O 13 de junho já pode ser considerado um dia histórico na Argentina: após anos de mobilização feminista com manifestações, debates, ocupações e dezenas de audiências públicas, as mulheres conseguiram arrancar a aprovação do projeto de Interrupção Voluntária da Gravidez na Argentina. Foi um primeiro passo importante conquistado com uma das maiores mobilizações já realizadas no país e que demonstra a potência da movimentação das mulheres.
Porém essa vitória é parcial. O projeto ainda precisa ser aprovado no Senado e enfrenta inimigos poderosos. Somente mantendo a mobilização é que as mulheres conseguirão concretizar a maior vitória democrática das últimas décadas no continente.
Macri, o Estado e a Igreja
O governo de Mauricio Macri, do Cambiemos, está cambaleando desde o ano passado. Após uma vitória eleitoral, o governo se sentiu fortalecido para aplicar um ajuste fiscal mais pesado. Porém, a luta e a mobilização contra a reforma da previdência, ainda que esta tenha sido aprovada, demonstraram uma maior fragilidade de Macri.
Foi neste contexto que no 8 de março, Macri deu o aval para o debate sobre a Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez. Esse aval demonstra o poder que o executivo tem nesses países, já que sem ele, seria praticamente impossível colocar em debate o projeto. Esse aval de Macri, que é claramente contra o projeto – participando inclusive de missas contrárias a ele – não foi uma “bondade” do presidente, foi uma manobra que teve como base dois processos: resultado da pressão do movimento feminista, que vem num crescente, pelo menos desde 2015; a situação de deterioração econômica e social do país.
É importante ressaltar o peso da Igreja Católica na Argentina. Até hoje, a Igreja Católica é financiada diretamente pelo Estado, que paga salários a parte da própria Igreja. A maior parte das leis que garantem esse funcionamento são frutos da Ditadura Militar (1976-1983) que vigorou no país. Vale lembrar que durante o governo de Perón (1946-1955), foi justamente sua ruptura com a Igreja Católica, em 1954, que levou ao golpe imperialista de 1955.
A Igreja Católica, com seu chefe-maior, o Papa Francisco, foi a ponta de lança da campanha “pró-vida” – que ignora completamente a vida das mulheres que realizam o procedimento de aborto clandestino no país. De acordo com dados reunidos pelo movimento feminista, se estima que ocorram cerca de 500 mil abortos clandestinos por ano no país, morrendo mais de uma mulher por dia em ocasião desses abortos. Essa frente conservadora e reacionária realizou diversas atividades contra o projeto. Porém nenhuma delas teve a força que o movimento de mulheres conseguiu atingir e, muito menos, o impacto na consciência de milhões de pessoas, principalmente das jovens mulheres estudantes e trabalhadoras do país.
Uma onda feminista que atravessa o país
A tradição do movimento feminista argentino é de longa data. Uma das mais importantes tradições é o Encontro Nacional de Mulheres: fundado em 1986 é um encontro anual que reúne milhares de movimentos e coletivos de mulheres, de distintas orientações, para intercâmbio de experiências, debates, formação política e também de preparação de campanhas do movimento feminista. Em 2017, estima-se que o Encontro reuniu 60 mil mulheres de todo o país no qual ocorreram 71 oficinas.
Essa tradição foi fortalecida por dois movimentos importantes. Um primeiro é uma onda crescente de feminismo que percorreu todo o mundo nos últimos anos e que tem levado a algumas autoras chamarem de “terceira onda” do feminismo. No Brasil, essa onda se expressou na “primavera feminista” que cresceu bastante após 2013. Na Argentina, isso se expressou no movimento impressionante que foi o “#NiUnaAMenos: um grito coletivo contra a violência machista” que luta contra o feminicídio no país – a cada 30 horas uma mulher morre por ser mulher na Argentina. Esse movimento de mulheres conseguiu impulsionar várias mobilizações impressionantes com centenas de milhares de mulheres das quais podemos destacar a ocorrida em 3 de junho de 2015 e a de 19 de outubro de 2016, após o brutal assassinato da jovem Lucía Perez.
Essa combinação foi importantíssima para toda a mobilização em torno da campanha pelo Aborto Legal. É essa combinação que explica a força do movimento e também da consciência pró-direito ao Aborto – entre 60-70% da população apoiava a medida. Desde que o debate começou, o movimento se organizou para intervir tanto nas audiências públicas, quanto nos debates organizados nas universidades, escolas, sindicatos, associações, etc., e nas mobilizações de rua. Vale destacar a ocupação de escolas e universidades exigindo o aborto legal, assim como o peso da esquerda socialista nas mobilizações e também no parlamento pressionando pelo debate e sendo a única bancada coerente com o projeto.
Dentre as mobilizações o destaque foram para as mobilizações de 3 e 4 de junho, nas quais centenas de milhares foram às ruas exigir a votação do projeto e, logicamente, a própria mobilização do dia 13 de junho, na qual cerca de 1 milhão de pessoas se vestiram com o pano verde, símbolo da campanha, e ocuparam as ruas de Buenos Aires para exigir a votação.
Foi essa mobilização histórica que conseguiu a aprovação apertada de 129 votos a favor, 125 contra, com uma abstenção. Essa votação foi conquistada na última hora quando três deputados mudaram seu voto e reverteram o placar que favorecia os contrários a vida das mulheres.
A pressão aumentará: greve geral contra o acordo com o FMI e as mobilizações #NiUnaAMenos
A situação econômica e política na Argentina é bastante complicada: o novo empréstimo para o FMI é somente a ponta de um iceberg de uma difícil situação do país. Neste campo social, está previsto uma grande mobilização para o dia 25 de junho que se combinará com uma greve geral no país. A mobilização das mulheres em torno ao aborto legal, sem dúvida alguma, é um potente elo dessas novas mobilizações no país.
A importante conquista democrática do movimento feminista tem que se consolidar com a vitória no Senado. É importante lembrar que o Senado é uma representação ainda mais antidemocrática das demandas da população, pois a representação não é proporcional a população, mas igual para cada província. Nesse sentido, a pressão do movimento feminista, que tem um caráter muito mais urbano e nos grandes centros populacionais, estará menos representada nessa “Câmara Alta”.
Diferentemente da Câmara de Deputados, o Senado tem majoritariamente políticos peronistas (divididos em vários partidos) e a presença da esquerda socialista é nula. Nesse sentido, está “aparentemente” nas mãos dos peronistas a aprovação do projeto. De acordo com os analistas, a votação deve ocorrer entre setembro e outubro deste ano. Porém, assim como foi com os deputados, quem decidirá a sorte do Aborto Legal será o movimento feminista nas ruas. E será com elas, que as mulheres de toda a América Latina poderão se levantar e erguer suas lutas em todo continente.
Renato Fernandes, de Campinas (SP) – Esquerda Online