comicio_bernie_sanders

EUA: Primárias do Partido Democrata 2020 – Uma nova era na política americana

 

Os Estados Unidos estão agora a viver o seu prolongado período eleitoral, que dura vários meses. Nesta fase, os partidos têm as suas primárias para decidir o candidato que o representará nas eleições. O funcionamento destas primárias variam entre diferentes estados, quer na data escolhida como na metodologia usada para eleger os delegados. O Partido Republicano já se consolidou em torno do apoio a Donald Trump, mas o Partido Democrata tem ainda seis candidatos a concorrer pela nomeação.


Primárias de 2016

Para melhor compreender a situação política da atual corrida à presidência, é necessário olhar para as primárias do Partido Democrata em 2016. Na altura, a corrida era entre Hillary Clinton — representando a continuação das políticas de Clinton e Obama — e o até então relativamente desconhecido Bernie Sanders, um auto-intitulado socialista. Nessas eleições, Sanders desenvolveu uma campanha social-democrata forte, propondo a eliminação da dívida estudantil e a criação de um serviço nacional de saúde. A sua campanha ajudou a desmistificar a palavra “socialista” num país ainda marcado pelas campanhas anti-soviéticas da guerra fria; além disso, deu força à ala mais à esquerda do Partido Democrata, dinamizada especialmente pela DSA (Democratic Socialists of America) que viu o seu número de militantes disparar depois das eleições de 2016.1

A convenção nacional do Partido Democrata (DNC), preocupada com a guinada do seu partido à esquerda, começou a conspirar para demonizar a candidatura de Bernie Sanders. Esta conspiração foi posta a nu por emails internos divulgados online.2 A exposição destes emails levou a que a presidente da DNC se demitisse, tendo sido imediatamente recebida pela campanha da Hillary de braços abertos.3 Os meios de comunicação americanos focaram-se não no conteúdo dos emails, mas na forma como foram lançados, culpando os russos, sem provas concretas, num processo apelidado de “Russiagate”. Em 2016, Hillary Clinton acabou por vencer a nomeação.


Primárias de 2020

Chegámos agora às eleições de 2020, em que onze concorrentes se candidataram para as primárias do Partido Democrata, dos quais – à data em que escrevo este artigo – oito já saíram da corrida. Elizabeth Warren e Bernie Sanders representam a linha mais progressiva do partido, com Warren a representar uma face mais académica. Os restantes são uma continuidade da política das elites e do establishment; isto é, da política neoliberal. Joe Biden, antigo vice-presidente de Barack Obama, representa a continuação da presidência de Obama; Pete Buttigieg candidato jovem e gay, fala numa “nova forma de fazer política” mas continua a representar os interesses dos multi-milionários que financiam a sua campanha. Recentemente, o antigo mayor de Nova Iorque e 9ª pessoa mais rica do mundo, Mike Bloomberg, lançou a sua campanha financiada exclusivamente por si mesmo. Bloomberg tem sido acusado de “comprar a presidência” por gastar quantidades exorbitantes de dinheiro em campanhas publicitárias. Tem um historial de assédio e opressão sobre várias mulheres4 e, durante o seu mandato, em Nova Iorque, reforçou a política stop and frisk5 que atingia especialmente as comunidades negras e pobres.

No dia do Iowa Caucus, primeira eleição primária, o Partido Democrata teve um atraso na divulgação dos resultados, o que impossibilitou declarar um vencedor. A razão do atraso foi uma falha no sistema de contagem de votos. Conforme foi revelado mais tarde, a DNC contratou uma empresa chamada Shadow Inc. para desenvolver uma aplicação para submeter os votos. A Shadow teve ligações à campanha da Hillary e de Obama6 e recebeu uma avultada quantia de dinheiro por parte da campanha de Buttigieg para desenvolver uma outra aplicação7. Para além da falha com a aplicação, os resultados finais foram marcados por vários erros e inconsistências8. Depois de alguns dias, os resultados oficiais mostraram Bernie Sanders a ganhar o voto popular e Pete Buttigieg a ganhar o maior número de delegados.

Seguiu-se as primárias de New Hampshire, onde Bernie Sanders voltou a ganhar o voto popular, mas empatou com Buttigieg no número de delegados. Mais tarde, no dia anterior ao caucus do Nevada, os serviços secretos americanos voltaram a levantar conspirações dizendo que russos estavam a apoiar a candidatura de Bernie Sanders. Sanders não denunciou estas acusações como uma tentativa de enfraquecer a sua campanha, dizendo apenas que não queria o apoio de Putin. Mesmo assim, o caucus do Nevada foi uma grande vitória para Bernie Sanders, que, propulsionado pelo voto latino, conseguiu 40%, mais do dobro de Joe Biden, que ficou em segundo. Solidificou assim a sua posição como frontrunner. Nas primárias da Carolina do Sul, conforme previsto, Joe Biden ganhou com o apoio da população negra envelhecida9, ficando Bernie Sanders num distante segundo lugar.

Dias antes da Super Tuesday, dia em que catorze estados têm as primárias ao mesmo tempo, as sondagens previam uma vitória para Bernie Sanders. Mas, nos dois dias antes da Super Tuesday, Pete Buttigieg e Amy Klobuchar desistiram inesperadamente das suas campanhas, para apoiar Joe Biden. O dia da Super Tuesday ficou assim marcado pela derrota de Bernie Sanders, que ganhou apenas quatro estados. Bernie era o esperado vencedor, visto que as sondagens lhe davam a vitória nos importantes estados da Califórnia e Texas; no entanto, acabou por perder o Texas. Nessa noite, a grande derrotada foi Elizabeth Warren, que nem conseguiu ganhar o estado que representa no senado, abandonando a corrida dois dias depois; entretanto, o multi-milionário Mike Bloomberg desistiu também da sua corrida, estendendo o apoio a Biden. As eleições no Texas têm vindo a receber críticas por fechar estações de voto em comunidades negras e latinas10, algo que provavelmente prejudicou Bernie nestas primárias.


Bernie Sanders, DSA e a política para a classe trabalhadora

Apesar dos constantes ataques por parte dos meios de comunicação americanos e dos boicotes internos do partido democrata, é muito provável que Bernie Sanders tenha uma pluralidade dos delegados na convenção nacional; mas talvez não seja suficiente. A convenção do partido Democrata inclui, para além dos delegados eleitos pela base, os super-delegados: delegados não eleitos que pertencem ao establishment do partido, e que costumam ter uma posição anti-Bernie. Caso Bernie não seja eleito, mesmo tendo o maior número de votos, a natureza antidemocrática do Partido “Democrata” ficará exposta, e pode levar a forte contestação nas ruas tal como aconteceu em Agosto 196811. Por outro lado, caso Bernie vença a nomeação e ganhe as eleições contra Trump (conforme as sondagens indicam até à data), o mais certo é que não tenha o apoio do partido para fazer avançar as suas políticas de expansão do estado social. Se, durante as eleições primárias, Sanders tem sido alvo de ataques dos meios de comunicação, dos serviços secretos americanos, e do próprio partido, o que acontecerá durante uma presidência de Sanders?

É inegável que Sanders abalou o sistema político americano e trouxe para milhões de trabalhadores a esperança de uma política para eles, e não para a “classe multi-milionária”. No entanto, Sanders continua a defender uma versão light do imperialismo americano, e o “socialismo” que pretende trazer é apenas um estado social mais forte, próximo ao conquistado pela classe trabalhadora europeia, no último século. Mesmo tendo sido atacado, é incapaz de denunciar a plutocracia burguesa americana e os seus efeitos repressivos nas organizações dos trabalhadores.

Num discurso de 1991, a membros da DSA, Sanders falava da necessidade de um terceiro partido para a classe trabalhadora, uma “rainbow coalition” feita “por fora do partido Democrata”12. Agora, com um movimento forte e energético em todos os estados, e até com a possibilidade de criar um partido dos trabalhadores a nível nacional, fala apenas em reformar o partido Democrata. O DSA, que tem um papel forte de dinamizar a campanha de Bernie dentro do partido Democrata, está à esquerda do próprio candidato e tem-no pressionado em matérias de política internacional. Para além disso, no seu último congresso, a DSA aprovou uma moção que apelava à construção de um partido independente “algures no futuro”.13

Bernie Sanders parece ter despoletado uma esperança em importantes sectores da classe trabalhadora, da juventude e dos sectores mais oprimidos da sociedade americana por uma alternativa à política imperialista de Trump. Não temos dúvidas de que é preciso tirar Trump do poder! Não é apenas uma ameaça ao povo dos EUA mas é-o para os povos de todo o mundo e até para o próprio planeta.

Nas presentes eleições, uma alternativa da classe trabalhadora norte-americana deverá lutar pelo rompimento definitivo com o papel imperialista dos EUA, combatendo o establishment dominado pela Administração Trump e pelo próprio Partido Democrata, apoiando-se na mobilização popular que tem vindo a conquistar. Será Bernie Sanders capaz de cumprir tal tarefa? A ver vamos.

Graças ao movimento que Sanders ajudou a criar, já se discute algo que era impensável no panorama americano: a criação de um partido independente da burguesia e das elites que controlam o sistema político americano, completamente viciado e corrompido. Este pode ser o início de uma política de emancipação da classe trabalhadora face aos partidos corruptos das elites norte-americanas. Apoiamos todos os trabalhadores e trabalhadoras na construção de uma nova era na política americana.


Fora Trump! Fim de todas as agressões imperialistas!

Bernie a Presidente!

Por uma alternativa independente ao serviço classe trabalhadora americana!

 

Bruno C.


1 Passaram de 6 745 em 2016 para 19 594 no ano seguinte. Terminaram 2019 com 45 545 militantes.

5 Parar e revistar, tradução minha.

Anterior

Imigração: cresce a resistência aos crimes de Trump

Próximo

George Floyd: a desigualdade social e racismo dão à luz uma revolta social