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Logo à partida: Varoufakis-Tsipras adoptam uma orientação votada ao fracasso (5ª Parte)


A série de artigos que consagro ao livro de Varoufakis, Conversas entre Adultos (Conversations entre Adultes), constitui um guia para os leitores e leitoras de esquerda que não se dão por satisfeitos com a narrativa dominante transmitida pelos grandes meios de comunicação e pelos governos da Troika; e também para os que não se contentam com a versão apresentada pelo ex-ministro das Finanças [1]. Em contraponto ao relato de Varoufakis, indico os acontecimentos que ele silencia e exprimo uma opinião diferente sobre o que devia ter sido feito e sobre o que ele fez. O meu texto não substitui o de Varoufakis, corre em paralelo.

É essencial analisar a política praticada por Varoufakis e pelo governo de Tsipras, pois, pela primeira vez no século XXI, foi eleito um governo de esquerda radical na Europa. É da maior importância compreender as falhas e extrair lições sobre a maneira como esse governo defrontou os problemas que lhe surgiram pela frente, se não quisermos repetir o fiasco.

O essencial da crítica à política seguida pelo governo grego em 2015 não consiste em determinar as responsabilidades de Tsipras ou de Varoufakis enquanto indivíduos. O mais importante é realizar uma análise da orientação político-económica que executada, a fim de determinar as causas do malogro, ver o que poderia ter sido ensaiado em vez do que foi feito, e tirar daí lições sobre o que um governo de esquerda radical pode fazer num país periférico da zona euro.

Nesta parte vamos concentrar-nos sobre os primeiros dias do governo de Tsipras, durante os quais Yanis Varoufakis construiu uma estratégia de negociação com os credores europeus. Veremos que essa estratégia estava votada ao fracasso, pois Varoufakis recusava-se a entrar em confronto com o BCE, que tinha decidido asfixiar a Grécia desde 4 de fevereiro. As propostas que eles avançaram versavam pontos essenciais como a dívida, indo contra o programa do Syriza, sem no entanto receberem o apoio dos dirigentes europeus.

 

Primeiros dias do governo de Tsipras

Varoufakis conta que, nos derradeiros dias da campanha eleitoral, Alexis Tsipras recebeu uma mensagem enviada por Jörg Asmussen [2], conselheiro da direcção do SPD, membro da grande coligação dirigida por Angela Merkel. Oferecia-se ele para ajudar um futuro governo Syriza nas próximas negociações com as instituições europeias. Dava a entender que seria possível prolongar o Memorando em vigor, a fim de dar ao Governo o tempo necessário para prosseguir as reformas previstas no Memorando da Troika e chegar a um novo acordo.

Jörg Asmussen recomendava a Tsipras e à sua equipa que colaborassem com Thomas Wieser (social-democrata austríaco), que desempenhava (e continua a desempenhar) um papel chave no Eurogrupo e poderia constituir um aliado do Governo grego nas futuras negociações. O e-mail de Jorg Asmussen incluía um anexo redigido por Thomas Wieser. Tsipras e Varoufakis ficaram assim a saber que, segundo Thomas Wieser, o BCE não tencionava entregar à Grécia os proveitos resultantes dos títulos gregos que detinha, contrariando as promessas feitas em 2012 [3]. O montante ao qual a Grécia tinha direito e que nunca receberia ascendia a pouco menos de 2000 milhões €, o que constitui um montante considerável para um país da dimensão da Grécia. Este valor correspondia à estimativa do custo total das medidas humanitárias que o Syriza prometia realizar (ver quadro sobre o Programa de Tessalónica). Ficaram também a saber oficiosamente que o BCE não desembolsaria nenhuma das quantias previstas no quadro do 2º Memorando, que expiraria a 28/02/2015. Tratava-se de tranches que o FMI e o FEEF se tinham comprometido a desembolsar antes do fim do 2º Memorando [4]. Por conseguinte o aviso era muito claro: o futuro governo dirigido pelo Syriza seria asfixiado financeiramente pela Troika.

asmussenNeste documento recebido antes das eleições, Thomas Wieser apresentava a hipótese de prolongar o 2º Memorando, por período indeterminado, como uma oportunidade a aproveitar.

Varoufakis respondeu insistindo em que fosse entregue a quantia devida à Grécia, respeitante aos lucros realizados pelo BCE com os títulos gregos.

Ao mesmo tempo, segundo Varoufakis, a perspectiva de prolongar o Memorando para além de 28 de fevereiro era de aproveitar.

A seguir os acontecimentos precipitam-se. As eleições de 25 de fevereiro são ganhas pelo Syriza. O governo Syriza-ANEL é empossado a 27 de janeiro.

Varoufakis não se dá ao trabalho de descrever a composição do Governo. Centra-se nalguns pontos que lhe dizem directamente respeito e dá a entender que se levanta uma primeira dificuldade com Alexis Tsipras. Varoufakis desejava que os seus aliados, Euclide Tsakalotos [5] e George Stathakis [6], fossem nomeados para dois cargos ministeriais directamente ligados ao Ministério das Finanças. Ora Tsipras já tinha decidido nomear para um desses cargos Panagiotis Lafazanis, dirigente da plataforma de esquerda no seio do Syriza, partidário da suspensão unilateral do reembolso da dívida e favorável à preparação para a saída do euro. Escreve Varoufakis: «Lafazanis à cabeça do Ministério da Recuperação Produtiva. Era uma catástrofe». E prossegue: «Com Lafazanis à cabeça de um ministério tão importante e Euclide – que aprovava o nosso pacto – fora do Governo, a minha estratégia de negociação ficava em maus lençóis» [7]. Segundo Varoufakis, Tsipras recusou desembaraçar-se de Lafazanis, com o seguinte argumento: «Preciso de Lafazanis no Governo, à cabeça de um ministério económico, para evitar que ele nos moa o juízo fora do Governo. Se lhe retiro o cargo agora, em vésperas de prestarmos juramento, ele ainda se vira mais contra mim. Então é que a Plataforma de Esquerda avança a todo o vapor contra nós.» [8]

Recordemos que mais tarde Lafazanis se opôs à capitulação de julho de 2015, demitiu-se do cargo de ministro e como deputado votou contra o 3º Memorando; abandonou o Syriza com uma vintena de deputados e numerosos militantes e constituiu uma nova organização política: Unidade Popular.

Por fim, Varoufakis convenceu Tsipras a propor a Tsakalotos o cargo de vice-ministro dos Negócios Estrangeiros encarregado dos assuntos económicos, de maneira que ele pudesse participar nas negociações com os credores e em todas as deslocações a Bruxelas.

Varoufakis põe em destaque aquilo que ele chama o gabinete de guerra (parece que Tsipras e quem fazia parte do gabinete também usava este termo), ou seja o círculo de ministros e responsáveis directamente ligados à estratégia de Tsipras. Eis o que diz Varoufakis desse gabinete de guerra: «Quando os seus membros se encontravam na Grécia, em vez de estarem em Bruxelas ou noutro sítio, o gabinete de guerra reunia-se todos os dias. Participavam Alexis Tsipras, o vice-primeiro-ministro Dragasakis, alter ego de Alexis, Nikos Pappas, eu próprio, Euclide Tsakalotos e Spyros Sagias, secretário do gabinete. Juntavam-se a nós frequentemente Chouliarakis, presidente do conselho de economistas, e Gabriel Sakellaridis, porta-voz do Governo.» [9]


Os primeiros dias de Varoufakis como ministro

Varoufakis explica que nos três primeiros dias das suas funções como ministro, dedicou-se a organizar a direcção do seu ministério, a lançar ao trabalho a sua equipa de colaboradores, a estimar a liquidez de que o Governo dispunha para pagamento da dívida e funcionamento do Estado (pagamento das reformas, dos salários dos funcionários públicos, …). A resposta que obteve: dava para 11 dias a 5 semanas.

Varoufakis explica ainda que o seu ministério tinha sido muito debilitado pela Troika: três dos serviços que lhe estavam ligados escapavam parcialmente ao poder do ministro: o organismo encarregue da recapitalização dos bancos privados (o FHSF), o organismo encarregue das privatizações (o TAIPED) e a administração das receitas fiscais, que tinha à cabeça uma direcção proveniente do privado.

Acrescenta que descobriu a 30 de janeiro que Dragasakis e Tsipras tinham decidido enfraquecer ainda um pouco mais o seu ministério, retirando-lhe todas as competências relativas aos bancos. Embora afirme no seu livro que obteve o acordo de Tsipras-Pappas e Dragasakis para propor aos credores europeus tomar o controlo dos bancos gregos [10], aceitou abandonar esse projecto logo no início das suas funções. Eis o seu relato desse episódio: «O último assunto da nossa reunião nocturna foram os bancos gregos. Pedi-lhes que dessem ideias para prepararmos o confronto que teria lugar no dia em que eu submetesse a minha proposta para os “europeizar” ligando-os à UE. Subitamente Wassily [Kafouros] [11] interrompeu-me:

– As cartas estão na mesa, Yánis – disse-me ele, mostrando-me um decreto emitido nessa tarde. Vinha do gabinete do vice-primeiro-ministro, com o selo do secretário do gabinete. O decreto estipulava que a jurisdição de tudo quanto dissesse respeito aos bancos tinha sido transferida do Ministério das Finanças para o Gabinete do vice-primeiro-ministro. 

– Eu bem te tinha avisado – atirou-me Wassily. – O Dragasakis meteu os seus compinchas banqueiros debaixo da asa, para os proteger de pessoas como tu.

Infelizmente ele tinha razão, mas eu não tinha outro remédio senão conceder a Dragasakis o benefício da dúvida.» [12]

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Como sublinhei claramente na primeira parte desta série, a proposta de transferir os bancos gregos para os credores europeus era inaceitável do ponto de vista dos interesses do povo grego. Mas é impressionante que Varoufakis, que tinha feito dessa proposta uma das seis condições sine qua nonpara aceitar o cargo de ministro das Finanças, a ela tenha renunciado logo nos primeiros dias de exercício das suas funções.

É o início precoce duma longa série de renúncias da parte de Varoufakis.

Varoufakis explica que, com os seus colaboradores, planificou vários projectos concretos. Alguns são muito interessantes: a possibilidade de construir um sistema paralelo de pagamento, em caso de choque frontal com os credores, a anulação de uma decisão do governo anterior que pretendia desenvolver os jogos de sorte para aumentar as receitas públicas, alguns dispositivos para lutar contra a grande evasão fiscal … Outros projectos eram mais que duvidosos, para não dizer inadmissíveis – sobretudo no caso do projecto de amnistia fiscal, que Varoufakis apresenta da seguinte forma: «Estava também previsto que eu anunciasse que nos próximos quinze dias o Ministério das Finanças iria abrir um portal, no qual todos os cidadãos poderiam registar oficialmente rendimentos que nunca tinham declarado até aí, auferidos em 2010-2014. Apenas 15 % desses montantes seriam passíveis de colecta fiscal, pagável com cartão de crédito ou via Internet. Em troca o pagador receberia um recibo electrónico que lhe garantia a imunidade contra qualquer acusação de fraude ulterior.» [13]

Ou esta iniciativa mais que duvidosa: «Vasculhar as centenas de milhar de pequenas fraudes e infligir um tratamento de choque à sociedade grega para corrigir os seus costumes.» [14]

A imagem radical de Varoufakis

A 30 de janeiro, em Atenas, a conferência de imprensa que se seguiu ao primeiro encontro de Varoufakis com Jeroen Dijsselbloem, ministro socialista holandês que presidia ao Eurogrupo nessa época, contribuiu largamente para criar uma imagem muito radical de Varoufakis perante a opinião grega e estrangeira. Todas as televisões do mundo mostraram o confronto visual entre Varoufakis e Dijsselbloem. Varoufakis rebelde face a Dijsselbloem; este arrogante e manifestamente grosseiro para com um ministro que era seu anfitrião.

Os meios de comunicação dominantes atacaram Varoufakis, mas o comportamento dos representantes da Troika é a tal ponto o de dignitários estrangeiros que se comportam como quem entra em território conquistado e são incapazes de suportarem qualquer sinal de resistência, que Varoufakis se transformou em símbolo de um governo inconformado que resiste à injustiça dos poderosos. [15]

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Varoufakis e o programa de governo do Syriza

O programa de Tessalónica, apresentado em setembro de 2014, prometia pôr fim ao 2º Memorando e substituí-lo por um plano de reconstrução nacional, obter a anulação da maior parte da dívida pública, romper com a austeridade, devolver ao povo grego uma série de direitos sociais, repor a maior parte dos salários e pensões de reforma nos valores anteriores ao Memorando de 2010, pôr fim às privatizações, retomar o controlo dos bancos, criar um banco público de desenvolvimento, reduzir as dívidas das famílias de baixo rendimento em relação ao Estado e aos banqueiros privados, criar 300 000 empregos, reanimar a democracia (ver caixa: Excertos do programa de Tessalónica).

Varoufakis era contrário a esse programa, conforme declara alto e bom som no seu livro. Referindo-se a setembro de 2014, escreve: «Alexis tinha apresentado as grandes linhas da política económica do Syriza num discurso em Tessalónica. Surpreendido, procurei o texto e li-o. Senti-me submergido numa vaga de náusea e indignação. Meti imediatamente mãos à obra. Menos de meia hora depois, tinha um artigo que o primeiro-ministro Samaras iria utilizar para fustigar o Syriza diante do Parlamento: “Até Varoufakis, o vosso guru económico, acha que as vossas promessas não valem um caracol furado”. E era verdade […] O programa era de tal maneira manco, que nem me dei ao trabalho de o criticar ponto por ponto.» [16]

Varoufakis afirma ter aceite o cargo de ministro na condição de poder pôr em prática seis medidas económicas prioritárias. Recordemos [17] as suas seis prioridades: «A reestruturação da dívida vem em primeiro lugar [sem redução do stock da dívida, enquanto o programa de Tessalónica afirma que é preciso anular a maior parte da dívida pública – Nota da Redacção]. Segundo, o excedente primário não deve ultrapassar 1,5 % do rendimento nacional e nada de novas medidas de austeridade. Terceiro, reduções no leque de impostos sobre as empresas. Quarto, privatizações estratégicas, na condição de preservar os direitos dos trabalhadores e relançar o investimento. Quinto, criação de um banco de investimento que utilizaria os activos públicos, actuando como garantia para gerar investimento interno, e cujos dividendos seriam canalizados para os fundos de pensões públicos. Sexto, uma política de transferência das acções e da gestão dos bancos para a UE […]» [18]

Destas prioridades, apenas a segunda e a quinta coincidem com o programa de Tessalónica. Ora estas duas prioridades foram abandonadas após o acordo de 20 de fevereiro de 2015 (ver mais à frente).

 

Excertos do programa de Tessalónica
apresentado por Alexis Tsipras em setembro de 2014 (13-09-2014) [19]

«[…] Pedimos que nos dêem um mandato forte, apoiado por uma larga maioria parlamentar e um consenso social ainda mais vasto, para levarmos a cabo uma negociação que proteja os interesses do nosso povo na Europa.

Pedimos o recurso imediato ao veredicto popular e um mandato de negociação que vise a anulação da maior parte da dívida nominal para assegurar a sua viabilidade [20].

O que foi feito para a Alemanha em 1953 [21] deve ser feito em relação à Grécia em 2014. reivindicamos: 
Uma «cláusula de crescimento» para o reembolso da dívida. 
Uma moratória – suspensão dos pagamentos – a fim de preservar o crescimento. 
A independência dos programas de investimentos públicos em relação às limitações impostas pelo pacto de estabilidade e crescimento. [22]
[…]

Declaramos também, alto e bom som, que continuamos a reivindicar o reembolso do empréstimo imposto à Grécia pelas forças de ocupação nazis. [23]
[…]

Comprometemo-nos, perante o povo grego, a substituir logo nos primeiros dias de governo – e independentemente dos resultados da nossa negociação – o Memorando por um Plano Nacional de Reconstrução, [24] rigorosamente elaborado e calculado com precisão.

O Plano Nacional de Reconstrução é constituído por um conjunto de medidas para a recuperação económica e social, centradas em quatro grandes eixos: 
Medidas para remediar a crise humanitária. [25
Medidas prioritárias para relançar a economia. 
Plano nacional de luta contra o desemprego e melhoria da situação do mercado de trabalho. 
Restabelecimento institucional e democrático do sistema político.

A. Medidas para remediar a crise humanitária

O nosso programa, com um custo aproximado de 2000 milhões de euros, consiste num conjunto de intervenções urgentes para defender as camadas sociais mais vulneráveis.

Inclui: 
Acesso à energia eléctrica gratuita para 300 000 famílias que estão abaixo do limiar de pobreza (3600 kWh por ano). [26
Programa de subsídios alimentares (senhas de refeição para 300 000 famílias). [27]
[…]. 
Cuidados médicos gratuitos para todos. [28]
[…]
–* Projecto de acesso à habitação.
O projecto prevê a reabilitação de antigas casas e hotéis abandonados, a fim de assegurar numa primeira fase a disponibilidade de 25 000 novas habitações com rendas subsidiadas. [29]

– Medidas favoráveis às baixas pensões. [30]

Já nos comprometemos na melhoria progressiva das reformas baixas. Comprometemo-nos hoje, além disso e a fim de reforçar a procura, a restabelecer o décimo terceiro mês para os 1 262 920 reformados cuja pensão não ultrapassa os 700 €. E esta medida será alargada – progressivamente e em função da conjuntura económica – a todos os reformados e a todos os assalariados.

– Redução do preço dos transportes públicos.
[…]

B. Medidas para relançar a economia

1. O segundo eixo reúne as medidas de retoma económica, cuja prioridade é o fim da política fiscal actualmente em vigor, cujas consequências para a economia real são nefastas, [31] a aplicação de uma nova seisachtheia [32], e o reforço da liquidez e da procura.

A questão é que a economia real é hoje verdadeiramente desastrosa.

O raid fiscal do governo sobre a classe média e a sobretaxação de quem não defrauda o Estado esmagam a maior parte da população, que vê constantemente ameaçada a sua vida profissional e até a própria existência. Desta angústia insuportável é testemunho o número recorde de suicídios. As classes laboriosas, os agricultores [33], os assalariados, os pequenos e médios empresários, o corpo da economia real, em suma, vê-se obrigado a enfrentar actualmente uma tormenta de impostos que ultrapassa a sua força de resistência. E não tarda nada terão de enfrentar nova tormenta: a das hipotecas das suas propriedades privadas pelos bancos, uma vez que têm dificuldade em reembolsar os empréstimos que contraíram no passado, antes da crise, antes do desemprego, antes da mutilação dos seus rendimentos, antes do encerramento das empresas.

A obstinação do Governo em sobrecarregar de impostos suplementares quem já está por terra só pode acabar num impasse, muito simplesmente porque não é possível cobrar a quem nada tem para dar. “Quem nada tem, nada pode dar.” Para reconhecer a aberração desta política, basta olhar para o montante dos créditos averbados e não recebidos pelo Estado: actualmente ronda os 60 000 milhões de euros [34].

E a cada mês que passa, este número aumenta 1000 milhões de euros.
[…]

A realização de um processo de regularização que implica a interrupção imediata de todos os processos penais e da penhora das contas bancárias dos devedores, da residência principal, dos salários, etc., assim como a aprovação de um perdão fiscal.
[…]

Com estas medidas, não aspiramos unicamente a aliviar as pessoas que sofrem e que formam a espinha dorsal da economia, mas também a relançar a economia real, libertando-a da pressão asfixiante dos impostos e dos aumentos, que são totalmente improdutivos porque não podem ser cobrados.

O benefício imediato estimado pela regularização das dívidas e o início dos pagamentos das contas permitir-nos-á financiar as acções necessárias para o alívio e repartição justa das cargas fiscais.
Além disso, no quadro das medidas que visam relançar a economia, anunciamos hoje a revogação imediata da nova taxa fundiária.

2. Revogação imediata da nova taxa fundiária (ENFIA)
pois ela é o símbolo da injustiça social que caracteriza toda a política económica do governo de Samaras.
[…]

A ENFIA, por consequência, não pode ser corrigida, não pode ser melhorada – apenas pode ser revogada. [35]

Em seu lugar:

Iremos estabelecer um imposto socialmente justo sobre a grande propriedade (FMAP) e não taxaremos ninguém por valores fictícios. 

O cálculo do valor dos bens para fins de colecta fiscal será imediatamente reajustado de 30 % a 35 %. 
Este imposto será progressivo e o limite inferior de isenção será aumentado. 
A habitação principal será isenta, à excepção das propriedades de grande luxo ostentatório.
[…]

3. Restauração do limiar de isenção para os 12 000 €/ano [36]
[…]

4. Instituímos uma “nova Seisachtheia” [libertação das dívidas] 
Será aplicada aos créditos duvidosos (non performing loans, ou seja as dívidas em incumprimento após três meses ou mais), também chamados “vermelhos”, pois a sua anulação parcial é uma condição indispensável tanto para o saneamento das carteiras bancárias, como para a restauração da liquidez monetária e sustentação do crescimento e relançamento da economia. 

A “nova seisachtheia” será aplicada caso a caso e consistirá na anulação parcial das dívidas de pessoas que se encontram no limiar de pobreza. [37]
[…]

5. Criação de um organismo público encarregue da gestão da dívida privada.
[…]

Trata-se antes do mais de impedir a utilização da dívida privada como meio de confiscar a propriedade dos cidadãos, e como meio de controlar o sector privado da economia.

Durante os próximos dias, o Syriza irá propor no Parlamento uma alteração legislativa para prolongar indefinidamente a suspensão da venda em hasta pública das residências principais cujo valor seja inferior a 300 000 €. Vamos também apresentar uma proposta de lei para proibir a venda ou concessão de títulos a instituições bancárias não reconhecidas ou a empresas de gestão de contratos de empréstimo e de garantias.

Numa palavra, não permitiremos que os abutres dos distress funds internacionais especulem e confisquem as casas dos cidadãos. [38]

Caros amigos e amigas,

Já o disse o ano passado, neste mesmo lugar, nesta mesma tribuna, e volto a repeti-lo este ano: a chave para o relançamento da economia é o sistema financeiro.

Com o Syriza no Governo, o sector público retomará o controlo do Fundo Helénico de Estabilidade Financeira [FHEF – em inglês HFSF] e exercerá todos os seus direitos sobre os bancos recapitalizados. [39] Isto significa que o sector público decide sobre a sua própria administração.

Ao mesmo tempo lançaremos acções com vista a assegurar a liquidez da economia real. Entre essas acções figura a instituição de um banco de investimento e de bancos específicos.

6. Instituição de um banco de investimento e de bancos específicos

Para nós, a nova arquitectura do sistema bancário incluirá, além dos bancos sistémicosrecapitalizados, novos bancos cooperativos específicos e um banco público de investimento.

Por isso vamos criar um banco de desenvolvimento [40], e bancos com missões específicas, para financiar as PME e os agricultores. Para sustentar a liquidez necessária ao desenvolvimento de equipas profissionais dinâmicas, que por sua vez trarão energia e novo impulso ao crescimento e à recuperação produtiva.

7. Restauração do salário mínimo para os 751 €
Vamos aumentar o salário mínimo para 751 € para todos os trabalhadores, independentemente da sua idade. [41]

O nosso modelo económico confirma as conclusões do modelo do Instituto do Trabalho da GSEE (Confederação Geral dos Trabalhadores Gregos): a restauração do salário mínimo não só não piora, com o seu custo, o crescimento, como até o beneficia.

[…]

Caros amigos,

O terceiro eixo do Plano Nacional de Recuperação que vos apresentamos hoje inscreve-se na perspectiva do nosso grande objectivo nacional, que é o de restabelecer o pleno emprego no nosso país, voltar a dar esperança e perspectivas de futuro aos nossos jovens, que emigram massivamente, quando a sua força viva é necessária para reconstruir o nosso país.

C. Plano de recuperação do emprego

1. Restauração dos direitos do trabalho
Os direitos dos trabalhadores suprimidos pelas leis saídas dos memorandos serão imediatamente restabelecidos, juntamente com o salário mínimo. Os contratos colectivos de trabalho serão restabelecidos, bem como o princípio da manutenção das vantagens adquiridas em contrato ou acordo colectivo anterior. [42]
[…]

As reformas resultantes de despedimentos colectivos e abusivos, os contratos precários de “colocação de empregados” serão revogados.

2. Plano de criação de 300 000 novos empregos nos sectores público e privado e nos da economia social. [43]

[…]

3. As categorias de beneficiários do subsídio de desemprego serão alargadas
[…]

D. Intervenções para a reconstrução institucional e democrática do Estado […] Progressivamente, iremos aumentar os recursos colectivos regionais para reforçar a sua participação activa na recuperação produtiva do país. Poderão assim beneficiar não só dos empréstimos com baixa taxa de juro, mas também da emissão pelo futuro banco de desenvolvimento das obrigaçõesdestinadas ao financiamento das suas iniciativas. [44]
b) Iremos reforçar as instituições de democracia representativa e introduziremos novas aplicações institucionais da democracia directa no funcionamento do sistema político, tais como a iniciativa legislativa popular, o veto popular, o referendo de iniciativa cidadã.

Iremos reforçar o papel do Parlamento na sua função legislativa e na sua função de controlo do executivo, [45] limitaremos severamente a imunidade parlamentar e suprimiremos o estatuto particular dos ministros em matéria de responsabilidade penal, que institucionaliza um “desvio vicioso dos princípios duma sociedade democrática”.

c) Iremos redefinir o estatuto de funcionamento do conjunto dos meios de difusão de informação gregos, redesenhando a paisagem audiovisual em conformidade com as exigências legais e com uma vigilância reforçada da sua transparência. Reforçaremos os meios de comunicação regionais. Criaremos uma verdadeira televisão pública, democrática, pluralista e de alta qualidade, reconstituindo a ERT a partir do zero. [46]

Caros amigos,

Nós não prometemos. Nós comprometemo-nos. […] Pela nossa parte, já elaborámos um plano de acção escalonado em seis meses contra esta gangrena, o qual prevê:
Antes do mais, a intensificação e aceleração do controlo das transacções entre grupos, das “listas Lagarde”, de Liechtenstein, das transferências de fundos, das sociedades offshore e de imobiliário no estrangeiro. Para isso vamos montar um serviço especial, composto por peritos e munido de apoio tecnológico apropriado, após a longa, deplorável e enigmática inacção do Governo actual. [47]

As estimativas das receitas provenientes da repressão à fraude fiscal e ao contrabando são muito ambiciosas. Nós, com moderação, estimamos que o nosso plano de acção trará para os cofres do Estado, no primeiro ano, pelo menos 3000 milhões de euros.

No que diz respeito ao capital inicial das empresas do sector público, do vector intermédio e dos bancos especializados – estimado em 3000 milhões de euros –, será financiado por um apoio de 11 000 milhões de euros previsto para os bancos pelo mecanismo de estabilidade. [48
[…] »

 

As propostas apresentadas por Varoufakis à Troïka

Contrariamente à imagem caricatural apresentada pelos meios de comunicação dominantes e pelos governos dos países credores, Varoufakis, como negociador principal, apresentou propostas muito moderadas à Troika; essas propostas eram claramente recuadas em comparação com o programa de Tessalónica e algumas entravam em contradição evidente com ele. Varoufakis assegurou aos seus interlocutores que o Governo grego não pedia uma redução do stock da dívida. Propôs que os créditos detidos pela Troika sob diversas formas fossem transformados em créditos de mais longa duração, permitindo ao Governo reduzir a parte do seu orçamento consagrada ao reembolso anual. Não pôs em questão a legitimidade ou a legalidade dos créditos reclamados à Grécia. O que é grave.

Não deu prioridade ao direito e à vontade do Governo grego de realizar uma auditoria das dívidas da Grécia. No seu livro não se encontra uma única palavra sobre a comissão de auditoria criada pela presidente do Parlamento grego. Nem uma. Se não fala nela, não é por a iniciativa ter passado despercebida na Grécia; pelo contrário, ela deu brado. Varoufakis optou pelo silêncio total sobre esta importante iniciativa porque ela não encaixava de todo na sua visão de negociação.

O ex-ministro das Finanças propôs à Troika o rearranjo de uma parte do Memorando em curso, prolongando-o e adaptando algumas das medidas previstas. Afirmou repetidamente que 70 % das medidas cuja aplicação ainda estava prevista eram positivas mas que 30 % do Memorando devia ser substituído por outras com efeito neutro sobre o orçamento, ou seja, que as medidas novas, nomeadamente as destinadas a fazer face à crise humanitária, não aumentariam o défice previsto pelo governo de Samaras, pois seriam contrabalançadas pelos rendimentos suplementares ou pelas reduções de despesa em certas áreas.

Varoufakis afirmou que o Governo que ele representava não reverteria as privatizações que tinham sido feitas desde 2010 e que além disso eram aceitáveis certas privatizações suplementares, desde que o preço de venda fosse suficientemente elevado e que os adquirentes respeitassem os direitos dos trabalhadores.

Varoufakis afirmou também que a boa saúde da Grécia dependia da sua manutenção na zona euro.

Tratou de não mostrar aos seus interlocutores a parte do programa do Syriza que implicava que o Estado grego tomasse medidas de controlo sobre os bancos privados dos quais era accionista principal.

Um dos aspectos verdadeiramente radicais no discurso de Varoufakis foi que por várias vezes, no início do seu mandato, afirmou que a Troika não tinha legitimidade democrática e que o Governo não colaboraria com ela. Mas ao ler o seu livro, apercebemo-nos rapidamente que na prática ele aceitou a Troika. Esta apenas desapareceu ao nível do discurso oficial. A única concessão que a Troika fez foi aceitar fazer de conta que não existia. Na realidade continuou a funcionar; e fê-lo de maneira implacável e palpável. Varoufakis mostra que ela estava presente em todos os momentos chave da negociação e das tomadas de decisão. Nunca deixou de existir e de agir.

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Varoufakis descreve bem a que ponto a dívida era um fardo insuportável. Escreve que, alguns dias antes das eleições, tinha calculado o montante a ser reembolsado durante o ano de 2015. Passo a citá-lo: «Descobri que só no ano de 2015, o Estado grego precisaria de 42,4 mil milhões de euros para “rolar” a sua dívida, ou seja, 24 % do rendimento nacional. Mesmo admitindo que a Troika desembolse o que estava estipulado para o segundo resgate, continuavam a faltar 12 mil milhões. Para a Grécia, impedida de procurar empréstimos junto dos investidores privados, com os cofres vazios e uma população exangue, pagar as dívidas resumia-se a uma coisa: pilhar o que restava das reservas dos fundos de pensão, dos municípios, dos hospitais e das instituições públicas, continuando ainda assim a mendigar à Troika empréstimos colossais, e depois continuar a espremer os reformados, os municípios, os hospitais e as instituições públicas ainda mais, para entregar os seus tostões à Troika. Só uma lobotomia me teria persuadido que esta solução servia os interesses do nosso povo.» [49] Mais adiante retoma este tema, a propósito do seu primeiro encontro com o presidente do Eurogrupo, a 30 de janeiro, em Atenas: «os reembolsos previstos, só para o ano de 2015, representavam 45 % da totalidade dos impostos que o Governo previa receber» [50].

O problema era que ao comprometer-se a 20 de fevereiro em prosseguir o reembolso integral da dívida, segundo o calendário previsto até 30 de junho de 2015, ele aceitou uma situação pior que o inferno descrito acima, pois os credores não se comprometeram a desembolsar a menor quantia. Ora era preciso reembolsar 7 mil milhões de euros daí até finais de junho de 2015. Compare-se o montante de 7 mil milhões com o custo estimado do conjunto das medidas humanitárias propostas no programa de Tessalónica, que rondava os 2 mil milhões para o ano de 2015. Na realidade, por causa do pagamento da dívida, segundo as minhas estimativas pessoais, o governo de Tsipras não gastou mais de 200 milhões de euros para combater a crise humanitária entre fevereiro e junho de 2015, o que era insuficiente. Isto mostra claramente que, ao aceitar prosseguir os reembolsos sem ter a garantia de receber dinheiro fresco dos credores, a situação não podia ser pior. Isto implicava também que o segundo memorando teria de dar lugar a um terceiro, a fim de os credores concederem novos empréstimos destinados a reembolsar os anteriores.

Por mais que Varoufakis afirme que era possível encontrar outra saída, ela era totalmente mirífica e baseada na esperança de que os credores pudessem ser convencidos, com base em meros argumentos, a permitirem que a Grécia acabasse com os aspectos mais anti-sociais das políticas de austeridade, a libertarem-na da canga do Memorando e a permitirem-lhe reduzir fortemente os montantes a reembolsar durante 2015 (sem tocar no stock total). Era irrealizável.

A estratégia de negociação adoptada por Varoufakis

A reunião de 30 de janeiro entre Varoufakis e o presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, mostrou que este recusava ter em conta o mandato dado pelo povo grego ao governo de Tsipras. Recusava substituir o memorando por um novo acordo, recusava modificar o memorando em vigor. Dava claramente a entender que o Banco Central europeu poderia vedar o acesso dos bancos gregos à liquidez.

A fim de tentar modificar a situação e encontrar apoios, Varoufakis decidiu encontrar-se com os dirigentes franceses e italianos (ambos os governos eram «socialistas» e esperava-se que apoiassem o Governo grego na sua intenção de aliviar o garrote da austeridade imposta pela Comissão Europeia), os dirigentes britânicos, que lançavam nessa época uma política de retoma económica à custa de um défice fiscal crescente. A seguir dirigir-se-ia a Francoforte para se encontrar com a delegação do BCE, a fim de tentar amansá-la. E por fim iria a Berlim.

Antes de iniciar o seu périplo, encontrou-se com o trio Tsipras-Pappas e Dragasakis. Obteve luz verde para não pedir uma anulação da dívida aos dirigentes com quem iria encontrar-se. Obteve também o acordo do trio para não invocar o direito moral a um alívio da dívida. Ao fazer isto, Varoufakis renunciou a um argumento fundamental para convencer a opinião pública internacional e levantar dificuldades aos credores num dos seus principais pontos fracos.

Varoufakis reconhece que este acordo secreto com o trio era oposto à orientação oficial do Syriza: «a posição do Syriza era muito clara: o partido exigia nada mais nada menos que uma anulação incondicional da dívida. Metade dos membros continuava a querer uma redução unilateral da maior parte da dívida, a maioria nem queria ouvir falar de uma troca de dívidas; ora apenas um frágil pacto verbal me ligava ao trio dirigente» [51].

Ao adoptar esta posição, Varoufakis foi ao mesmo tempo contra o programa graças ao qual o Syriza acedeu ao governo e contra os militantes do Syriza.

A partir de 1 de fevereiro de 2015, seis dias após o início do governo, Varoufakis inicia a sua primeira ronda pela Europa enquanto ministro. Vai acompanhado por Euclide Tsakalotos. No dia 1 de fevereiro, domingo, em Paris, Varoufakis tem uma agenda de maratonista: uma reunião oficial com Michel Sapin, ministro francês das Finanças, outra com Emmanuel Macron, ministro francês da Economia, além de quatro reuniões oficiosas com Poul Thomsen, director-adjunto do FMI encarregado do departamento Europa, Pierre Moscovici, comissário europeu para os assuntos económicos e monetários, Benoît Coeuré, número dois do BCE, e com o gabinete de François Hollande. A 2 de fevereiro, segunda-feira, Varoufakis foi recebido em Downing Street por George Osborne, primeiro-ministro conservador britânico, e a seguir deu uma conferência perante duas centenas de financeiros convidados pelo Deutsche Bank. A 3 de fevereiro dirigiu-se a Roma, para se encontrar com o ministro das Finanças italiano, Pier Carlo Padoan. Por fim, a 4 de fevereiro, encontrou-se em Francoforte com Mario Draghi e os membros do conselho executivo do BCE.

Varoufakis apresentou a todos a sua proposta: troca de dívidas sem anulação ou redução do seu volume. [52] Deixou também claro, perante os representantes dos meios financeiros, que o governo grego pagaria sem falta a dívida ao sector privado (cerca de 15 % da dívida grega eram detidos por investidores privados – banqueiros gregos ou estrangeiros, fundos de investimento, fundos abutre, etc.).

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Varoufakis mostra a hipocrisia duma série de dirigentes com quem se encontrou. Michel Sapin leva a taça da duplicidade: em privado mostrou-se favorável à proposta de Varoufakis, à troca de dívida, a um rearranjo considerável do memorando, à solidariedade com o Governo grego, mas na conferência de imprensa adoptou uma postura completamente diferente.

Em privado: «Michel [Sapin] respondeu-me como um verdadeiro companheiro de armas: – O sucesso do vosso governo será o nosso sucesso. É importante mudarmos a Europa juntos e substituirmos esta severidade obsessiva por uma agenda pró-crescimento. A Grécia precisa disso. A França também. Toda a Europa precisa disso. Aproveitei para salientar os pontos chave da Modesta Proposta. O BCE podia reestruturar uma parte da dívida da zona euro sem cortes e sem pedir à Alemanha que pagasse pelos outros e sem que servisse de garante da dívida pública dos países da periferia. […] Michel ouviu-me atentamente e por fim afirmou que era essa a boa via para a Europa. Tínhamos retardado a aplicação deste tipo de políticas, afirmou ele com convicção. Era preciso refundar a Europa de mãos dadas. Pouco faltou para propor que fôssemos para a rua tomar a Bastilha ao som da Marselhesa!» [53].

Chegado à conferência de imprensa, mudança de tom. Segundo Michel Sapin, o Governo grego devia respeitar as suas obrigações perante os credores, Tsipras devia aplicar os acordos assinados pelos governos anteriores.

Segundo Varoufakis, aquando do seu contacto com o comissário Pierre Moscovici, este comportou-se como numa discussão entre camaradas dispostos a unir forças para mudar a Europa [54]. Varoufakis concluirá passado pouco tempo que na realidade Moscovici não dava provas de ser um aliado do Governo grego.

Varoufakis não deixa, ao longo do livro, de ser elogioso em relação a Emmanuel Macron, então ministro da Economia.

O primeiro contacto com Benoît Coeuré, membro da direcção do BCE, é revelador. Este perguntou de chofre a Varoufakis se o Governo grego tencionava realmente aplicar um corte nos títulos gregos detidos pela instituição de Francoforte. Esta pergunta premente de um dirigente do BCE mostra que a direcção da instituição receava fortemente que a Grécia reduzisse o valor dos títulos gregos que ela detinha. Era perfeitamente possível e Varoufakis tinha falado disso por diversas vezes antes de ser ministro. Os títulos gregos detidos pelo BCE continuavam sob jurisdição grega, pois datavam de 2010-2011. O BCE tinha-os comprado por cerca de 70 % do seu valor facial e fazia-se reembolsar a 100 %, além de aplicar taxas de juro abusivas. Alguns títulos equivalentes detidos nomeadamente pelos fundos de pensão públicos gregos tinham sofrido um corte de 53 % em março de 2012, mas o BCE recusara aplicar essa redução. O Governo grego estaria por conseguinte no direito moral – e no seu direito puro e simples – se tivesse aplicado o corte. Como veremos adiante, o Governo grego nunca passaria à acção nesse dossier, embora devesse tê-lo feito e pudesse ter vencido.

Durante a reunião entre Poul Thomsen e Varoufakis, o dirigente do FMI para a Europa explicou que era favorável à anulação da dívida da Grécia aos 14 Estados da zona euro, que ascendia a 53 mil milhões de euros. Quando Varoufakis apresentou o seu projecto de troca de dívidas sem anulação, Thomsen declarou: «Mas isso não basta. É preciso anular imediatamente uma parte da vossa dívida. Nada de trocas, nada de prazos limite. Retirem 53 mil milhões e apaguem-nos» [55]. É preciso sublinhar que por diversas vezes o FMI fez declarações que visavam ludibriar o Governo grego e a opinião pública. Dizer a Varoufakis que era preciso anular 53 mil milhões de dívidas bilaterais não obrigava o próprio FMI a conceder ele próprio uma redução. Tratava-se duma manobra de diversão, que foi utilizada por diversas vezes. De todas as formas, o FMI, independentemente das suas declarações, sempre exigiu à Grécia a continuação de reformas neoliberais brutais.

Em Londres, perante uma plateia de banqueiros e de responsáveis de fundos de investimento, Varoufakis explicou que os credores privados nada tinham a temer. Retomou a tese da falência do Estado grego em 2010 (o que é falso, conforme demonstrei noutro artigo), que agrada muito aos meios financeiros, pois permite-lhes concentrar as atenções na crise das finanças públicas. Explicou à City of London: «é verdade que o nosso governo estava dividido. Uns eram a favor do Grexit e não queriam negociar com a UE nem com o FMI, convencidos de que não haveria problema. Mas havia outros, nós, à volta do primeiro-ministro, cujo objectivo era alcançar uma solução negociada dentro da zona euro. Mas atenção, como nota positiva digo-vos que esta divisão não afecta as negociações que serão levadas a cabo sob a minha tutela. Os nossos colegas pró-Grexit não nos barrarão o caminho, serão pacientes, pois nós estamos determinados a provar-lhes que é possível um acordo viável. A partir do momento em que os credores oficiais da Grécia estiverem prontos a assinar um acordo vantajoso para ambas as partes, o mundo da finança nada tem a temer dos meus camaradas da Plataforma de Esquerda que governam ao meu lado» [56]. Por diversas vezes Varoufakis passou a mensagem de que a maioria do Governo adoptava uma posição razoável, que devia ser apoiada, pois permitia neutralizar, tanto dentro do Governo como no Syriza, o que ele considerava ser uma extrema esquerda irresponsável. Varoufakis tinha a certeza de ter convencido o seu público: «Como eu fiz notar aos financeiros da City […], a gravidade da crise do euro media-se por este paradoxo: era um governo saído da esquerda radical que propunha soluções liberais clássicas para resolver a crise» [57].

Na tarde de 2 de fevereiro, Varoufakis jantou com dois dos seus mais importantes apoiantes internacionais: o conservador Lord Lamont e o ex-especialista da terapia do choque, Jeffrey Sachs. «Quando chegámos ao café e digestivos, disse para comigo que finalmente tinha conseguido transmitir a mensagem. Financeiros de Londres, políticos Tory, jornalistas influentes, antigos membros do FMI, todos pareciam ter entendido o meu ponto de vista.» [58] Congratulou-se por ter conseguido sossegar os mercados, pois no dia seguinte à sua viagem a Londres: «Não só a Bolsa tinha subido 11,2 %, mas também as acções dos bancos tinham aumentado mais de 20 %.» [59]

Aquando da sua passagem por Roma, onde se encontrou com o ministro das Finanças italiano, este disse-lhe que tinha conseguido amansar o Governo alemão, nomeadamente Schaüble, fazendo aprovar uma reforma do código do trabalho, apesar dos protestos sociais. «Por outras palavras, diminuir os direitos dos assalariados e permitir às empresas despedir uns quantos com pouca ou nenhuma indemnização, e contratar outros por salários mais baixos que os subsídios sociais. No dia em que Pier Carlo Padoan tinha conseguido fazer aprovar a legislação no Parlamento, com pesados custos para o governo de Renzi, o ministro alemão tornou-se bastante conciliador para com ele.

– Porque é que não tenta o mesmo tipo de táctica? – disse-me ele. 
– Vou pensar nisso. Agradeço-lhe a dica.» [60]

A estratégia adoptada por Tsipras e Varoufakis acabará por seguir nesse sentido. A declaração do ministro «socialista» italiano continha uma profunda verdade. A lógica seguida pelos dirigentes europeus consiste efectivamente em infligir um profundo recuo nos direitos dos trabalhadores e nos salários, de forma a que os produtos europeus sejam mais competitivos no mercado mundial, em relação à China e aos outros grandes exportadores de produtos industriais e de serviços. O destino infligido à Grécia faz parte dessa estratégia e Varoufakis não quis compreender isto nem opor-se radicalmente. A enorme dívida grega é fundamentalmente uma arma utilizada pelos credores públicos para fazer da Grécia um exemplo do que custa pretender resistir ao rolo compressor e, claro está, para impor aos trabalhadores uma redução brutal dos seus direitos.

 

A partir de 4 de fevereiro de 2015, o BCE saca da artilharia pesada contra o governo grego

A 4 de fevereiro, em Francoforte, Varoufakis foi recebido pelos dirigentes do BCE: Mario Draghi, presidente da instituição, e três membros da direcção – o francês Benoît Cœuré, a alemã Sabine Lautenschläger e o belga Peter Praet. Varoufakis, como sempre, ia acompanhado de Euclide Tsakalotos.

Mario Draghi anuncia que os governadores do banco central da zona euro decidiriam provavelmente nessa tarde cortar o acesso dos bancos gregos à liquidez que o BCE lhes concedia. Como escreveu o próprio Varoufakis: «Tratava-se de uma agressão explícita e perfeitamente calculada.» [61]

Isto merece uma explicação. O Banco Central Europeu fornece liquidez aos bancos da zona euro. Para ter acesso a essa liquidez, os bancos (sejam eles públicos ou privados) têm de depositar títulos financeiros como garantia. Estas garantias são vulgarmente designadas «colaterais». Podem depositar diversos tipos de colaterais: títulos das dívidas públicas, obrigações de empresas privadas, etc. O BCE pode decidir que os bancos de um país membro da zona euro não apresenta garantias suficientes, por estas serem pouco sãs ou porque os títulos propostos em garantia não são de boa qualidade. Nesse caso veda-lhes o acesso ao crédito. Isto provoca um sentimento de insegurança, claro está, e os depositantes, para se protegerem, retiram com maior ou menor rapidez os seus depósitos.

Resta uma bóia de salvação ao país em questão: pedir ao banco central do respectivo país que lhe dê acesso a liquidez de urgência. É a única solução e é dispendiosa: o banco central de um país não está autorizado a conceder liquidez de urgência, a não ser que cobre aos bancos uma taxa de risco. Além disso, o volume de liquidez de urgência é limitado e adaptado semana a semana. Quando a situação se degrada de tal maneira que o país tem de recorrer a liquidez de urgência para se financiar, a direcção do banco central desse país em causa reúne-se todos os fins de semana e decide sobre o volume de liquidez de urgência que poderá conceder na semana seguinte aos bancos, com base numa análise da sua situação. O volume é fixado de acordo com o BCE, que tem o poder de limitar o volume autorizado. Pior ainda: a qualquer instante o Banco Central Europeu pode dar ordem ao banco central do país para estancar a concessão de liquidez de urgência. Neste caso, o Governo é levado a dizer aos bancos que fechem as portas. Foi isto que sucedeu no fim de junho de 2015, quando o BCE, a fim de influenciar o voto dos Gregos no referendo convocado para 5 de julho, decidiu pôr fim à liquidez de urgência. Isto obrigou o Governo grego a decidir no domingo, 28 de junho de 2015, o encerramento dos bancos gregos a partir de segunda-feira, 29 de junho.

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Regressemos a 4 de fevereiro de 2015. A decisão de vedar o acesso dos bancos gregos à liquidez concedida pelo BCE fazia claramente parte duma estratégia muito agressiva e de rápida desestabilização do Governo grego. Esta estratégia já tinha sido despoletada antes mesmo das eleições. De facto, em fins de dezembro de 2014, quando o Governo grego convocou eleições antecipadas para 25 de janeiro de 2015, o director do banco da Grécia, Stournaras, ex-amigo de Varoufakis, toma atitudes que alimentam a inquietação dos depositantes gregos. Stournaras, em coordenação com Samaras, procurou assim influenciar a escolha dos Gregos, a fim de que eles votassem a favor da manutenção dos conservadores da Nova Democracia no Governo após as eleições. A consequência foi o levantamento de depósitos a um ritmo rápido [62]. Samaras fez campanha sob este tema: «se votarem no Syriza, as relações com Bruxelas vão degradar-se, o BCE vai cortar a liquidez, é o caos ao virar da esquina». Apesar desta chantagem, os Gregos puseram o Syriza no Governo mas Stournaras permaneceu como governador do banco central grego – era o plenipotenciário de Draghi na Grécia e dos dirigentes europeus opostos ao Syriza [63]. O governo de Tsipras deveria ter substituído o governador do Banco da Grécia – não o fez e, como veremos adiante, Varoufakis explica que foi ele próprio quem convenceu Tsipras a deixar Stournaras no cargo [64].

O BCE decidiu a 4 de fevereiro de 2015 aumentar imediatamente a pressão sobre o governo de Tsipras, tomando medidas extremas. Não se trata de uma pressão moral ou de chantagem, mas sim de um acto de agressão puro e duro, como sublinha Varoufakis na passagem citada.

De facto os efeitos dessa decisão são imediatos. Primeiro, os bancos gregos tiveram de pagar mais caro o crédito do banco central e por isso a sua saúde financeira degradou-se. Segundo, o financiamento a curto prazo tornou-se mais difícil. De facto, com a liquidez concedida pelo banco central, os bancos gregos compravam títulos de curto prazo (ou seja, títulos a menos de um ano) emitidos pelo Tesouro público grego, o que permitia financiar o orçamento de Estado grego (visto que este, em virtude dos tratados europeus e dos estatutos do BCE, não pode pedir empréstimos directamente ao banco central). Ora, uma vez que o BCE limitou o acesso à liquidez para os bancos gregos, estes passaram a comprar menos títulos e exigiram rendas superiores, aumentando assim os custos dos empréstimos contraídos pelo Estado.

Ao reduzir a liquidez dos bancos gregos e ao tornar mais caro o custo do financiamento, o BCE tornou mais difícil a tarefa do Tesouro grego para se financiar junto dos bancos gregos [65]. Ora o financiamento privado exterior estava cortado ou era extremamente difícil de obter, por um lado, e por outro, como já vimos, o BCE tinha dado a entender que não entregaria os lucros que prometera devolver à Grécia (tratava-se de 2000 milhões de euros que deveriam ter sido entregues em 2015). Também neste caso se tratava duma decisão puramente política. De facto, em 2014, o BCE tinha entregue uma parte dos lucros ao governo de Samaras, apesar de este se ter atrasado na aplicação do 2º Memorando. Ainda o governo de Tsipras não tinha saído das urnas, já os emissários do Eurogrupo e do BCE tinham feito saber que os 2000 milhões prometidos não seriam entregues.

Finalmente, o Banco Central Europeu, alegando que os títulos públicos estavam a perder qualidade por causa do agravamento da situação dos bancos e do Estado, afirmou que a situação estava a deteriorar-se, o que incentivou ainda mais os levantamentos de depósitos bancários e tornou mais difícil o acesso do Estado ao financiamento.

Acrescentemos uma prova suplementar do carácter político agressivo da decisão do BCE de cortar a liquidez normal aos bancos gregos. Conforme se disse mais acima, o BCE pode estimar que os bancos de um país estão em tão mau estado, que é conveniente não lhes emprestar mais dinheiro sob a forma de liquidez e que é preciso pôr em prática um plano de resgate, por exemplo injectando capitais (foi o que aconteceu por via dos vários memorandos). O problema é que, em junho de 2014, todos os bancos gregos se saíram bem no teste a que foram submetidos pela autoridade europeia reguladora e o BCE aprovou-os. É óbvio que o boletim de saúde dos bancos gregos foi voluntariamente sobreavaliado pelo BCE, a fim de socorrer o governo de Samaras, que tinha acabado de perder as eleições europeias para o Syriza. O que é certo é que a saúde dos bancos era má, quer se olhe para 2009, para 2014 ou para 2015. Mas também é muito evidente que o BCE fez de conta que só se apercebeu disso uns dias depois da tomada de posse do governo de Tsipras. Tratou-se obviamente de uma decisão política.

Na manhã de 4 de fevereiro, como respondeu Varoufakis ao anúncio do encerramento provável do acesso à liquidez normal, que ele apresenta no seu livro como um acto de agressão premeditada? Opta por uma grande moderação. É surreal.

Eis o que ele diz: «Respondi que respeitava profundamente o combate que ele levava a cabo para defender o euro, seguindo sempre os estatutos e as regras do seu banco. Era um exercício de equilíbrio delicado, que tinha permitido aos políticos europeus recobrarem e reagirem à crise com clarividência, ultrapassando os constrangimentos do BCE. […] – Infelizmente – disse eu –, os políticos não souberam tirar partido do tempo que lhes ofereceu, não é verdade? […] Conseguiu fazer um trabalho impressionante para preservar ao mesmo tempo a coesão da zona euro e o lugar da Grécia no seio dessa zona, sobretudo no Verão de 2012. Se eu aqui vim hoje, foi para lhe pedir que continue no mesmo sentido ainda mais uns meses, a fim de que nós, os políticos, tenhamos tempo e espaço monetário suficientes para assinarmos um acordo viável entre a Grécia e o Eurogrupo.» [66]

Nem uma palavra sobre a atitude brutal do BCE desde 2010. Nem sobre os lucros escandalosos do BCE após a recompra dos títulos gregos entre 2010 e 2012. Pelo contrário, Varoufakis felicitou a direcção do BCE pelo seu trabalho impressionante. E continuou a propor o seu plano de troca de títulos, que permitia evitar reduzir o valor dos títulos gregos detidos pelo BCE.

Draghi recusa a proposta e não se deixa convencer pelo discurso de Varoufakis. Acusa-o de ter evocado por diversas vezes a possibilidade de um corte unilateral dos títulos gregos detidos pelo BCE (expliquei no início desta parte do que se tratava). Varoufakis responde-lhe: «Não vou impor um corte unilateral nessas obrigações, nem me passou tal ideia pela cabeça – desde que não feche os nossos bancos.» [67]

Como é que Draghi havia de interpretar isto? Logicamente, terá pensado: «acabo de anunciar a Varoufakis que esta tarde vamos vedar o acesso à liquidez normal e ele não me ameaçou com uma reacção. Tentou convencer-me a não tomar esta medida e propôs-me o prolongamento do memorando em curso, a fim de apurar um acordo sobre a troca de dívidas e alterações ao memorando. Respondi-lhe que não queria. E quando lhe digo que é lamentável que ele tenha dito em certas ocasiões que a Grécia poderia aplicar um corte unilateral aos títulos gregos que estão na minha mão (e dos quais a minha instituição tira elevados lucros), responde-me que não lhe passa pela cabeça aplicar tal corte, a não ser que eu feche os bancos gregos. Conclusão: esta tarde podemos tomar a decisão de vedar o acesso dos bancos gregos à liquidez normal, sem corrermos o risco de sofrer uma reacção forte do governo grego. Ao tomar esta decisão, reforço a pressão sobre o governo, começo a asfixiá-lo e aumento as hipóteses de o acossar, para que faça concessões».

Podemos ainda juntar outra crítica à proposta que Varoufakis fez ao BCE: embora ele próprio tenha denunciado por diversas vezes, antes de ser ministro das Finanças, o carácter inaceitável, abusivo e decididamente escandaloso da operação do BCE sobre os títulos gregos comprados no período 2010-2012, ele propõe a Draghi uma operação de «branqueamento». Os títulos antigos (que são pelo menos duvidosos) seriam trocados por novos títulos com o mesmo valor (mas com taxas de juro mais baixas). É preciso ver que ao fazer isto, Varoufakis torna quase impossível a aplicação de um plano B (que incluiria a sua proposta de corte unilateral): em caso de fracasso das negociações, tornar-se-ia muito complicado explicar aos jornalistas e à opinião pública que o Governo grego tinha o direito de aplicar um corte unilateral. De facto, se a Grécia estava disposta a trocar os títulos da sua dívida detidos pelo BCE por títulos do mesmo valor, porque haveria ela de achar justo, logo de seguida, aplicar um corte? É preciso manter a coerência dos argumentos, quando queremos convencer alguém. Era preciso, enquanto governo, dizer alto e bom som a verdade sobre o escândalo que eram os títulos comprados entre 2010 e 2012. Foi esta coerência que faltou no raciocínio de Varoufakis.

Além disso é muito claro que a proposta de Varoufakis não tinha qualquer hipótese de ser levada a bom termo, porque teria constituído um precedente inaceitável para os defensores da austeridade. O problema não é técnico: a proposta de Varoufakis não levantava problemas técnicos. O obstáculo era – e continua a ser – político: os dirigentes europeus são totalmente contra a ideia de permitir aos Estados europeus (sejam eles da zona euro ou não) a mutualização das suas dívidas, porque isso anularia a pressão para prosseguir com as políticas neoliberais. A proposta de Varoufakis ia totalmente a contra-pêlo da lógica dos tratados europeus mais recentes. Não tinha a mínima hipótese de resultar e ele nunca conseguiria erguer uma estratégia de negociação sobre essa quimera.

Era preciso ter avançado com a proposta do programa de Tessalónica: anulação da maior parte da dívida, explicando que ela era ilegítima, odiosa, ilegal e insustentável. Claro está que os dirigentes europeus não podiam aceitar essa exigência, mas o Governo grego podia desenvolver uma campanha internacional de explicação, a fim de obter um vasto apoio da opinião pública. Podia lançar um processo de auditoria e declarar uma moratória até a auditoria ser concluída.

Era fundamental não meter o dedo na engrenagem dos reembolsos. Era necessário recorrer ao direito internacional, que permite a um Estado declarar uma moratória dos pagamentos, por virtude do estado de necessidade em que se encontra. [68] A existência de uma crise humanitária era a prova incontestável do estado de necessidade. Era preciso desenvolver um raciocínio deste tipo: «Vamos lançar uma auditoria (com participação cidadã), pois é preciso analisar como foi que chegámos a este nível de endividamento – a opinião pública nacional e internacional têm de ser esclarecidas. Não presumimos os resultados da auditoria, mas é normal que, durante a sua realização, os pagamentos sejam congelados. Por conseguinte suspendemos os reembolsos durante a realização da auditoria, salvo no que respeita à dívida a curto prazo. Fomos eleitos para substituir o Memorando por um novo plano de reconstrução. Por isso temos de dar tempo à negociação e, enquanto esta decorre, terão de aceitar que nós suspendamos os pagamentos previstos para a dívida a longo prazo.» Se o Governo grego tivesse lançado a auditoria para reforçar a sua posição face à Troika, poderia dizer: «Vou aplicar o parágrafo 9 do artigo 7º do regulamento 472, aprovado pelo Parlamento europeu a 21 de maio de 2013, [69] que obriga os Estados-membros da UE sujeitos a um plano de ajustamento estrutural a realizar uma auditoria integral da sua dívida, a fim de encontrar as razões pelas quais atingiu um nível insustentável de endividamento e a fim de revelar eventuais irregularidades.»

A suspensão do pagamento devia ter sido decretada com carácter de urgência, por exemplo a 12 de fevereiro de 2015. De facto, entre 12 de fevereiro e 30 de junho de 2015, a Grécia tinha de reembolsar 5000 milhões de euros ao FMI (ver quadro).

Prazos dos títulos detidos pelo FMI

12 fevereiro 2015    

747 695 915 €

Empréstimo relativo ao primeiro plano de resgate do FMI à Grécia, em 2010

6 março 2015

299 084 589 €

Empréstimo relativo ao primeiro plano de resgate do FMI à Grécia, em 2010

13 março 2015

336 470 163 €

Empréstimo relativo ao primeiro plano de resgate do FMI à Grécia, em 2010

16 março 2015

560 783 604 €

Empréstimo relativo ao primeiro plano de resgate do FMI à Grécia, em 2010

20 março 2015

336 470 163 €

Empréstimo relativo ao primeiro plano de resgate do FMI à Grécia, em 2010

9 abril 2015

448 626 883 €

Empréstimo relativo ao primeiro plano de resgate do FMI à Grécia, em 2010

12 maio 2015

747 695 915 €

Empréstimo relativo ao primeiro plano de resgate do FMI à Grécia, em 2010

30 junho 2015

1 532 808 519 €

Empréstimo relativo ao primeiro plano de resgate do FMI à Grécia, em 2010

Fonte

Se levarmos em conta as outras entradas a realizar em 2015 pelo FMI, temos de juntar 3000 milhões de euros. Quanto ao BCE, reclamava o reembolso de mais de 6500 milhões de euros, a vencer em julho-agosto de 2015.

Prazos dos títulos detidos pelo BCE e pelo BEI (Banco Europeu de Investimento)

20 julho 2015

2 095 880 000 €

Títulos detidos pelo BCE não incluídos no incumprimento de 2012

3,70 %

20 julho 2015

1 360 500 000 €

Títulos detidos pelo BCE não incluídos no incumprimento de 2012

3,70 %

20 julho 2015

25 000 000 €

Títulos detidos pelo BEI não incluídos no incumprimento de 2012

3,70 %

20 agosto 2015    

3 020 300 000 €

Títulos detidos pelo BCE não incluídos no incumprimento de 2012

6,10 %

20 agosto 2015

168 000 000 €

Títulos detidos pelo BCE não incluídos no incumprimento de 2012

6,10 %

Fonte

Era preciso ter actuado contra estes bancos. Na medida em que o BCE tinha tomado a iniciativa de agudizar a crise bancária grega, era preciso também agir a esse nível e aplicar o programa de Tessalónica, que previa: «Com o Syriza no Governo, o sector público retomará o controlo do Fundo Helénico de Estabilidade Financeira (FHEF – em inglês HFSF) e exercerá todos os seus direitos sobre os bancos recapitalizados. Isto significa que passa a tomar decisões respeitantes à sua administração.» É preciso recordar que o Estado grego, via FHEF, era em 2015 o accionista principal dos quatro principais bancos do país, que representavam mais de 85 % de todo o sector bancário grego. O problema é que, por causa das políticas levadas a cabo pelos governos precedentes, as suas acções não tinham peso real nas decisões dos bancos, pois não conferiam direito de voto. Era preciso que o Parlamento, dando seguimento aos compromissos do Syriza, transformasse as acções ditas preferenciais (que não conferem o direito de voto) detidas pelos poderes públicos em acções ordinárias, que têm direito de voto. A seguir, de maneira perfeitamente normal e legal, o Estado poderia exercer as suas responsabilidades e criar uma solução para a crise bancária.

Por fim, teria sido necessário tomar duas medidas importantes. Primeiro, para fazer face à crise bancária e financeira agudizada pelas declarações de Stournaras a partir de dezembro e a decisão do BCE de 4 de fevereiro, o Governo deveria ter decretado um controlo dos movimentos de capitais, a fim de pôr fim à sua fuga para o estrangeiro. Segundo, deveria ter criado um sistema de pagamento paralelo. Varoufakis afirma que existia uma proposta concreta a esse nível, mas não propôs a sua implementação a seguir à agressão do BCE de 4 de fevereiro.

Voltaremos, mais adiante nesta série, à estratégia alternativa a adoptar em relação à dívida e à crise bancária.

Quanto a Varoufakis, ao fim do dia de 4 de fevereiro, após ter recebido uma chamada telefónica de Mario Draghi a confirmar a suspensão da liquidez normal, publicou um comunicado de imprensa que começa assim: «O BCE procura manter-se fiel às suas regras, encorajando-nos, a nós e aos nossos parceiros, a chegarmos rapidamente a um acordo técnico e político, e ao mesmo tempo protegendo a liquidez dos bancos gregos». [70] Ele próprio caracteriza o seu comunicado da seguinte maneira: «maquilhar um choque como se fosse um não-acontecimento» [71].

Conclusão

Varoufakis lançou-se numa iniciativa que o conduzirá, juntamente com o círculo íntimo de Tsipras, a impor ao resto do governo, ao Syriza e ao povo grego um acordo funesto a 20 de fevereiro de 2015, menos de um mês após a vitória eleitoral. Sem dúvida, os primeiros responsáveis pelo conteúdo devastador desse acordo são os membros da Troika e nós denunciámo-los constantemente, mas Varoufakis-Tsipras poderiam ter recusado assinar um acordo tão funesto. No próximo artigo analisaremos o caminho seguido para a primeira capitulação perante os credores e mostraremos qual o caminho alternativo que deveria ter sido seguido com firmeza.

Agradecimentos: Agradeço a Marie-Laure Coulmin-Koutsaftis, Nathan Legrand e Claude Quémar pela revisão atenta e pelos seus conselhos. Agradeço igualmente a Pierre Gottiniaux pela procura de ilustrações e pela composição dos quadros.

 

Eric Toussaint. Tradução: Rui Viana Pereira

 

Notas

[1] Os três primeiros parágrafos desta parte foram copiados da introdução do artigo precedente: Varoufakis rodeou-se de conselheiros paladinos da ordem dominante.

[2] Y. Varoufakis, Conversations entre adultes. Dans les coulisses secrètes de l’Europe, Les Liens Qui Libèrent, Paris, 2017, cap. 5, p. 143.

[3] Para compreender de que se trata, ler Éric Toussaint, La BCE se comporte comme un fonds vautour à l’égard de la Grèce.

[4] Y. Varoufakis, op. cit., cap. 5, p. 144-145. Ver também a nota 15, na qual Varoufakis fornece mais pormenores.

[5] Tsakalotos era considerado como fazendo parte do centro-esquerda do Syriza, conhecido como Grupo dos 53. Como afirmei na Parte 3 desta série, travei conhecimento com Tsakalotos na primavera de 2014, em Bruxelas, e apercebi-me imediatamente que ele se opunha a qualquer atitude radical quanto à questão da dívida. Era claramente contrário à ideia de um plano B para o caso de a orientação conciliadora do Syriza em relação aos credores não alcançar resultados em termos de redução da dívida. O curso dos acontecimentos mostra claramente que Tsakalotos se tornou cúmplice duma orientação que descambou na capitulação de julho de 2015. A seguir tornou-se pura e simplesmente mais um político dedicado à palicação da ofensiva contra as conquistas sociais.

[6] Stathakis fazia claramente parte da direita do Syriza e era um opositor declarado da posição radical do Syriza quanto à dívida, tal como Varoufakis. Stathakis foi ministro da Economia no primeiro governo do Syriza a partir de 27 de janeiro. Dado o seu apoio à capitulação, deixaram-no continuar a carreira de ministro, com o mesmo cargo, no governo Tsipras II, a partir de 23 de setembro de 2015.
Varoufakis escreve no seu livro: «Nunca tive a menor animosidade a Stathakis. A sua linha foi clara desde o princípio: aceitar tudo o que a Troika mandava» (cap. 14, p. 384).

[7] Y. Varoufakis, op. cit., cap. 5, p. 152-153.

[8] Y. Varoufakis, op. cit., cap. 5, p. 153.

[9] Y. Varoufakis, op. cit., nota 10, cap. 6, p. 511

[10] Ver a parte 1 desta série, Éric Toussaint, “As propostas de Varoufakis que levaram à derrota

[11] Wassily K. era amigo de Varoufakis e ajudava-o no ministério. Foi ele quem mais de um ano antes alertou Varoufakis para o facto de ser preciso ter cautela com Dragasakis, que era amigo dos banqueiros gregos.

[12] Y. Varoufakis, op. cit., cap. 6, p. 184.

[13] Y. Varoufakis, op. cit., cap. 6, p. 182.

[14] Y. Varoufakis, op. cit., cap. 6, p. 181.

[15] Varoufakis relata esta cena da seguinte forma: no fim da conferência de imprensa de 30 de janeiro em Atenas, Jeroen Dijsselbloem «pôs-se de pé de sopetão, para se ir embora, furibundo, mas eu consegui interceptá-lo e estendi-lhe a mão. Surpreendido pelo meu gesto, como era obrigado a passar por mim, apertou-ma desajeitadamente, mas sem se deter. Os fotógrafos adoraram: a sequência mostra um presidente do Eurogrupo grosseiro, que me dá um encontrão antes de me apertar a mão como deve ser.» E prossegue: «Essa conferência ficou para a história. Daí para a frente as ruas de Atenas não voltariam a ser as mesmas, pelo menos para mim. Toda a gente, condutores de táxis, burgueses muito compostos, mulheres de idade, estudantes, polícias, pais de família conservadores, nacionalistas, recalcitrantes à esquerda da esquerda – uma sociedade inteira cujo orgulho e a dignidade tinham sido vilipendiados pelo servilismo do governo anterior – me travavam na rua para me agradecerem aqueles minutos» (Y. Varoufakis, op.cit., cap. 6, p. 179).
Stathis Kouvelakis, que nessa época era membro do comité central do Syriza, descreve assim o fenómeno Varoufakis: «é preciso dizer algumas palavras a propósito do enorme fenómeno Varoufakis. É uma coisa ambígua. Há, bem entendido, muito de política espectáculo nesse fenómeno, o que é um factor de despolitização da situação. Mas há mais: Yanis Varoufakis foi entendido como o portador duma diferença verdadeira, que não pode ser reduzida ao seu look … E este parece ir a par com a afirmação duma verdadeira dissensão política. O fenómeno Varoufakis não teria certamente pegado se, numa das suas primeiras aparições institucionais em presença do presidente do Eurogrupo Jeroen Dijsellbloem, ele não tivesse afirmado em essência: “Vão lixar, não queremos cá a Troika!”. Ele surgiu como uma brecha no sistema, claro está que de forma muito superficial, mas também como expressão de um desejo de sair do quadro político actual que encontrou nele provisoriamente um significante» (Stathis Kouvélakis, «La Grèce, Syriza et l’Europe néolibérale», Entretiens avec Alexis Cukier, La Dispute, Paris, 2015

[16] Y. Varoufakis, op.cit., cap. 4, p. 98.

[17] Comentei estas seis medidas na primeira parte desta série, «As propostas de Varoufakis que levaram à derrota».

[18] Y. Varoufakis, op. cit., cap. 4, p. 112.

[19] As partes a negro foram marcadas por Éric Toussaint.

[20] Varoufakis não era favorável a esta reivindicação e propôs uma troca de dívidas (modificando as datas de vencimento dos reembolsos e reduzindo as taxas de juro) sem reduzir o valor nominal do Istock da dívida.

[21] Aquando da Conferência de Londres, a 27 de fevereiro de 1953, a República Federal da Alemanha obteve, com o consentimento de 21 dos seus credores (entre os quais os EUA, a Grã-Bretanha, a França, a Itália, a Suíça, a Bélgica, a Grécia, etc.), uma redução da sua dívida de 62,6 %. Ver: Eric Toussaint, «A anulação da dívida alemã em 1953 versus o tratamento reservado ao Terceiro Mundo e à Grécia». Apesar da capitulação de Tsipras, não foi concedida qualquer redução da dívida à Grécia.

[22] Isto implicava não contabilizar esse tipo de despesa para calcular o défice – em oposição directa às normas impostas pela Comissão Europeia.

[23] A presidente do Parlamento tinha instituído uma Comissão, mas o Governo não aproveitou os resultados para dar dar a volta às negociações com a Alemanha.

[24] Este compromisso não foi mantido e o Governo aceitou a 20 de fevereiro de 2015 o prolongamento da aplicação do Memorando, até fins de junho de 2015.

[25] As únicas medidas realmente aplicadas durante os seis meses de governo Syriza/Anel foram os 100 desembolsos que permitiram aos contribuintes endividados ao fisco regularizar a sua situação e voltar a ter uma identidade fiscal em ordem, única forma de prosseguirem uma actividade económica. Esta medida foi debilitada após agosto de 2015, por um artifo específico do 3º Memorando.

[26] O acesso gratuito à electricidade por parte das famílias mais pobres continua a não existir na Grécia.

[27] Nada foi feito em 2015, ano que foi ocupado com as «negociações com os credores». Anunciado por Tsipras em dezembro de 2016, o «Plano Paralelo» deu lugar a um subsídio de renda social, instaurado em finais de 2016 atribuído em finais de 2017 a 280 000 famílias, o que corresponde a cerca de 620 000 pessoas.
700 000 pessoas que vivem em situação de extrema pobreza deveriam ter beneficiado em 2018 por todo o país. Este subsídio mensal é condicionado pela situação fiscal e imobiliária de cada agregado; é acompanhada de diversos apoios, como o acesso a refeições escolares, cuidados médicos e medicamentosos gratuitos, estruturas municipais de apoio social (mercearia social, etc.). 35,6% vivia em finais de 2017 abaixo do limiar de pobreza.

[28] O acesso gratuito aos hospitais e farmácias é uma realidade para os gregos, abrangidos ou não pela segurança social, assim como para os estrangeiros e as categorias sociais em dificuldades, desde maio de 2016. Entretanto a degradação do sistema de saúde, sistematizado desde os tempos do 1º Memorando, continua a agravar-se e provoca a penúria de medicamentos, dos tempos de espera e o entupimento dos serviços hospitalares, fecham na província serviços inteiros, falta pessoal e verbas.

[29] Nada foi feito neste domínio.

[30] As reformas foram alteradas pela lei Katrougalos de 2016, a começar pelos complementos de reforma, que foram reduzidos com o objectivo de poupar 1 % do PIB até 2019. Não foi concedido nenhum novo complemento de reforma a partir de janeiro de 2015; ao mesmo tempo esta lei contempla a supressão progressiva do complemento EKAS para as reformas mais baixas até 2020.

[31] Pelo contrário, o 3º Memorando piora a situação fiscal das pequenas e médias empresas, ao exigir que 50 % do IVA (que entretanto subiu para 24 %) sobre o volume de negócios anual expectável seja pago adiantado (em dexembro para o ano seguinte).

[32] «Alívio do fardo» ou anulação das dívidas: medida estabelecida por Sólon, em Atenas, século VI a. C., em proveito das camadas populares sobrecarregadas de dívidas. Ver Daphné Kioussis, «Solon et la crise d’endettement dans la cité athénienne».

[33] Os agricultores em particular ficaram na mira do 3º Memorando assinado a 13/07/2015: aumento das quotizações sociais sobre as reformas (de 7 % a 20 %) e pagamento antecipado de 50 % do IVA calculado sobre a antecipação dos rendimentos do ano seguinte, supressão das isenções de imposto sobre o diesel, supressão de uma série de subsídios.

[34] Note-se que entre 2014 e outubro de 2017, dado o prosseguimento pelo governo de Alexis Tsipras das políticas que ele denunciava em 2014, o montante das dívidas fiscais passou de 68 mil milhões para quase 100 mil milhões de euros. A partir de janeiro de 2017, as penhoras de bens imobiliários pela Autoridade Autónoma das Finanças não poupa nem as residências principais.
O conjunto das dívidas fiscais elevava-se em agosto de 2017 a 95 650 milhões de euros, dos quais 5480 diziam respeito só ao ano de 2017; são 3,8 milhões de contribuintes endividados. Destes, 2,4 milhões de contribuintes, singulares e colectivos, têm dívidas que vão de 1 a 500 euros; apesar disso não são capazes de as pagar; tudo somado, são 340 milhões de dívidas.

[35] O ENFIA não foi suprimido; foi ligeiramente modificado, segundo critérios relacionados com a situação geográfica e a idade do bem, para montantes que variam entre os 400 e os 13 000 euros por ano.

[36] O limiar de taxação foi fixado, após múltiplas negociações, em 8600 para uma pessoa só, 9000 euros anuais para um casal com duas crianças a seu cargo. A situação vai degradar-se, porque, sob a pressão da Troika, o Governo comprometeu-se em junho de 2017 a baixar o limiar para 5700 euros e 6130 euros repsectivamente, a partir de 01/01/2019. Por outro lado, para os trabalhadores independentes, os rendimentos são taxados logo ao primeiro euro.

[37] Tratava-se portanto de anular as dívidas aos bancos por parte de pessoas que vivem abaixo do limiar de pobreza.

[38] Esta promessa não foi mantida. Ver Eric Toussaint, «Les «fonds vautours» prospèrent sur la misère en spéculant sur l’endettement des particuliers» (também em castelhano). Ver Constantin Kaïmakis, «Grèce : Le mouvement « Je ne paie pas »». Não só a promessa não foi cumprida, como a lei que protegia as residências principais contra a venda em hasta pública ao desbarato (poupando custas judiciais onerosas) deixará de vigorar a partir de janeiro de 2019. Pior: para contrariar uma oposição cidadã muito activa, os leilões passaram a ser feitos por via electrónica e os opositores são passíveis de penas de prisão que podem ir de 3 a 4 meses. Finalmente, os empréstimos em incumprimento do Eurobank foram cedidos em julho de 201 um fundo sueco Intrum Justitia AB (Intrum) a 3 % do seu valor, por um montante de 1500 milhões de euros. http://www.iskra.gr/αίσχος-η-eurobank-αντί-των-δανειοληπτών-πουλ/

[39] Varoufakis opôs-se a esta medida, por ser favorável à transferência dos bancos gregos para as mãos dos credores europeus. Por seu lado, o governo de Tsipras não tomou qualquer medida para que o Estado grego pudesse exercer todos os seus direitos sobre os bancos recapitalizados. Ainda por cima deixou o Fundo Helénico de Estabilidade Financeira nas mãos dos aliados dos banqueiros privados e dos dirigentes europeus.

[40] Este banco não foi criado. Varoufakis, que dele fazia uma das suas prioridades, aceitou que no acordo de fevereiro de 2015 com o Eurogrupo não constasse a criação deste banco público de investimento. Y. Varoufakis, Conversations entre adultes. Dans les coulisses secrètes de l’Europe, Les Liens Qui Libèrent, Paris, 2017, cap. 10, p. 285-286

[41] Isto não foi realizado. No acordo do 2º Memorando baixou para 586 euros (510 para os menores de 25 anos); o salário de base foi aumentado a partir de 1/01/2017 para 684 euros, sem distinção de idade, mas não voltou ao nível de 2010-2011, que era de 751 euros.

[42] Os atentados aos direitos do trabalho sucederam-se desde 2015 sob pressão dos credores, por ocasião de cada «avaliação» que precede as prestações dos empréstimos. A lei votada em maio de 2017 facilita os despedimentos colectivos, ao suprimir a autorização administrativa e o direito de veto do ministro do Trabalho para os despedimentoscom base na situação do mercado de trabalho, na situação da empresa, nos interesses da economia nacional. O direito do trabalho degradou-se ainda mais em janeiro de 2018, com a adopção duma lei que reduz objectivamente o direito à greve. Enfim, mesmo a abertura do comércio ao domingo mantém-se, apesar dos protestos repetidos da maioria dos comerciantes e seus empregados.

[43] Este compromisso não foi cumprido.

[44] Não foi realizado, uma vez que o banco de desenvolvimento não foi criado.

[45] Apenas realizado em parte durante os seis primeiros meses do governo Tsipras, apesar dos esforços da presidente do Parlamento. O óbice foram as pressões dos credores e a vontade de Tsipras de ter uma diplomacia secreta e de fazer concessões aos credores.

[46] Isto foi realizado pelo governo Tsipras em junho de 2015, mas pondo à cabeça da instituição pública um personagem duvidoso, como reconhece Varoufakis. Esta nomeação provocou fortes protestos e uma grande desilusão nas fileiras da esquerda.

[47] Não foi cumprido.

[48] Varoufakis explica no seu livro que aceitou a decisão dos credores de não pôr os 11 mil milhões à disposição do Governo grego e de repatriar esse montante para o FEEF, organismo privado criado pela Troika e com sede no Luxemburgo. Considera que é uma batalha perdida tentar recuperar os 11 mil milhões. Ver Varoufakis, Conversations entre adultes. Dans les coulisses secrètes de l’Europe, Les Liens Qui Libèrent, Paris, 2017, cap. 9, p. 274, e nota 14 do cap. 9, p. 514.

[49] Y. Varoufakis, op. cit., cap. 5, p. 148.

[50] Y. Varoufakis, op. cit., cap. 5, p. 175.

[51] Y. Varoufakis, op. cit., cap. 5, p. 186.

[52] A proposta principal de Varoufakis em matéria de reestruturação da dívida inscreve-se, como ele próprio indica, na continuidade do texto intitulado: «Une modeste proposition pour surmonter la crise de l’euro». Esta proposta consiste na mutualização das dívidas públicas da zona euro e depende duma decisão comum a todos os governos da zona, a fim de aliviar as finanças públicas e abandonar as políticas de austeridade.

[53] Y. Varoufakis, op. cit., cap. 5, p. 196.

[54] Y. Varoufakis, op.cit., cap. 5, p. 191-192.

[55] Y. Varoufakis, op. cit., cap. 5, p. 193.

[56] Y. Varoufakis, op. cit., cap. 5, p. 202.

[57] Y. Varoufakis, op. cit., cap. 5, p. 205-206.

[58] Y. Varoufakis, op. cit., cap. 5, p. 204.

[59] Y. Varoufakis, op. cit., cap. 5, p. 206.

[60] Y. Varoufakis, op. cit., cap. 5, p. 207.

[61] Y. Varoufakis, op. cit., cap. 5, p. 208.

[62] Varoufakis escreve: «Desde 15 de dezembro, Stournaras não parou de acentuar o pânico bancário que o primeiro-ministro Samaras tinha provocado: os depositantes levantaram 9300 milhões de euros dos bancos; os levantamentos atingiram a cifra de 1000 milhões por dia. No dia das eleições, 11 mil milhões desapareceram a caminho do estrangeiro ou debaixo dos colchões. Para compensar as perdas, os bancos tiveram de aumentar a sua dependência do BCE em mais 60 mil milhões» (Y. Varoufakis, op. cit., cap. 5, p. 146).

[63] Varoufakis resume assim o sentido das palavras que Stournaras pronunciou em 26 de fevereiro, aquando da assembleia anual de accionistas do Banco Central em Atenas: «O discurso de Stournaras foi exactamente aqule que Samaras teria feito se nos tivesse vencido nas eleições de 25 de janeiro: hino à política do governo precedente, retomando a mentira pré-eleitoral, segundo a qual a Grécia estava a recuperar, totalmente submissa à agenda da Troika, tudo isto coroado com ameaças mal veladas contra nós» (Y. Varoufakis, op. cit., cap. 10, p. 293). Escreve ainda:: «Quanto a Stournaras, era o emissário da Troika a diversos títulos» (p. 294-295).

[64] Já em 2014 Varoufakis tinha afirmado que não seria necessário substituir Stournaras se o Syriza formasse governo. Varoufakis relata um diálogo de junho de 2014, durante uma reunião com Tsipras, Pappas, Dragasakis, Tsakalotos e Stathakis: 
« – Acham que é por acaso que o primeiro-ministro transferiu Stournaras das Finanças para a cabeça do Banco Central? – perguntei eu. – Parece-me evidente que foi uma nomeação estudada, para o caso de vocês ganharem as eleições.
Perante isto Alexis exaltou-se.
– A primeira coisa que vou fazer quando for primeiro-ministro – atirou ele – é exigir a sua demissão. Corro com ele a pontapé, se for preciso. 
Pappas, por seu lado, tinha soluções ainda mais radicais. Quanto a mim, disse-lhes que nos devíamos estar nas tintas para quem governava o Banco Central» (Y. Varoufakis, op. cit., cap. 3, p. 95). 
Uma segunda citação de Varoufakis mostra que ele aconselhou Tsipras a não mandar Stournaras às urtigas:
«Alexis não parava de me dizer que uma das suas prioridades seria retirar-lhe o cargo. O pior, foi que eu o aconselhei a ser prudente e diplomata, porque não podia demitir o governador do Banco Central sem afrontar o Comité Executivo do BCE. Como eu contive o furor de Alexis contra Stournaras, a direcção do Syriza concluiu que eu estava de muito boas relações com o menino querido da Troika em Atenas» (Y. Varoufakis, op. cit., cap. 10, p. 301).

[65] Os bancos privados recebem a liquidez que lhes permite comprar títulos públicos para receberem juros. A seguir depositam esses títulos como colaterais no Banco Central, a fim de obterem liquidez (crédito) que utilizam para comprar mais títulos públicos (na realidade os bancos gregos concedem cada vez menos crédito ao sector privado e a parte dos non performing loans vai aumentando nas suas carteiras de crédito à taxa de 45 % em 2015; de modo que emprestam cada vez mais ao Estado, porque afinal é mais seguro do que emprestar ao sector privado). Se o Banco Central limita o acesso à liquidez, os bancos compram menos títulos e exigem juros mais altos, o que aumenta o custo dos empréstimos para o Estado.

[66] Y. Varoufakis, op. cit., cap. 7, p. 208-209.

[67] Y. Varoufakis, op. cit., cap. 7, p. 210.

[68] A propósito do estado de necessidade inscrito na Convenção de Viena de 1969 sobre o direito dos tratados, ver Cécile Lamarque e Renaud Vivien, «Quelques fondements juridiques pour suspendre le paiement des dettes publiques».

[69] Regulamento (UE) n° 472/2013 do Parlamento europeu e do Conselho, 21/03/2013, «relativo ao reforço da supervisão económica e orçamental dos Estados-Membros da área do euro afetados ou ameaçados por graves dificuldades no que diz respeito à sua estabilidade financeira».

[70] Y. Varoufakis, op. cit., cap. 7, p. 216.

[71] Y. Varoufakis, op. cit., cap. 7, p. 215.

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