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A ilusão portuguesa


Artigo de Nuno Teles, economista, professor convidado da Universidade Federal da Bahia no Brasil e membro do blog “Ladrões de Bicicletas”. Originalmente publicado na Jacobin, a 02.07.2018. Tradução de Rebeca Moore

Em 2015, os eurocéticos de Portugal – Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português (PCP) – concordaram em apoiar um governo pró-europeu, liderado pelo Partido Socialista (PS), com base num acordo para acabar com a austeridade e reverter muitas das medidas impostas pelo pacote de resgate da UE-FMI, de 2011. A coligação reverteu as pensões e cortes salariais do setor público, interrompeu as privatizações planeadas e elevou o salário mínimo bem acima da inflação. Passados quase três anos deste Governo, a economia recuperou e a taxa de desemprego desceu para menos de metade do seu pico.

Esta história de sucesso foi repetida ad nauseam pela imprensa, em todo o mundo: como uma esquerda fragmentada superou as suas diferenças históricas para alcançar um acordo progressivo dentro das restrições da Zona Euro. Finalmente, dizem-nos, um governo de esquerda levou a cabo o seu programa anti-austeridade, oferecendo esperança a uma esquerda europeia ainda traumatizada pelo espetacular fracasso de Syriza na Grécia.

A cereja no topo do bolo: embora, inicialmente, o Governo tenha sido criticado pela UE, agora é amplamente elogiado em Bruxelas por atingir e superar as suas metas do défice. O Ministro das Finanças português, Mário Centeno, até foi eleito para presidir o Eurogrupo.

Para muitos observadores, Portugal é um estudo de caso sobre a compatibilidade entre as políticas anti-austeridade e as metas do défice, impostas pela UE – é mesmo utilizado como um novo argumento contra qualquer ruptura com a Zona Euro. No entanto, esta história está longe da experiência quotidiana do povo português. Uma situação diferente esconde-se por detrás do aparente sucesso económico.

 

Anti-austeridade?

Um dos objetivos mais utilizados pelo governo de coligação é a redução do défice público para mínimos históricos – de 3% do PIB, em 2015 (4,4%, se considerarmos o resgate do banco privado Banif), para 0,9%, em 2017 (ou 3%, se a recapitalização do banco público CGD estiver incluída). Enquanto isso, a economia está a crescer – 1,6%, em 2016, e 2,7%, em 2017.

A maioria dos comentadores associou esse record impressionante ao aumento do consumo interno, impulsionado pela reversão dos cortes salariais e reformas. Estas medidas terão resultado em crescimento económico que, por sua vez, terá aumentado a receita fiscal e diminuindo os gastos sociais, em coisas como o subsidio de desemprego.

É inegável que a recuperação económica dos últimos dois anos tem desempenhado um papel central no aumento da receita fiscal. Mas para além das reversões planeadas no que toca a cortes salariais e reformas, isso não se traduziu em mais investimento no setor público. Na verdade, os gastos públicos foram uma das principais omissões do acordo para o actual governo de coligação.

Portugal tem o investimento público, em relação ao PIB, mais baixo de toda a UE. O investimento público caiu de 2,2% do PIB, em 2015, para 1,5%, em 2016, antes de atingir 1,8%, em 2017. De acordo com os últimos dados do Eurostat (para 2016), apesar do aumento dos salários, os gastos com serviços públicos permaneceram baixos, tal como durante o resgate da UE-FMI. Os gastos com saúde pública foram, na verdade, mais altos durante o Governo anterior de direita e decaíram para 5,9% do PIB, em 2016, em comparação com um pico de 6,9%, em 2009.

Enquanto a população estudantil diminuiu, acontece também uma diminuição dos gastos com a educação, para 4,9% do PIB (uma queda de 0,2%). Os serviços públicos estão ainda sujeitos às normas de austeridade, permanecendo cronicamente insuficientes e subfinanciados. É significativo que não tenha havido novos cortes nos gastos públicos, se compreendermos a campanha eleitoral da direita, que obedecia a uma lógica de cortes drásticos neste setor. Mas é difícil ver qualquer aumento agregado de gastos públicos que possa impulsionar o crescimento económico, mesmo tendo em conta os salários e as pensões mais elevadas.

Um terceiro fator primordial na redução do défice, afetando tanto as finanças públicas (como as privadas), é a súbita mudança das condições financeiras internacionais, com implicações para a economia portuguesa. Esta alteração deve-se ao programa de Quantitative Easing (QE), de compra de obrigações do BCE, disponível apenas para os países que cumprem as regras da Zona Euro, e também à, consequente, descida das taxas de juro (atingindo níveis negativos de emissão de dívida pública, a curto prazo) e do serviço da dívida, dívida pública essa no valor de 126% do PIB.

De acordo com o Eurostat, os juros pagos pelo Governo caíram de 4,6% do PIB, em 2015, para 3,9%, em 2017. Igualmente importante, quando olhamos para a receita, são os 25 mil milhões de euros de títulos da dívida pública comprados pelo Banco de Portugal, sob o QE, significando que os juros pagos sobre esses títulos devem ser devolvidos à Tesouraria, como dividendos do Banco de Portugal (525 milhões de euros, em 2017, quase 0,3% do PIB).

Assim, a redução do défice pode ser explicada por uma combinação do aumento da receita fiscal, os ganhos financeiros e as restrições de gastos públicos.

 

A recuperação económica

Também é importante entender como é que a taxa de desemprego caiu de um pico de cerca de 17%, em 2013, para os atuais 8%.

Deixando de lado o papel da emigração (números de migração líquida mostram que mais pessoas saem do país do que aquelas que entram), o desemprego mais baixo foi, principalmente, resultado de novos empregos em serviços de mão-de-obra intensiva, no setor terciário, em hotéis e restaurantes. Esses serviços cresceram devido ao aumento do consumo interno. Os salários e pensões mais robustos também podem ter desempenhado aqui um papel, juntamente com a queda nos pagamentos de juros que as famílias portuguesas, altamente endividadas, têm de pagar aos bancos.

No entanto, é o turismo que cresce 10% ao ano. Segundo o Instituto Nacional de Estatística, tem sido o principal motor do crescimento económico português. Turbulência política em regiões que competem com Portugal – como o Norte de África e o Médio Oriente – o aumento da oferta de viagens aéreas de baixo custo e a publicidade internacional trouxeram turistas a Portugal, transformando os grandes centros urbanos de Lisboa e Porto.

Esse boom turístico, por sua vez, levou à especulação imobiliária desenfreada. Juntamente com a proliferação dos Airbnb, liderada por proprietários locais (crescimento anual de 60 por cento, em 2017), os fundos imobiliários estrangeiros compraram aglomerados de imóveis nos centros da cidade (80 por cento de todas as vendas de imóveis comerciais, em 2017, tiveram não residentes como compradores). Isto tem aumentado o preço da habitação, transferindo os moradores para os subúrbios.

Enquanto estas mudanças se concentram nos destinos turísticos do Porto, Lisboa e região Sul do Algarve, os preços médios das casas portuguesas aumentaram 27 por cento, em termos reais, entre o segundo trimestre de 2013 e o final de 2017, de acordo com o Banco de Portugal. O setor imobiliário e a construção devem, portanto, ser considerados fontes de crescimento económico recente.

O emprego nesses setores é precário, mal pago e definido pela alta rotatividade de funcionários. Entre 2013 e o final de 2017, foram assinados 3,8 milhões de novos contratos de trabalho, dos quais 2,6 milhões foram encerrados no mesmo período. Apenas cerca de um terço desses novos contratos são permanentes, sendo os dois terços restantes atípicos (por exemplo, através de empresas de trabalho temporário) ou contratos de duração limitada.

Mesmo com o salário mínimo mais alto, esses empregos proporcionam salários bem abaixo da média nacional. Segundo o Observatório das Crises e das Alternativas, o salário médio mensal dos novos contratos permanentes caiu de 961 euros, em meados de 2014, para 837 euros, no final de 2017.

O crescimento desses setores precários e de baixa remuneração explica, em parte, essa situação. Mas também é devido à relutância do Governo em reverter as reformas neoliberais do mercado de trabalho, impostas em 2012, que os direitos laborais estão sob todo o tipo de ataques (tipos de contratos, horas de trabalho, pagamento do trabalho extraordinário, férias, negociação coletiva etc.).

A atual recuperação e reestruturação da economia portuguesa centra-se, assim, nos sectores de baixa produtividade, atormentados pela precariedade e com pouca necessidade de novos investimentos. O investimento agregado (público e privado) permanece em níveis baixos; esse valor está projetado em 16,1% do PIB, para 2017, ainda bem abaixo do nível pré-crise de 2008, de 22,8%. Embora tenha havido alguma recuperação recente, o investimento privado ainda está 11% abaixo da média de 2005-2008. Parece improvável que este cenário mude em breve, uma vez que o setor bancário português se mantém numa posição fragilizada.

As baixas taxas de juros e os empréstimos de longo prazo do BCE impediram uma crise bancária sistémica, mas os balanços dos bancos ainda estão afetados por muitos empréstimos improdutivos- um índice de 13,3%, colocando Portugal atrás apenas da Grécia e do Chipre, entre todos os países da Zona Euro. A procura de crédito recuperou lentamente nos últimos dois anos mas, em geral, os bancos, empresas e famílias portuguesas continuam a trabalhar para reduzir as suas dívidas.

Enquanto isso, o BCE está a forçar uma aquisição da banca portuguesa por grandes bancos espanhóis, como o Santander e La Caixa, como parte da visão de uma União Bancária fortalecida por bancos pan-europeus. Fugas de e-mails mostram, por exemplo, que a venda do Banif ao Santander, em 2016, foi orquestrada pela Tesouraria portuguesa e pelo BCE, através de uma ameaça de corte de liquidez para o banco falido.

 

O que se segue?

É difícil prever o que o que se segue para a economia portuguesa. Esta beneficiou de uma combinação entre recuperação económica moderada da Europa e a política não convencional do QE.

De facto, a importância do ambiente externo favorável é evidente até pelo desempenho macroeconómico quase idêntico em Espanha. O seu governo de direita tem monitorizado um crescimento económico igualmente forte, a queda do desemprego, aumento do salário mínimo e a continuação do cumprimento das metas do défice impostas pela Zona Euro.

Esta combinação única dificilmente será mantida no futuro. Ou a economia europeia recupera e o BCE reduz as suas medidas de QE (o que já está a acontecer gradualmente), levando a taxas de juros mais altas, menor fluidez de capital para o setor imobiliário português e mais stress financeiro sobre a economia, altamente endividada; ou a economia europeia esmorece, privando Portugal dos seus principais motores de crescimento.

Enquanto isso, se o preço do petróleo crescer e o turismo recuperar nos países concorrentes como o Egito, a Tunísia e a Turquia, o saldo da conta corrente portuguesa estará em perigo.

No entanto, se as condições atuais se mantiverem e o crédito bancário interno retomar os seus fluxos pré-crise, para as famílias e as empresas, o actual aumento dos preços dos imóveis poderá continuar. Isto inflacionará ainda mais a atual bolha, sustentando o crescimento e o emprego e proporcionando a Portugal um período mais longo de aparente prosperidade.

De qualquer forma, a economia portuguesa está agora num terreno volátil, novamente dependente de fluxos financeiros estrangeiros e ainda com um dos maiores níveis de endividamento do mundo (público e privado). Se nenhuma mudança de política for tomada no futuro próximo, uma nova crise financeira é apenas uma questão de tempo.

No plano interno, as tensões sociais e políticas provocadas pela natureza desequilibrada da recuperação económica deram origem a lutas e greves dos trabalhadores nos serviços públicos (principalmente na saúde e na educação) e no setor privado (indústria automobilística, transportes, serviços). No entanto, as lutas tiveram pouco efeito sobre o ambiente político.

A recuperação económica portuguesa pode estar a acontecer sob areias movediças, mas isso não impediu que o atual Governo do PS crescesse nas sondagens. A sua retórica anti-austeridade, compatível com a Europa, não tem qualquer oposição política credível a nível nacional.

O Bloco de Esquerda e o Partido Comunista, enquanto isso, foram ganhando crédito com o fim do aumento da austeridade, mantendo assim o seu apoio eleitoral. No entanto, tendo esgotado os termos do acordo inicial com os socialistas, estes partidos enfrentam tempos difíceis na arena da política económica.

Embora tenham adotado um tom cada vez mais crítico sobre a política fiscal do governo, se retirassem o seu apoio parlamentar, provocaria, de imediato, eleições antecipadas. Dados os altos índices de aceitação do governo e a ameaça (real) da direita voltar ao poder, esses partidos certamente pagariam caro nas sondagens qualquer movimentação nesse sentido.

Estrategicamente falando, apesar de seu euroceticismo, o apoio destes partidos ao atual Governo levou-os a ser menos vigorosos quanto à dívida e a uma possível saída do Euro. Num contexto em que tais propostas parecem cada vez menos palpáveis, o espaço para a virada política de que precisamos está a diminuir. Parece que quaisquer desafios radicais ao status quo provavelmente serão derivados daquilo que poderá vir a acontecer noutros países europeus do que da mobilização política em Portugal.

 

https://jacobinmag.com/2018/07/portugal-left-bloc-eurozone-austerity-eu

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