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“O Processo” de Kafka nos Países Baixos em pleno séc.XXI

Finalmente, mas demasiado tarde, o governo de Mark Rutte (terceiro mandato) demitiu-se.

Na base desta demissão está um escândalo relacionado com a Segurança Social e o Ministério das Finanças e Impostos, mais concretamente com a atribuição de subsídios de apoio ao agregado familiar com filhos pequenos.

De forma a combater possíveis casos de fraude na atribuição dos subsídios, o Ministério em causa implementou um sistema que, durante 10 anos, operou segundo um programa de algoritmos que tinha por base o código postal e a nacionalidade/apelido das famílias que recebiam esses subsídios, ou seja, segundo as Finanças Neerlandesas os habitantes dos bairros mais carenciados e com um apelido estrangeiro eram à partida corruptos e usufruíam indevidamente de subsídios do Estado. Nem Kafka seria capaz de criar um enredo semelhante!

Mais de vinte mil famílias foram assim de forma preventiva falsamente acusadas de fraude, mas sem saber por que fraude e foi-lhes recusado o direito de recorrer da decisão e da penalidade imposta e de refutar a acusação!

Imaginem que eu, que nem bebo álcool, era acusada de embriaguez e tinha de pagar uma multa avultada, só por ser Portuguesa, de um país conhecido pela produção e consumo de álcool, e que me era negado o direito de recorrer dessa acusação. Foram obrigadas a devolver os subsídios recebidos (dezenas de milhares de euros) com avultadas multas e retroativos e por não terem condições económicas para tal, ficaram registadas como devedoras ao Estado e foram à falência, perderam as casas em que habitavam, perderam os empregos porque foram registados como fraudulentos/criminosos, a muitas mães foram retirados os filhos pela Defesa de Menores, muitas famílias foram atiradas para uma situação de pobreza extrema e perderam o direito a qualquer apoio social, uma mãe suicidou-se…

Milhares de famílias trabalhadoras, na maioria imigrantes, vítimas de uma política de perseguição social e de injustiça e racismo institucional…

O escândalo foi denunciado há três anos, mas as famílias não foram nem recompensadas nem reabilitadas e nem ministros, nem juízes lhes deram ouvidos e funcionários responsáveis mantiveram-se nos seus postos. Dois deputados que revelaram o escândalo e se empenharam em investigar o caso foram contrariados pelas instituições envolvidas que durante anos se recusaram a ceder-lhes acesso a documentos e a informação, mas nunca desistiram.

Finalmente e à revelia do próprio governo, foi realizado um inquérito parlamentar marcado por uma epidemia aguda de Alzheimer e amnésia seletiva de ministros e diretores dos serviços implicados.

Pressionado pela opinião pública e por vários partidos políticos, o governo demitiu-se este 15 de janeiro. Na televisão e na rádio chovem ministros e secretários de estado que dizem morrer de vergonha e que a dor das vítimas lhes dói muito, mas que nos últimos anos nada fizeram para travar e mudar o sistema e continuam a negar publicamente a responsabilidade por esta política que destruiu milhares de famílias… lágrimas de crocodilo!

Em Março próximo são as eleições legislativas e apenas o cabeça de lista do Partido do Trabalho, que tinha sido ministro da Segurança Social no segundo governo de Rutte não é elegível e abandona a política. Outros ministros responsáveis, inclusive o Ministro-Presidente, que se demitiram, continuam cabeças de lista dos partidos respetivos e candidatos a Ministro-Presidente. Para cúmulo… Mark Rutte, Ministro-Presidente no seu terceiro mandato, e o seu partido têm o quarto mandato assegurado segundo as sondagens actuais.

Nem Kafka…

Graça Martins

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