Os EUA, apesar de ocuparem o papel de maior imperialismo do mundo, dominando recursos financeiros e dispondo de meios militares que lhe conferem o poder para determinar a politica e a sociedade de todas as regiões do globo, concentra também todos os problemas do sistema em que vivemos: a maior opressão e exploração da classe trabalhadora, entre os países imperialistas.
O espelho dessa opressão e exploração, nos EUA, é a sua desigualdade económica, política e social entre os que detêm tudo e os que nada detêm.
O rei vai nú. Os EUA, a chamada “maior democracia ocidental”, é dos países com maior desigualdade no mundo. Dos 330 milhões de habitantes, estima que, em 2018, 41 milhões viviam na pobreza ou pobreza extrema1. Segundo dados de 2013, 50% das famílias americanas vivia com apenas 11.000 dólares anuais de rendimento líquido. 1% dos magnatas dos EUA possuem 40% da riqueza do país, enquanto os 80% mais pobres vivem com uns míseros 7% da riqueza.
O mercado laboral, completamente liberalizado, já empurrou para o desemprego, com a actual pandemia de COVID-19, 41 milhões de trabalhadores, em apenas 2 meses. Apesar de ser o país mais rico, os cuidados de saúde nos EUA continuam ao serviço dos lucros dos grupos de saúde privados, abandonando milhões de americanos à sua sorte. Mais uma vez, a crise pandémica que atravessamos demonstra-o bem. É precisamente por isso que a taxa de mortalidade infantil dos EUA é a maior entre os países capitalistas ocidentais.
A Reserva Federal aponta mesmo que, nas ultimas décadas, “assistimos ao aumento mais sustentado da desigualdade desde o séc. XIX”, nos EUA, alcançando os “seus níveis mais altos nos últimos cem anos”2. O Governo Trump apenas veio aprofundar ainda mais esta tendência.
As maiores vítimas da desigualdade são as mulheres, as comunidades negras e hispânicas, os imigrantes e as populações já de si mais empobrecidas.
No capitalismo, a pobreza combate-se com brutalidade policial, racismo, perseguição e morte
O sistema capitalista vai produzindo um permanente excedente de força de trabalho, que é personificado pela permanente taxa de desemprego, abrangendo milhares de pessoas. Este excedente vai tendo como subproduto, em todos os países, uma camada social ainda inferior, muito precária, com recursos praticamente nulos, baixos níveis de escolarização, habitações muito precárias, condições de saúde miseráveis, que apenas consegue suportar as suas miseráveis condições de existência através dos chamados “biscates”, combinados com delitos e com a parca ajuda social do Estado, quando esta existe.
Ora, com o permanente excedente de força de trabalho existente, as elites que dominam o aparelho de Estado não têm qualquer interesse ou necessidade de integrar também aqueles sectores sociais completamente miseráveis. Do ponto de vista das elites económicas e políticas dominantes, estes sectores completamente miseráveis acabam por incorporar uma ameaça constante à propriedade privada e ser um gasto para o Estado, que o próprio sistema não só não precisa incorporar e restabelecer como tem mesmo necessidade de descartar.
Desta forma, o Estado e as classes dominantes escondem a responsabilidade que têm na origem da esmagadora maioria da criminalidade, como fruto da desigualdade por si criada, e passam a mascará-la através da narrativa de que aquela população mais miserável é preguiçosa, parasita, intrinsecamente criminosa, inferior e inimiga da unidade social e do Estado. Esta narrativa não é nova nem exclusiva dos EUA: recordemos, por exemplo, a forma como as potências centrais da Europa tratam os povos do Sul ou a forma como tratamos as comunidades ciganas. Para as elites europeias, os povos do Sul são os ciganos da Europa. Os sectores das elites tidos como mais “democráticos” e socialmente mais responsáveis, vão, prtanto, igualmente navegando as suas águas. No entanto, Trump, Bolsonaro ou André Ventura, nos últimos tempos, têm elevado esta narrativa a novos patamares.
A desigualdade e a pobreza são, então, encobertas e passam a personificar a criminalidade que é então encarada como uma questão de segurança pública, não apenas para a restante população, mas também para o próprio Estado. Aquilo que deveria ser uma luta contra a pobreza é então transformada, pelas elites dominantes, numa guerra contra a criminalidade e classes mais miseráveis, onde se incluem largos sectores das massas imigrantes ou não brancas, as mulheres e as LGBT, os “vilões” que ameaçam a sociedade não só pelos crimes que supostamente cometeram como pelos crimes que poderão vir a cometer. O julgamento e a pena passam a ser feitos por antecipação, ainda antes da realização de qualquer crime. O pobre, imigrante, negro, cigano, excluído, segregado deixa de ser encarado como um ser humano e passa a ser olhado como o parasita, criminoso.
Ora, o sistema capitalista, através dos seus sistemas penais, mascarando o problema da desigualdade e da pobreza num simples problema de criminalidade, trata de assumir o seu suposto combate através da repressão policial e penal. A “combate” à criminalidade assume portanto, acima de tudo, o controlo das massas pobres, que o sistema pura e simplesmente não precisa, servindo à disciplina, controlo, segregação e selecção daquelas camadas sociais mais miseráveis. Este mecanismo serve ao mesmo tempo para deixar evidente ao resto da classe trabalhadora que mais vale ser precário e mal pago que acabar constantemente criminalizado e perseguido, assim como cumpre ainda o papel de nivelar e dividir as classes mais pobres, empurrando a população criminalizada para condições de sobrevivência ainda mais hostis que as classes mais pobres dos pobres. A mensagem das elites é: para proteger os meus interesses e esconder as minhas responsabilidades, aqueles que, na selva capitalista, não tenham oportunidade de se incorporar ao sistema de exploração do mercado de trabalho, estarão condenados à repressão, ao castigo e à punição permanentes, assim como à estigmatização social.
Esta maior repressão pode significar um maior número de penas de prisão, mas também pode traduzir-se num maior policiamento, uma normalização da brutalidade policial, possibilidade de processos penais encurtados ou sumários, controlo através do recurso a mais liberdades condicionais, pulseiras-electrónicas, medidas pré-punitivas como o cadastro sem pena efectiva, repatriamentos, etc. tudo em função de um sistema de controlo social, não apenas das massas mais miseráveis, mas também da classe trabalhadora no seu conjunto.
Como não poderia deixar de ser, os sistemas penais actuais evidenciam que a grande maioria das penas recai, sobretudo, sobre os sectores sociais e indivíduos mais empobrecidos.
Voltando aos EUA, um dos países imperialistas com maior desigualdade, apresenta, claro está, a maior população prisional do mundo (2,3 milhões de pessoas).
Nos EUA, a população negra corresponde a cerca de 13% da população total, na sua larga maioria, ocupando os sectores mais empobrecidos da sociedade. No entanto, cerca de 33% da população das prisões é negra e cerca de 30% dos indivíduos abatidos a tiro pela polícia são negros. Os negros são 13% de todos os adultos consumidores de drogas, mas representam 27% de todas as prisões relacionadas com drogas. Os negros são encarcerados quase seis vezes a taxa dos brancos. Os negros são 2,5 vezes mais sujeitos a serem mortos pela polícia do que os brancos. Uma pessoa negra desarmada está cinco vezes mais sujeita a ser morta pela polícia do que uma pessoa branca desarmada.
Estes são apenas alguns números que evidenciam que o Estado e as elites dominantes estão ao serviço de controlar, disciplinar e segmentar a classe trabalhadora, ao mesmo tempo que tapa os delitos dos poderosos. Neste sentido, o sistema repressivo do Estado e o seu aparelho ideológico, assente no racismo, está aa serviço da perseguição e controlo daquele sector da população que não se consegue integrar ao mercado de trabalho.
O Governo Trump tem manifestado apoio quase incondicional às exigências das forças policiais, reduzindo ou removendo os mecanismos de fiscalização da própria polícia. O Departamento de Justiça dos EUA começou a dar descontinuidade às investigações e o acompanhamento das esquadras de polícia sobre as quais foram relatados padrões e práticas de uso excessivo da força e violações constitucionais3. Resultado: assassinato, em plena luz do dia, de George Floyd por um polícia declaradamente racista, com dezenas de queixas por brutalidade policial mas nenhuma condenação. Já para não falar que os casos como o de George Floyd não são a excepção, são a regra.
Não será demais referir que os maiores prejuízos sociais são causados pelo crime de colarinho branco, cometido pelas classes mais abastadas mas para estes as penas ou são praticamente impossíveis ou praticamente nulas. Para este tipo de crimes, as classes dominantes tomaram as devidas medidas antecipadamente: paraísos fiscais, sigilo bancário, possibilidade de estruturas empresariais complexas, engenharia fiscal e financeira, etc. As condenações deste tipo de crimes só acontecem quando os atritos entre elementos das elites ou os seus representantes políticos são de tal ordem que desatam as denuncias e traições.
Sem justiça não há paz, a revolta social como única alternativa
Após o assassinato de George Floyd, entre tantos outros, os motins sucederam-se e têm vindo a ganhar contornos de revolta social, em inúmeras cidades e estados, por todos os EUA. As comunidades negras e os jovens têm saído consecutivamente à rua, desde o dia 25 de Maio, exigindo algo tão elementar como: justiça.
Mesmo em tempos de pandemia, a mobilização é fundamental para conquistar aquilo que no séc. XXI ianda está tão longe de tanta gente. Aquilo que as comunidades negras, mais empobrecidas e oprimidas pele exploração e racismo secular questionam é: que sociedade é esta que não encontra melhor instrumento para a sua própria preservação que o assassinato e a brutalidade?
Precisamos questionar-nos se o sistema em que vivemos, que mantém tantos milhões na pobreza extrema, não precisa ser alterado, ao invés de glorificar o assassino que executa o suposto “criminoso”. Como sabemos, esta não é uma questão exclusivamente endereçada aos EUA.
1 https://www.publico.pt/2017/12/16/mundo/noticia/enviado-especial-da-onu-foi-aos-eua-para-destapar-a-realidade-da-pobreza-1796251