Nas últimas semanas, o #MeToo reacendeu em Portugal, com as denúncias de assédio sexual a multiplicarem-se. Em resposta, os acusados tentam justificar-se. Na esfera pública, uns exigem factos, nomes, provas, outros ripostam que não são necessários factos, nomes, provas. A gritaria instala-se e os media rejubilam com aquilo que a feira de atrocidades representa em audiências e lucros. Neste contexto, o debate público tem dificuldades em superar-se e o problema estrutural de opressão e de objetificação sexual da mulher vai sendo diminuído à esfera moral e ao caso pessoal.
Do ponto de vista político, mais do que fazer um julgamento moral e individualizado de cada caso que vem a público, interessa-nos perceber a extensão e características do problema, as suas origens e as formas de o combater, pois só assim podemos desmascarar a opressão sobre a mulher como um problema generalizado, de amplitude social e política, e não como um mero problema individual. Para que tal aconteça, as denúncias são fundamentais, mas, do ponto de vista político e social, a identidade dos intervenientes, em cada um dos casos, é secundária. Mesmo sabendo que nem todos os métodos nos servem, neste caso, sendo esta uma revolta justa e necessária, interessa-nos mais entender aquilo que a revolta expressa do que as formas como a mesma se expressa, assim como entender o que podemos fazer para que essa revolta se eleve da denúncia individual à ação política contra a opressão estrutural.
Através das denúncias de assédio sexual, é, sim, relevante perceber que características encerram os seus intervenientes, o tipo de agressão e se existe um padrão generalizado a nível social. As estatísticas demonstram que a opressão e agressão sexual sobre mulheres é um problema generalizado nas nossas sociedades. Mostram ainda que este é um problema que afeta sobretudo as mulheres, vítimas de agressores homens. Evidenciam também que este é um problema não só a nível nacional, mas que se reflete a nível internacional. Assim sendo, porque é que este problema se reflete sobretudo sobre as mulheres? Serão as mulheres intrinsecamente inferiores? Serão os homens biologicamente opressores das mulheres? O percurso da humanidade demonstra que nem uma coisa, nem outra.
O assédio, como outras formas de opressão, decorre de uma relação desigual de poder. A questão está, portanto, naquilo que confere ou deixa de conferir poder: a propriedade. Enquanto mais propriedade significa mais poder, a privatização da propriedade atribui exclusividade ao poder. O poder torna-se, portanto, restrito àqueles que detêm propriedade e alheio a quem não a detém. Esta particularidade tem consequências diferenciadas para as condições de vida dos grupos sociais possuidores e dos grupos sociais despossuídos. Do acesso desigual à propriedade e da consequente exclusividade do poder, nasce o conflito. A opressão é um dos meios utilizados pelos possuidores para gerir aquele conflito, mantendo os despossuídos numa condição de subalternidade.
O homem não nasce, portanto, com um traço biológico predisposto à exploração e opressão, mas a propriedade privada e o poder daí adveniente confere-lhe esse atributo. Nos dias que correm, podemos confirmar que a exploração e opressão não são uma exclusividade masculina, mas características do poder alcançado através da acumulação de propriedade. É preciso recuarmos às primeiras formas de agricultura e sedentarismo para perceber que os inícios da privatização da propriedade fizeram nascer uma nova ordem social, conferindo um poder desigual ao homem. A partir de então, a mulher foi deixando de ser alguém, com interesses e vontade próprias, para passar a ser algo, propriedade do homem. Sem direito à propriedade, é aqui que reside o início da subalternidade da mulher. Para conservar esta ordem social, os homens com propriedade foram-se agrupando e organizando, com vista a atingirem uma maior capacidade de defesa da propriedade acumulada por cada um.
Ao mesmo tempo, esta classe de proprietários foi compondo um corpo ideológico e moral, assim como o conjunto de instituições, que permitem justificar o seu próprio domínio, e definir o papel que cada grupo social desempenhará, conforme a sua posição face à propriedade. Desta forma, aprofundou-se a subalternidade da mulher que, sem direito a deter propriedade e considerada mais um recurso ao serviço do proprietário, foi sendo relegada à exclusiva função da reprodução. Os grupos sociais possuidores transformaram, assim, a violência sobre a mulher em virtude moral e política e, propagando a sua ideologia dominante, foram estabelecendo e normalizando práticas sociais que se reproduzem mesmo entre as classes que não detêm qualquer propriedade.
Se repararmos bem, estes traços mantêm-se até aos dias de hoje. Apesar da integração no mercado de trabalho, a mulher continua a desempenhar sobretudo as funções ligadas à reprodução. Veja-se que os sectores essenciais que não puderam parar na pandemia estão, muitos deles, ligados à atividade de reprodução e são compostos por uma esmagadora maioria de mulheres. Quanto à independência económica das mulheres, verifica-se que a diferença salarial face aos homens continua a ser um fator de subalternidade. No que diz respeito aos direitos políticos, os EUA apenas concederam o direito de voto às mulheres em 1920. Em Portugal, fora o breve período de 1933 a 1936, as mulheres apenas conquistaram o direito de voto em 1974. Antes disso, eram mera propriedade do seu pai ou do seu marido.
O sistema capitalista moderno, que tudo transforma em mercadoria, aproveita a subalternidade da mulher, assim como a função de reprodução que lhe é atribuída, e transforma-a constantemente num produto sexual. Homens e mulheres são diariamente bombardeados com estilhaços ideológicos e culturais que nos fazem equivaler a mulher a um objeto, não raras vezes, a um objeto sexual. Este é apenas um dos últimos contributos, das classes dominantes, para a cultura da violação, do assédio sexual, da violência despudorada e das mais variadas formas de opressão e exploração sobre as mulheres. Aqui chegadas, é tempo de lutar contra o sistema de classes que nos oprime, tanto a mulheres quanto a homens.