No passado dia 4 de Agosto, uma explosão equivalente a um sismo de magnitude 3,3 devastou Beirute, a capital libanesa, causando mais de 200 mortos, mais de 6.000 feridos e 300.000 desalojados. Dezenas de pessoas continuam desaparecidas e distritos inteiros de Beirute estão destruídos. Quatro grandes hospitais da capital estão fora de serviço e 128 escolas foram danificadas.
Face à falta de resposta do governo, a população ocupou as áreas mais afectadas para apagar incêndios, levantar os escombros e dar apoio aos feridos e soterrados. Posteriormente, descobriu-se que na origem da explosão estariam 2.750 toneladas de nitrato de amónio, armazenadas, desde 2014, no porto de Beirute. As causas da explosão estão a ser investigadas, tendo sido efectuadas 25 detenções até ao momento. Investigações à parte, a principal causa da explosão reside na negligência dos sucessivos governos que ignoraram os variados avisos sobre o risco de manter esta carga armazenada no porto de Beirute.
No fim-de-semana de 8 e 9 de Agosto, o povo libanês saiu às ruas da capital exigindo justiça e a queda de todos os partidos políticos, culpando o governo e o regime confessional pela catástrofe. Milhares ocuparam a Praça dos Mártires, onde o slogan era “Dia do julgamento”, e grupos de manifestantes ocuparam os ministérios da Economia, do Meio Ambiente e Energia e das Relações Externas, assim como a Associação de Bancos do Líbano. O governo respondeu com violência e repressão, através do exército e de milícias ligadas aos partidos do regime, dispersando as manifestações com gás lacrimogéneo e munições reais, com um saldo de centenas de feridos e dezenas de prisões. O país encontra-se em Estado de Emergência.
O Governo de Hassan Diab caiu na sequência dos protestos, tendo resignado a 10 de Agosto. Agora, o regime procura negociar uma saída que não ponha em causa os privilégios das elites, pretendendo conformar um governo de unidade nacional e marcar eleições legislativas antecipadas.
A crise humanitária agrava a crise sócio-económica e sanitária
A crise humanitária soma-se a uma grave crise sócio-económica, com início no ano passado, já de si agravada pela pandemia do Coronavírus. Como consequência da explosão, estima-se que o PIB libanês caia de -15% para -24% no final de 2020, ou seja de 52 mil milhões de dólares em 2019 a 33 mil milhões em 2020. Dados de Abril de 2020 mostram que cerca de 850.000 pessoas (22% da população libanesa) vivem abaixo da linha da pobreza extrema e 1,7 milhões (45% da população) abaixo da linha da pobreza. Com a pandemia, essa percentagem ultrapassou os 50% e a taxa de desemprego ultrapassou os 35%. Além disso, o valor da moeda libanesa tem caído nos últimos meses, levando a uma taxa de inflação de mais de 400%. O poder de compra das classes populares diminui drasticamente, principalmente num país que importa muitos produtos do exterior.
Adicionalmente, no Líbano, têm aumentado os novos casos de COVID-19 nos últimos dias, numa altura em que o sistema de saúde está à beira do colapso, seja devido à crise económica e de saúde, seja devido à destruição causada pela explosão. Com esse argumento, o governo declarou na passada sexta-feira, dia 21, um confinamento parcial com recolher obrigatório durante a noite, numa altura em que milhares não têm como ficar em casa.
A chantagem internacional para enfrentar a crise
Após a I Guerra Mundial, entre 1920 e 1943, o Líbano foi ocupado pela França. Por esse motivo, Macron aparece hoje como o principal interlocutor internacional que, no meio de um discurso “humanista” vazio, procura assegurar os interesses da França no país. Numa videoconferência organizada por iniciativa do presidente francês, que reuniu representantes de cerca de trinta países, ocidentais e árabes, na qual participaram representantes do FMI, Banco Mundial, Comité Internacional da Cruz Vermelha e Banco Europeu de Investimento, chegou-se a acordo para fornecer financiamento de emergência num total de 252,7 milhões de euros. Este será supostamente direccionado para sectores como a saúde, habitação, educação e alimentação. Veremos de que forma será utilizado pelas Organizações Não Governamentais (ONG) que o irão gerir.
Qualquer verba à parte dessa, nomeadamente as que teriam como objectivo combater a crise económica no Líbano, estão, como de costume, condicionadas pela aplicação de novas medidas neoliberais, nomeadamente a redução de gastos públicos, privatização de sectores estratégicos e mais austeridade, entre outras.
“O povo quer a queda do regime”
Nos anos 1990, com o fim da guerra civil libanesa, foi implementado um regime sectário pelas elites burguesas do Líbano, com uma divisão de poderes estabelecida por linhas confessionais. Assim, o cargo de Presidente é atribuído a um maronita (cristão), a presidência da Câmara dos Deputados a um xiita e o governo a um sunita. Na realidade, é um regime que procura dividir a população por religiões, assente nas velhas divisões coloniais, para que dessa forma as elites consigam manter o seu poder e privilégios e melhor explorar o povo. Esse regime está, desde Outubro do ano passado, posto em causa pelo movimento popular. A revolta, desencadeada então por um novo imposto anunciado sobre as comunicações do Whatsapp, derrubou o Governo chefiado por Saad Hariri, do Movimento do Futuro, que renunciou no final de Outubro. O Presidente Michel Aoun, do Movimento Patriótico Livre, nomeou o governo que tomou posse em Janeiro e foi agora derrubado, com Hassan Diab como primeiro-ministro, apoiado pelo seu partido, assim como pelo Hezbollah e pelo Amal.
Como os protestos mais recentes mostram, não serão arranjos entre os principais partidos do regime, ligados às elites confessionais, que irão apaziguar o descontentamento. Entre as reivindicações de justiça, na Praça dos Mártires, exigia-se a queda do governo, a resignação do presidente Michel Aoun e da Câmara dos Deputados.
Nem mesmo as eleições anunciadas, ou a investigação em curso que tem como objectivo apaziguar a revolta popular e esconder a negligência dos governos atingirão esse objectivo. O regime libanês está descredibilizado e os protestos que tiveram início em Outubro do ano passado, em conjunto com o movimento popular na Argélia, no Iraque e no Sudão, mostram que há alternativas ao discurso das últimas décadas que procura virar os explorados uns contra os outros de acordo com a sua religião ou etnia.
No entanto, o movimento popular libanês encontra-se numa encruzilhada, uma vez que não existe, por agora, uma alternativa política correspondente à força demonstrada nas ruas. A esquerda libanesa, dividida, procura organizar-se nesta conjuntura, o que será determinante para evitar as armadilhas pseudo-democráticas do regime e levar em frente as reivindicações dos protestos por melhores condições de vida. A mobilização nas ruas e a construção de uma alternativa política que defenda os interesses do povo libanês é a única alternativa viável à crise em que as elites libanesas corruptas mergulharam o país.
Toda a solidariedade com o povo libanês!