clássico do termo), o que não nos parece suscitar dúvidas, ou será um governo susceptível de adoptar verdadeiras medidas anti-sistémicas, a favor das classes trabalhadoras. As duas hipóteses não são compatíveis.
Portanto, o MES, esgrime oportunisticamente o argumento que lhe permite não serem empurrados para fora da onda lulista – apoiar as supostas “medidas progressivas” do governo para combater a extrema-direita – , ainda eleitoralmente prestigiada, até porque não entrou em funções, para encobrir a justa denuncia do conteúdo do projecto Lula-Alckmin, contrário aos interesses da juventude e dos trabalhadores, ao mesmo tempo que insiste na falsa ideia de que esta é a orientação que garante a independência política do PSOL.
Lamentavelmente, este erro também se expressa na política dos nossos ex-camaradas da Resistência. Essa vai muito além, pois além de chamar apoio às “medidas progressivas”, deposita votos de confiança em Lula, alimenta a ilusão de que seu governo está “em disputa” e vem cumprindo cada vez mais um papel decisivo no giro do PSOL a um apoio acrítico ao governo Lula e à sua frente ampla com a burguesia.
A Resistência posiciona-se contra a entrada do PSOL no governo, mas foi quem garantiu uma articulação, junto da direita do PSOL, para construir uma declaração ambígua que permite a participação nos mandatos. A Resistência foi a responsável por garantir que não se aprovasse uma resolução definitiva contra tal participação. A Resistência também apoiou a entrada do PSOL no bloco parlamentar do governo, junto com inúmeros partidos burgueses e de direita, incluindo ex-bolsonaristas.
Não devemos apoiar qualquer medida do Governo Lula-Alckmin
Não partilhamos da orientação seguida pelo MES e pela Resistência e passamos a explicar o nosso ponto de vista, tendo como referência a recente experiência da Geringonça portuguesa.
Em primeiro lugar, a questão fundamental. Na base da orientação do MES e da Resistência encontra-se um importante erro de caracterização dos governos do tipo Lula-Alckmin. Estes são governos de frente-popular (uma vez mais: governos burgueses), governos de conciliação entre classes antagónicas que procuraram iludir a classe trabalhadora, enquanto dissimuladamente lhe impõem os interesses da classe dominante.
O MES e, mais explicitamente, a Resistência fazem crer que o Governo Lula-Alckmin poderia tomar verdadeiras “medidas progressivas”, ou seja, medidas contra os interesses das elites que representam, pelo que este Governo conformaria já um campo “progressivo”, por oposição ao campo regressivo de Bolsonaro que apenas tomou medidas a favor dos interesses dos ricos e poderosos. A Resistência chega a afirmar que no governo haveria uma disputa entre as frações do Capital e Lula.
Esta caracterização baseada na dicotomia de campos “progressivo-regressivo” está completamente errada e se os camaradas fossem consequentes com tal concepção, então deveriam ter apoiado as supostas “medidas progressivas” que Bolsonaro foi forçado a tomar – como o aumento da ajuda às famílias durante a pandemia – tal como considerá-lo, pelo menos momentaneamente, parte do tal “campo progressivo”, sem ter de denunciar que o fez em função e na estrita medida dos seus próprios interesses, como forma de controlar a contestação popular e alimentar uma base eleitoral.
O Governo Lula-Alckmin não tomará medidas qualitativas nem substantivas contra os interesses das elites que representam. Pelo seu carácter, pela sua composição, pelo seu programa, simplesmente, não o fará, pelo que não poderá conformar qualquer “campo progressivo”. Afirmar o contrário, é ignorar conscientemente ou não entender o funcionamento da sociedade capitalista e do sistema de classes em que vivemos.
A candidatura e o Governo de Lula-Alckmin são a resposta das classes dominantes ao descontentamento social crescente que se fez sentir, nos últimos anos, em múltiplos países da América Latina, incluindo no Brasil, nos quais assistimos a verdadeiros levantes revolucionários, golpes de Estado, contragolpes, insurreições populares, etc. Hoje, o Perú vive uma nova insurreição popular contra as manobras das suas elites mais conservadoras.
O governo Lula-Alckmin é uma manobra das elites brasileiras e dos partidos do sistema para arrefecer, cooptar, desviar, prevenir um possível aumento do descontentamento social, ao mesmo tempo que procuram conquistar alguma estabilidade económica e financeira para a sua acumulação de lucros.
Também em 2015, a Geringonça portuguesa foi a resposta preventiva das elites portuguesas, sobretudo, ligadas ao PS, a uma situação política de enorme contestação social, na Europa e em Portugal. Apesar do apoio do BE e PCP, a Geringonça não representou nada de progressivo, como hoje se pode confirmar. Basta falar na estagnação salarial, no salvamento da banca corrupta, nas cativações sucessivas a que os vários Orçamentos do Estado foram sujeitos, na crise de habitação que atravessamos ou na completa ruptura em que os serviços públicos portugueses se encontram. Não que a preferíssemos, mas arriscamo-nos a afirmar que a direita portuguesa não teria feito melhor serviço à burguesia portuguesa.
A táctica de apelo ao voto que foi feito na candidatura de Lula-Alckmin deve ser entendida como instrumental para a derrota eleitoral e imediata de Bolsonaro. Enquanto instrumento para tal fim, esgotou a sua finalidade no dia da votação.
Em segundo e daqui decorrente, não partilhamos da orientação de “apoiar as medidas progressivas” do Governo Lula-Alckmin. Sendo o Governo Lula-Alckmin um governo das elites para as elites, não adotará verdadeiras medidas de fundo contra as elites, pelo que não adotará qualquer medida que possa ser entendida como verdadeiramente progressiva. Se o Governo Lula retomar, por exemplo, o plano de vacinação nacional do Brasil, abandonado pelo Governo reacionário e proto fascista de Bolsonaro, ainda que seja uma medida que devemos exigir, sendo satisfeita esta reivindicação, é mais um meio do governo garantir apoio para outras medidas, por exemplo, de pagamento record da dívida externa ou de retração (“arrocho”) salarial. Poderá ainda eventualmente aumentar o salário mínimo ou retomar um novo plano “bolsa família”, mas todas estas eventuais medidas, mesmo que possam vir a ser defendidas a posteriori, se e só se, a extrema-direita se posicionar/mobilizar contra e/ou votar contra, mas sabem os revolucionários que Lula as promoverá para fazer retrair a capacidade global de resposta do movimento de massas diante outras medidas mais gravosas para a classe trabalhadora.
Orientar o PSOL para apoiar as “medidas progressivas”, afirmando estar a defender a independência política do PSOL, é triplamente nefasto: (i) cria e/ou alimenta a ilusão de que existe um suposto campo progressivo, ao qual o Governo Lula-Alckmin pertence; (ii) cria e/ou alimenta a ilusão de que serão tomadas “medidas progressivas” e de que estas trarão verdadeiros benefícios às classes trabalhadoras; e (iii) cria e/ou alimenta a ilusão de que a política do PSOL é independente, quando na realidade não o é por estar a alimentar as duas ilusões acabadas de referir.
Ser “independente” do governo não se restringe ao facto de não o incorporar com ministros. Está é outra falácia. O revolucionário argentino N. Moreno, que formou muitos dos quadros que dirigem hoje as organizações que supra referimos, foi claro e taxativo:
“(…) o oportunista (…) guia-se pela lei absoluta de não se chocar com as massas, muito menos se vai então chocar quando elas festejam uma medida que parece confirmar as suas expectativas e ilusões no governo. Este raciocínio (do oportunista) fá-lo cair na famosa fórmula de Stalin, de apoio às medidas progressivas e de recusa das negativas. Lenin teve que erradicar essa orientação que, a continuar, teria frustrado a revolução russa (1917). Trotsky considerou essa fórmula estalinista como a mais ruim e nefasta dos oportunismos, pois todas as medidas de governo, ainda aparentemente “positivas”, estão ao serviço de um plano contrarrevolucionário. Precisamente, o característico deste plano consiste em utilizar as concessões —por vezes toda uma política de concessões— para desmobilizar as massas e desmontar uma (eventual) revolução”[1].
Somos da opinião de que mesmo as medidas tomadas pelo Governo Lula-Alckmin que possam parecer trazer alguma vantagem às classes trabalhadoras serão uma ilusão, pois serão concedidas instrumentalmente, de acordo com os estritos interesses das elites. Serão apenas uma forma de travar o descontentamento e a possível mobilização popular.
Em Portugal, a Geringonça distribuiu uma série de pequenos benefícios – aumentou o salário mínimo nacional e as pensões mais baixas, por exemplo – mas estas medidas foram tomadas na estrita medida de nos manter na pobreza salarial em que já vivíamos, sem qualquer plano produtivo para o país, enquanto o país foi sendo entregue aos interesses do turismo e dos fundos imobiliários.
Às medidas do Governo Lula-Alckmin que possam parecer trazer alguma vantagem às classes trabalhadoras, não cabe à esquerda que se reclama independente apoiá-las, antes pelo contrário. Cabe-nos desmascarar a manobra que pretendem esconder e disputá-las, através da mobilização permanente da classe trabalhadora, para que que vão ao rigoroso encontro dos interesses da juventude e dos trabalhadores.
Em resumo, o Governo Lula-Alckmin, pelo seu carácter, não poderá cumprir qualquer papel progressivo. Não integrar o Governo Lula-Alckmin, mas suster as suas supostas “medidas progressivas”, apenas serve para criar a ilusão de que o PSOL mantém a sua independência política, enquanto presta o útil serviço de alimentar a falsa consciência de que o Governo poderá alguma vez adoptar verdadeiras “medidas progressivas”.
É um posicionamento que, sem dúvida, serve os interesses imediatos do PSOL e do Governo Lula-Alckmin, mas que presta um péssimo serviço aos trabalhadores e oprimidos que o PSOL diz representar. A prazo, também o PSOL sairá a perder com tal orientação.
Esta foi, pelo menos, a experiência com a Geringonça portuguesa. Também aqui, BE e PCP, decidiram não ocupar qualquer cargo governativo, optando por negociar com o PS as medidas supostamente “progressivas” que pretendiam aprovar. A política, de BE e PCP, de apoio às “medidas progressivas” do PS rapidamente se transformou numa busca constante dos elementos supostamente progressivos do Governo PS que justificassem o seu apoio. O Governo PS foi sistematicamente colorido por BE e PCP como o campo progressivo em que precisavam de estar para evitar a governação da direita, pertencente ao campo regressivo. A partir daqui e durante 6 anos, conformou-se o apoio político de BE e PCP ao Governo PS. No entanto, nunca BE e PCP o assumiram como tal.
A verdade é que após 6 anos de tal orientação, o resultado foi o restabelecimento do PS que capitalizou as poucas migalhas distribuídas, até conquistar a actual nova maioria absoluta, e uma dura crise para BE e PCP, enquanto a oposição ficou à disposição da extrema-direita, em galopante crescendo.
Os camaradas do MES e da Resistência afirmam que o “combate à extrema-direita” é a sua principal tarefa para o momento. Não se esqueçam de que o nosso principal combate se deve dirigir, em primeiro lugar, contra o governo de turno, claramente ao serviço das elites, pelo que se exige que procurem caracterizar corretamente o Governo Lula-Alckmin e retirem daí as devidas consequências políticas.
A melhor forma de combater a extrema-direita será através da conformação de uma forte oposição anti-capitalista, comprometida com a mobilização popular, crítica do Governo Lula-Alckmin. É evidente que não deixa de ser nossa tarefa, a defesa da democracia parlamentar e até, porventura, do Governo Lula-Alckmin face aos ataques autoritários da extrema-direita e/ou perigos de golpes militares, tão frequentes na América Latina, mas que hoje por hoje não é o cenário mais provável para os próximos meses no Brasil.
[1] Tradução nossa. Texto de NM, ‘El gobierno Mitterrand, sus perspectivas y nuestra política, 1981.