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Entrevista a Luciana Carmo e Marcela Uchoa, estudantes da UC e dirigentes da APEB


Em 2014 foi aprovado um decreto-lei que permite às universidades públicas aplicar propina diferenciada aos estudantes que não tenham a nacionalidade portuguesa ou estatuto equiparado, que ingressem pela primeira vez no ensino superior português. Assim, várias centenas de estudantes passaram a pagar entre 7.000€ a 8.000€, ao invés da propina nacional de cerca de 1.064€. Esta medida contribui de forma evidente para uma elitização crescente do ensino superior – os/as estudantes que conseguem pagar são bem-vindos, quem não tem capacidade financeira fica de fora.

A Associação de Pesquisadores e Estudantes Brasileiros (APEB) lançou, no ano passado, uma campanha para alertar para esta grande desigualdade e pressionar a Universidade de Coimbra e o Governo no sentido de reverter a medida injusta, possibilitar o estatuto de igualdade para estudantes internacionais e garantir propinas iguais para todas/os, rumo à abolição das próprias propinas.

 

Quando é que surge o fórum pela igualdade da propina e porquê?

Luciana Carmo: O primeiro fórum foi em dezembro 2017 e surgiu simplesmente da necessidade, pois a APEB já vinha a actuar desde 2016 sobre a questão das propinas, já tínhamos lançado um manifesto para repudiar as propinas internacionais. Aconteceu um encontro do Consulado (brasileiro em Coimbra), para esclarecer algumas dúvidas da comunidade brasileira e foi solicitada a presença da APEB, porque surgiram muitas questões sobre o estatuto de igualdade, uma vez que muitas pessoas não conseguiam ter acesso. O Consulado deu espaço para a APEB se posicionar e esclarecer as dúvidas, colocando-nos também como os responsáveis, a quem os alunos deveriam procurar. Lançámos a proposta para fazer o fórum, para poder esclarecer as dúvidas, tanto que o primeiro foi de carácter mais informativo, para falar do que é o estatuto de igualdade, como conseguir o estatuto, quais eram as implicações. O segundo fórum aconteceu agora em Março, já com o teor de manifesto, com a ideia de dialogar com toda a comunidade académica – tivemos na mesa João Gonçalves, pelo sindicato de estudantes, um representante da CPLP, o Henrique Pinhel (antigo presidente da associação de estudantes da Guiné Bissau), o Guilherme, representante dos estudantes abrangidos por bolsas de programas sociais, de acessibilidade ao ensino, a Associação Académica e um professor, Ernesto Costa – o fórum foi mediado pela companheira Juliana Souza. A ideia era poder dialogar com os outros colectivos porque a questão das propinas não se resume à igualdade das propinas, estamos também aliados com o resto dos estudantes para a propina zero. No manifesto e no fórum falámos que não é meramente uma questão económica, é uma questão jurídica, é uma questão política, é uma questão social.

 

Quais as principais exigências do vosso movimento e quais são os argumentos que utilizam para justificar a vossa actuação?

Marcela Uchoa: As exigências são, em primeiro lugar, que a UC respeite a Lei, respeite o estatuto de igualdade. A Universidade justifica que está com insuficiência orçamental, embora segundo os dados do sindicato (dados de 2016) a UC tem um superavit na ordem dos 19 milhões de euros, bem diferente da resposta que o reitor nos deu, referindo que a UC tem défice também por causa dos estudantes internacionais.

Trata-se também de uma questão de justiça social, onde entra a questão política. Entendemos que a Educação é um bem público de todos, que se liga à justiça social. O próprio tratado de igualdade visa isso mesmo, não só que o ensino público deveria ser gratuito para todos, mas que também se trata de uma questão de justiça social, tanto é que não só o Brasil mas também os outros países da CPLP (as ex-colónias portuguesas) têm esse benefício, de acordo com as suas especificidades. O estatuto de igualdade não tem sido respeitado. A UC trata a educação como uma empresa e não como um bem maior e primário, que deveria ser de todos os cidadãos. A nossa reivindicação aqui é, sobretudo, resgatar o ideal de uma educação não como um bem mercantil, mas sim como um bem público e partindo daí trazer os colectivos para o debate, querendo abrir a discussão tanto para a CLPL, como para os bolseiros que vêm para cá, resgatando também que o Brasil tem a sua história em Portugal, mas Portugal também tem história que passa pelo Brasil e que isso deveria irmanar-nos e não afastar-nos. Não continuar com o espectro de colónia e colonizado em que quem deve estar cá são só os alunos que vêm da elite brasileira – o que se propõe é novamente isso. Quando a UC faz a campanha para que que venham as elites económicas para cá, que são eles que se quer na universidade, coloca a universidade como uma empresa e coloca a educação como esse bem puramente material e não de base. A nossa luta é, sobretudo, para consciencializar as pessoas para o resgate do real sentido da educação, para podermos somar as nossas lutas a partir de ai, reivindicando que a lei seja estabelecida e pensando também na justiça social, unindo-nos com a comunidade académica também pela propina zero.

 

Como tem sido a resposta da comunidade académica e da Universidade?

MU: Começámos esta discussão ainda no final da anterior gestão da APEB e agora, na actual gestão, com pessoas mais alinhadas politicamente, temos ampliado o debate com a comunidade académica. A receptividade tem sido muito grande – tanto na página do Facebook – como também com muita gente procurando ajuda e informação, até de outras universidades portuguesas (Porto, Lisboa). Então vemos como a luta se tem expandido e tem conseguido alcançar uma proporção que inicialmente não imaginávamos. O nosso objectivo inicial era tirar também Coimbra da ideia da inércia estudantil só ligada às festas, para trazer esta luta política e social, inerente a todos. Temos conseguido, na medida do possível, e tivemos até uma surpresa com o nível de união, tanto do grupo da APEB e como da comunidade académica, para que haja espaço de fala para todos, para que se expressem activamente. Temos tido enfrentamento e com esta postura de enfrentamento, não no sentido agressivo, mas de nos colocar para obtermos o nosso espaço, temos ampliado o espaço de fala nos média e na própria reitoria. O facto de o reitor responder às nossas reivindicações, ainda que em oposição, é sinal disso. Há um tempo nem sabia que existíamos ou pelo menos comportava-se como se não soubesse – de alguma forma estamos incomodando um pouco, estamos tendo voz. Acredito que as coisas não mudam do dia para a noite, mas começamos a ser ouvidos e os brasileiros têm que tomar o seu lugar na Universidade e na cidade, que é um espaço público, aliando-nos à comunidade académica para unir forças para trazer essa mudança e essa reflexão.

LC: Eu considero o segundo fórum um momento muito marcante, porque tivemos bem representada a comunidade académica, pelas repúblicas, pelos outros colectivos, pelo próprio corpo docente da Universidade, com Ernesto Costa, que vem somar a luta desde dentro, que enxerga a necessidade de participar do diálogo. Fiquei sabendo, pelo Henrique, que o Fórum foi noticiado na Guiné-bissau, dando força às outras associações. Temos até sido procuradas pelas outras associações para fazer outros eventos para nos articularmos e unirmos. Foi um momento muito simbólico da unidade académica, porque na verdade já estávamos nas nossas lutas só que lutando separados e esse fórum deu possibilidade de verificar que as nossas lutas são comuns, independente de ser da Guiné, do Brasil ou ser português, mas sim colocar o valor da educação, esse bem devido a todos.

 

Como tem sido a reacção da DG?

LC: A interacção ainda é muito tímida, muito institucional. Estamos a tentar estreitar os laços e precisamos melhorar a comunicação e o diálogo.

MU: A nossa actuação dentro da AAC é importante porque representa os estudantes e o facto de termos conseguido trazer e incluir uma associação que há muito tempo está alheia de questões políticas é uma conquista, apesar das falhas. Isto tudo é um processo e temos que incentivar a participação e o facto de a AAC ter estado presente na figura do seu presidente no fórum foi muito importante, pelo que representa, por quem representa, porque oficialmente representa todos nós e é importante que assuma o seu espaço de fala.

 

De quem é a responsabilidade de resolver o problema das propinas diferenciadas?

MU: É um problema do Governo e do reitor, na verdade. Em primeiro lugar, porque o reitor, na própria resposta que escreveu, colocou a questão como uma questão diplomática, entre países. A forma como ele interpreta como se deve resolver o estatuto de igualdade gera um problema diplomático porque é um não respeito à Lei estabelecida, ou seja, ele interpreta de uma forma diferente e coloca que a sua interpretação está dentro dos limites da Lei. Nós não concordamos, até porque em Portugal as universidades têm mais autonomia, não é como no Brasil (embora ele faça essa comparação), porque o sistema de educação é diferente do sistema português, então comparar é desigual. A Universidade de Coimbra passa, no seu discurso, a responsabilidade para o Estado. O Estado também não se vê a resolver o problema. Para o segundo fórum procurámos todos os partidos políticos de Portugal.

LC: Enviámos emails para todos os parlamentares que estão cuidando da comissão de análise do decreto que está em discussão pública, nós mandamos também para o grupo parlamentar de amizade entre Portugal e Brasil (composto por vários partidos) e tivemos oportunidade de falar com alguns desses parlamentares e temos outras reuniões agendadas. A grande questão de ser uma responsabilidade da universidade tem a ver com a forma como a UC tem conduzido as coisas. Não é à toa que conseguimos o apoio da comunidade académica porque toda ela se sente incomodada como a politica da UC, com os emolumentos e todas as taxas absurdas, à própria luta dos estudantes aqui pela propina zero. É fácil entender como tem tratado o ensino como um mercado e como isso tem sido rebatido por toda a comunidade académica, de uma forma ou outra.

MU: Temos que entender que toda esta questão é muito mais global. Se formos a ver o que se passa em Portugal e especificamente em Coimbra, a questão da mercantilização do ensino, que vai junto com a questão do regime fundacional, tudo está interligado. Por isso é que é importante somar as lutas, quando vemos uma universidade que está a defender o regime fundacional, que defende que só possam vir estudantes estrangeiros que têm poder aquisitivo para pagar, é uma mercantilização do ensino, voltado para as elites, sem viés social e político. Não deve ficar só no âmbito aurido, porque é uma questão mais ampla. O grande desafio em Portugal é conseguir a mobilização dos estudantes, que esta se expanda, para que os estudantes assumam o espaço de fala, porque ser estudante não é só estar na sala de aula, trespassa isso, envolve também a luta pelos seus direitos. Precisamos de entender a estrutura que se tenta formar, que é destrutiva para a educação. No segundo fórum tentámos fortalecer as lutas e encaixar o que estava dissociado, para podermos unir-nos. Enviámos comunicados para vários colectivos e entidades e os que responderam foram os ligados à esquerda. Abrimos espaço para todos, mas essa foi a resposta e a subscrição foi no mesmo sentido.

 

Quais as principais diferenças entre o modelo de educação no Brasil e em Portugal?

LC: No Brasil, o Ensino Publico é gratuito, o que acontece lá é que ainda é elitizado, por isso é importante a questão das acções afirmativas. Não existe distinção entre estudante nacional e internacional, ambos são tratados da mesma maneira no ensino. Uma das diferenças que sinto é mais na licenciatura. No Brasil, já participamos de estágios, pesquisa, escrevemos artigos, somos mais ativos, mais participativos. Aqui, nas rodas de conversa etc., há uma participação muito tímida dos alunos de licenciatura.

MU: Há várias diferenças. A primeira é o formato de estrutura – a nossa concepção de ensino público tem uma postura mais inclusiva a nível social, tomada como um direito de todas e todos. A partir daí não se paga nada, nem taxas mais baixas, porque já está sendo pago pelos nossos impostos, como a saúde pública, ou seja, já está incluído. Em Portugal, o que vejo é que existem estudantes com dificuldades em pagar as propinas e por mais que hajam medidas de inclusão, são muito tímidas e não são divulgadas. No Brasil, é visto como um direito constitucional, tal como a saúde pública, é um grande ganho na Constituição, muito positiva e inclusiva e é uma grande pena que tem havido um grande desmonte e desrespeito. Nas universidades públicas brasileiras, um estudante com dificuldades financeiras, para além de não ter que pagar propinas, tinha bolsa para transporte, residência universitária, não pagava para comer nas cantinas da universidade, tinha acesso aos hospitais universitários – medidas de assistência social para que essa pessoa não tivesse impedimento para estudar, porque existem pessoas que mesmo não tendo que pagar propinas, não conseguiriam suportar os outros custos para estudar. O Governo, com estas políticas, incluía. Em Portugal, falta a consciência de que o ensino público é muito mais do que não pagar propinas – estamos na fase inicial aqui. No Brasil foi possível unir estudantes de classes médias e de classe muito baixa, tornava as pessoas mais sensíveis às questões sociais – não havia tanto apartheid de classe. De algum tempo para cá tem ocorrido esse desmonte da educação pública, começou-se a retirar os direitos, a haver um retrocesso. Houve uma queda de bolsas de todo tipo, uma mudança drástica, sendo o investimento agora voltado para as universidades privadas.

 

O que podemos fazer para ajudar a vossa luta?

MU: A nossa luta se soma na medida em que a compreendemos de forma mais una. Temos que nos compreender como comunidade estudantil e temos que entender que lutamos também de acordo com as nossas esfericidades e não queremos negar essas especificidades. Temos que somar as forças nas lutas e conhecer melhor, fortalecer-nos enquanto comunidade estudantil, enquanto humanos, em questões políticas, no que é mais genuíno, na afirmação da política no sentido lato, de andar em conjunto, no espaço de debate e discussão para agregar e somar de forma a conseguir crescer, acrescentar e construir. Não é eliminar as esfericidades, a história da cada um e de cada país, mas é perceber que temos algo em comum, além de sermos estudantes, vem até da história, que nos deve unir e não separar. Temos muito a ganhar com a discussão e a aprendizagem comum.

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