Se ainda não leram Comportem-se Como Adultos de Yanis Varoufakis, encomendem o livro. Lê-se como um romance policial, cheio de suspense, reviravoltas, traições … O mais interessante neste livro é o facto de o autor nos dar a sua versão de acontecimentos que influenciaram e continuam a influenciar a situação internacional, em particular a Europa, mas também mais além, pois a decepção provocada pela capitulação do governo de esquerda radical grego marcou profundamente os espíritos.
A série de artigos que consagro ao livro de Varoufakis constitui um guia para os leitores e leitoras de esquerda que não se dão por satisfeitos com a narrativa dominante transmitida pelos grandes meios de comunicação e pelos governos da Troika; e também para os que não se contentam com a versão apresentada pelo ex-ministro das Finanças. Em contraponto ao relato de Varoufakis, indico os acontecimentos que ele silencia e exprimo uma opinião diferente sobre o que devia ter sido feito e sobre o que ele fez. O meu texto não substitui o de Varoufakis, corre em paralelo.
É essencial analisar a política posta em prática por Varoufakis e pelo governo de Tsipras, pois, pela primeira vez no século XXI, foi eleito um governo de esquerda radical na Europa. É da maior importância compreender as falhas e extrair lições da maneira como esse governo defrontou os problemas com que se deparou, se quisermos aproveitar a oportunidade para não repetir o fiasco. Pode vir a acontecer que noutros países da Europa uma maioria de eleitores e eleitoras de esquerda eleja um governo composto por forças de esquerda que prometem romper com a longa noite neoliberal. É certo que não são muitos os países onde isso pode acontecer, mas eles existem. De todas as formas, mesmo que as hipóteses de chegar ao governo sejam muito limitadas, é fundamental apresentar um programa coerente, com medidas que deveriam ser tomadas por um governo tão fiel ao povo como são fiéis ao capital os actuais governantes.
A crítica que faço às escolhas de Varoufakis é precisa e dura, sem concessões. Não é menos verdade que Varoufakis se deu ao trabalho de expressar o que considera ser a verdade, do seu ponto de vista. Ao fazê-lo, correu riscos. Se ele não tivesse escrito este livro, muitos factos importantes teriam permanecido desconhecidos. Em contrapartida, não é de esperar que Tsipras divulgue uma versão séria dos acontecimentos. É-lhe impossível relatar as suas acções e justificá-las. Se um dia lhe der na gana divulgar a sua versão dos acontecimentos, certamente ela será escrita por outrem e repleta de lugares comuns.
É necessário fazer uma distinção entre Tsipras e Varoufakis: um assinou o 3.º Memorando e fê-lo aprovar no Parlamento grego; o outro opôs-se-lhe, abandonou o governo a 6 de Julho e, enquanto deputado, votou contra o Memorando de 15 de Julho de 2015.
A questão central da crítica à política seguida pelo Governo grego em 2015 não consiste principalmente em apontar as responsabilidades individuais de Tsipras ou de Varoufakis. O fundamental é analisar a orientação político-económica aplicada, a fim de determinar as causas do falhanço, ver o que se poderia ter tentado fazer em vez disso e tirar daí conclusões sobre o que um governo de esquerda radical pode fazer num país periférico da zona euro.
Nesta quarta parte da nossa série apresentamos os conselheiros de que se rodeou Varoufakis. Há que reconhecer: desde a etapa de selecção dos seus principais conselheiros, Yanis Varoufakis rodeou-se de pessoas pouco dispostas a realizar as promessas do Syriza (é o menos que podemos dizer) e a pôr em prática políticas alternativas para libertar a Grécia da mão de ferro da Troika.
Os conselheiros de Varoufakis como ministro
No seu livro, Varoufakis descreve a equipa de conselheiros próximos e longínquos. A forma como a equipa foi composta é terrível. A lógica que presidiu às escolhas das pessoas explica em parte o fracasso que se seguiu. Não é este o elemento determinante, mas teve um papel importante.
Para nomear um vice-ministro das Finanças encarregado de supervisionar o Tesouro, cargo da mais alta importância, Varoufakis conta que consultou Alekos Papadopoulos, antigo ministro das Finanças nos anos 1990, proveniente do Pasok. Varoufakis explica que tinha colaborado com Papadopoulos para redigir o programa económico que Georges Papandreou apresentou nas eleições de 2004, ganhas pelos conservadores da Nova Democracia. O Syriza, que se apresentava pela primeira vez a eleições, obteve então 6 deputados, com 3,3 % dos votos. A Nova Democracia de Karamanlis obteve 45,4 % dos votos e o Pasok, conduzido por Papandreou, recolheu 40,5 % dos sufrágios.
Escreve Varoufakis: «Papadopoulos estava na oposição em relação ao Syriza, mas disposto a apoiar-me pessoalmente, e prometeu-me arranjar alguém. […] Nessa mesma noite enviou-me um SMS com o nome de Dimitris Mardas». [1] Varoufakis contacta Mardas directamente e propõe-lhe o cargo de vice-ministro das Finanças.
É preciso dizer que a 17 de Janeiro de 2015, oito dias antes da vitória do Syriza, Mardas tinha publicado um artigo particularmente agressivo contra a deputada do Syriza Rachel Makri, com o título «Rachel Makri versus Kim Jong Un e Amin Dada». O artigo concluía com uma eloquente questão (sublinhada pelo próprio autor): «São estes que vão governar-nos?». Dez dias depois o mesmo Mardas tornava-se, graças a Varoufakis, vice-ministro das Finanças. Varoufakis explica no seu livro que passado um mês como ministro, deu-se conta de que tinha feito uma má escolha. Note-se que Mardas, que apoiou a capitulação em Julho/2015, foi eleito deputado do Syriza nas eleições de Setembro/2015. Papadopoulos também apoiou o 3.º Memorando de Julho/2015. [2]
Varoufakis explica que em segundo lugar tinha de escolher o presidente do Conselho de Economistas. Descobriu que esse cargo tinha sido atribuído em seu nome pelo vice-primeiro-ministro Dragasakis. A escolha de Dragasakis recaiu sobre George Chouliarakis, um economista com cerca de 30 anos que tinha leccionado na Universidade de Manchester, antes de ser transferido para o Banco Central da Grécia. Chouliarakis desempenhou um papel nefasto desde a tomada de posse de Varoufakis, mas no entanto este manteve-o até ao fim. O seu nome aparece por diversas vezes ao longo do relato dos acontecimentos.
A seguir Varoufakis integrou na sua equipa Elena Panaritis, porque ela conhecia bem a linguagem e o modus operandi da Troika. Panaritis, enquanto deputada do Pasok, tinha votado a favor do primeiro Memorando de 2010. Antes disso tinha trabalhado em Washington, sobretudo no Banco Mundial, onde armou, segundo Varoufakis, uma excelente rede de personalidades próximas das instituições sediadas em Washington – nomeadamente o antigo secretário do Tesouro, Larry Summers, a quem ela apresentou Varoufakis. Nos anos 1990, Panaritis trabalhou para o Banco Mundial no Peru, onde colaborou com o regime neoliberal, corrupto e ditatorial de Alberto Fujimori. Conta Varoufakis: «Quando voltei a vê-la antes das eleições, não hesitei em pedir-lhe para se juntar a mim. Nada melhor para combater o diabo do que alguém que já o serviu e se tornou o seu pior inimigo.» [3] Como viria a demonstrar-se, longe de se ter tornado o seu pior inimigo, ela continuou a colaborar com ele.
A sua nomeação como conselheira do ministro das Finanças provocou desde o primeiro instante um reboliço dentro do Syriza e Tsipras tentou convencer Varoufakis a desfazer-se dela; mas depois acomodou-se. Mais tarde, quando Varoufakis, em Maio/2015, nomeou, com o acordo de Tsipras, Panaritis para o cargo de representante da Grécia junto do FMI, levantou-se tal turbulência dentro do Syriza e no Parlamento, que ela teve de renunciar ao cargo em Junho/2015. [4]
Varoufakis também incorporou na sua equipa Glenn Kim, especialista em mercados financeiros e em particular no mercado das dívidas soberanas. Em 2012 este personagem tinha colaborado na reestruturação da dívida grega, nomeadamente como consultor das autoridades alemãs. Quando Varoufakis contactou Glenn Kim, este disse-lhe que estava a trabalhar como consultor para o Governo islandês, onde ajudava a acabar com o controlo de capitais em vigor desde 2008. Isto era muito conveniente para Varoufakis, que, erradamente, não queria de forma alguma recorrer ao controlo dos movimentos de capitais, quando bem poderia ter levado em conta os resultados positivos obtidos na Islândia.
Varoufakis escreve: «Um cínico diria que os peritos do género de Glenn trabalham apenas por dinheiro e a bem da sua carreira pessoal. É possível. Mas estar rodeado de pessoas como ele, que conhecem todos os recantos do poder, é um trunfo precioso.» Note-se que Glenn Kim continuou a aconselhar Tsipras após a capitulação de Julho/2015. [5]
Tudo personalidades com as quais quem pretendesse promover uma solução favorável ao povo grego jamais deveria aliar-se.
Varoufakis congratula-se por ter aceitado os serviços do Banco Lazard e do seu director, o francês Matthieu Pigasse. [6] O banco Lazard tinha colaborado, a troco de dezenas de milhões de euros de comissão, na reestruturação da dívida grega realizada pela Troika em 2012. Segundo Varoufakis, Matthieu Pigasse e Daniel Cohen (professor na escola superior da Rua Ulm, em Paris, e conselheiro de Lazard [7]), que o acompanhava, «conseguiram convencer-me, à custa de gabarem as vantagens da sua cumplicidade, e propondo-me fornecerem os seus serviços pro bono para repor a Grécia de pé. Com trânsfugas desta têmpera ao nosso lado, a nossa força técnica decuplicava, ou mais». [8]
Na equipa internacional de que Varoufakis se fez rodear, há que citar James Galbraith, que lhe deu apoio permanente e se deslocou por diversas vezes a Atenas durante os primeiros 6 meses de 2015. Entre as pessoas que se referem a Varoufakis como tendo-o ajudado de muito perto, James Galbraith é o único digno de confiança, apesar de ter apoiado uma orientação demasiado conciliadora em relação aos credores. James Galbraith é um economista neo-keynesiano dos EUA, próximo do Partido Democrata, conhecedor da política internacional. Em 2009 esteve em contacto estreito com o governo de Georges Papandreou. Gabbraith trabalhou principalmente no plano B, no maior segredo. Ele próprio dá testemunho deste facto no seu livro Crise Grega, Tragédia Europeia (Crise grecque, tragédie européenne [9]). De todos os membros da equipa mencionados por Varoufakis, Galbraith é o único a propósito do qual podemos dizer que poderia realmente acudir com uma ajuda construtiva às autoridades gregas. Defendeu, ao lado de Varoufakis, uma orientação demasiado moderada que não estava à altura dos desafios que era preciso enfrentar e reconhece-o parcialmente. [10] Daniel Munevar, colaborador de Galbraith, deu um apoio activo a Varoufakis na negociação com os credores, a partir de Março/2015, mas Varoufakis não o menciona. [11]
Varoufakis prefere mencionar personalidades estrangeiras que fazem directamente parte do establishment: «Além de Norman [Lamont], entre os meus parceiros de além-mar incluíam-se Jeff Sachs, economista da Universidade de Columbia, Thomas Mayer, do Deutsche Bank, Larry Summers, e Jamie Galbraith» [12] – personalidades com as quais, à excepção de Galbraith, jamais se deveria aliar quem pretendesse realmente promover uma solução favorável ao povo grego. Passo a dar alguns exemplos.
Larry Summers, Jeffrey Sachs e outros: Varoufakis continua a fazer escolhas incompatíveis com o programa do Syriza
O percurso de Lawrence ‘Larry’ Summers inclui uma série de passos que não podem ser encarados de ânimo leve … e que impedem qualquer espécie de colaboração. No entanto Varoufakis solicitou-a sistematicamente e com disso se mostrou muito ufano. Declara na introdução do seu livro: «Estávamos largamente de acordo no essencial, e não é coisa de somenos contar com o apoio de Larry Summers […]». [13]
O passado de Summers merece que sublinhemos algumas etapas importantes.
Em Dezembro/1991, quando era economista chefe do Banco Mundial, Summers escreveu numa nota interna: «Os países subpovoados de África são também muito subpoluídos. A qualidade do ar encontra-se num nível inutilmente elevado em relação a Los Angeles ou ao México. É preciso encorajar uma migração mais intensa das indústrias poluentes para os países menos avançados. Devia existir uma certa dose de poluição nos países onde os salários são mais baixos. Penso que a lógica económica leva necessariamente a que as massas de lixos tóxicos sejam conduzidas para onde os salários são mais baixos. […] A inquietação [a propósito dos agentes tóxicos] será sem dúvida muito mais elevada num país onde as pessoas vivem tempo suficiente para apanharem cancro, do que num país onde a mortalidade infantil é de 200 por 1000 aos 5 anos de idade». [14] E acrescenta, ainda em 1991: «Não há limites para a capacidade de absorção do Planeta, susceptíveis de nos travar num futuro próximo. O risco de um apocalipse devido ao aquecimento climático ou outra causa do género não existe. A ideia de que o mundo corre para o abismo é profundamente falsa. A ideia de que deveríamos impor limites ao crescimento, por causa dos limites naturais, é profundamente errada; é além disso uma ideia cujos custos sociais seriam tremendos, se alguma vez viesse a ser aplicada». [15]
Summers viria a ser vice-secretário do Tesouro de Clinton em 1995 e utilizou todo o seu peso, juntamente com o seu mentor, o secretário de Estado Robert Rubin, para conseguir a eliminação em 1999 da lei que separava os bancos comerciais dos bancos de investimento, que seria substituída por uma lei ditada pelos banqueiros. [16] Em 1998, com Alan Greenspan, director da Reserva Federal, e Robert Rubin, Summers conseguiu convencer a autoridade de controlo das bolsas de matérias-primas, a Commodity Futures Trading Commission (CFTC), a abandonar todas as barreiras que «entravavam» os mercados de derivados de créditos vendidos avulso (Over The Counter – OTC). Abriam-se assim as portas a uma aceleração da desregulamentação bancária e financeira que desembocou na crise de 2007-2008 nos EUA e que teve reflexos na Grécia em 2009-2010.
Acrescentemos que em 2000 Summers exerceu pressão, enquanto secretário de Estado do Tesouro, sobre o presidente do Banco Mundial, James Wolfensohn, para este se desembaraçar de Joseph Stiglitz, seu sucessor no cargo de economista chefe e muito crítico quanto às orientações neoliberais que Summers e Rubin impingem em todos os quadrantes do planeta onde grassam incêndios financeiros. Após a chegada do presidente republicano George W. Bush, Summers prosseguiu na sua carreira, tornando-se presidente da Universidade de Harvard em 2001, mas o seu feito mais notável data de Fevereiro de 2005, quando abala a comunidade universitária após uma discussão no Departamento Nacional de Investigação Económica (NBER). [17] Ao ser inquirido sobre as razões pelas quais havia menos mulheres nos cargos superiores dos meios científicos, Summers afirma que elas são intrinsecamente menos dotadas que os homens para as ciências, pondo de lado explicações plausíveis como a origem social e familiar ou a discriminação. Isto provocou uma grande polémica [18], tanto no interior como no exterior da universidade. Apesar das suas desculpas, os protestos da maioria dos professores e estudantes de Harvard obrigaram-no a demitir-se em 2006.
Em 2009, Summers integrou a equipa de transição de presidente eleito Barak Obama e dirigiu o Conselho Económico Nacional. Em Setembro/2010 Summers abandonou a equipa de Obama e retomou a carreira universitária em Harvard, nunca deixando de desempenhar um papel nos bastidores da política, nomeadamente em Washington. Varoufakis conta que ele pediu a Elena Panaritis para que o pusesse em contacto com Summers em 2015, a fim de conseguir exercer alguma influência sobre Obama, por um lado, e sobre o FMI, por outro.
Varoufakis pediu também a Jeffrey Sachs, especialista nos jogos de influência nos bastidores de Washington, que colaborasse com ele intensamente, no que Sachs assentiu, indo por diversas vezes a Atenas, a Bruxelas, a Londres, a Washington em 2015, a fim de reforçar a equipa de Varoufakis. Jeffrey Sachs, tal como Lawrence Summers, tem ligações ao Partido Democrata e marca presença nos meios de comunicação dominantes por ser favorável a uma solução suave para as crises da dívida, tendo em conta os interesses dos pobres. [19] No entanto, Jeffrey Sachs foi conselheiro de governos neoliberais que aplicaram a política da terapia de choque nos respectivos países: Bolívia (1985), Polónia (1989), Rússia (1991). No seu livro A Doutrina do Choque. A Ascensão do Capitalismo de Desastre [ed. SmartBook, 2009 – N. do T.], Naomi Klein apresentou um libelo implacável contra Jeffrey Sachs e as políticas que ele recomendou em colaboração com o FMI, o Banco Mundial e as classes dominantes locais.
Varoufakis menciona igualmente o apoio indefectível recebido de Lord Norman Lamont, que foi ministro das Finanças da Grã-Bretanha durante o governo de John Major, de 1990 a 1993. «A minha amizade com Lord Lamont of Lerwick, tory e eurocéptico e, para cúmulo, o chanceler que permitiu à Grã-Bretanha escapar ao Sistema Monetário Europeu, quadrava mal com a minha imagem de extrema esquerda.» Varoufakis sublinha a importância da colaboração com Norman Lamont: «Passei 162 dias à cabeça do Ministério das Finanças e Norman sempre me deu o seu apoio inquebrantável, nomeadamente para finalizar a última versão das minhas propostas de reforma da dívida e fiscais a submeter à UE e ao FMI.» [20]
Entre outros peritos estrangeiros a quem Varoufakis recorreu e que participaram na elaboração das propostas que apresentou aos credores: Willem Buiter, que aderiu ao banco Citigroup em 2010 como economista chefe, e Thomas Mayer, ex-economista chefe do Deutsche Bank.
Resulta do relato de Varoufakis que o papel destas personalidades não foi anódino. Referindo-se ao enésimo plano que ele propôs em Maio/2015 aos credores, escreve: «Quando aterrei, o Plano para a Grécia estava finalizado. Jeff Sachs tinha rectificado de forma brilhante a versão que eu lhe tinha enviado dois dias antes. Norman Lamont tinha feito acrescentos importantes; a equipa de Lazard tinha apurado a proposta de troca de dívidas e Larry Summers tinha avalizado o conjunto.» [21]
Spyros Sagias, outro exemplo de um defensor da ordem dominante que fez parte do círculo íntimo de Tsipras e de Varoufakis
Varoufakis explica que estabeleceu uma relação estreita com Spyros Sagias, que veio a ser conselheiro jurídico do primeiro-ministro Tsipras, com o qual travou conhecimento poucos dias antes das eleições. A escolha de Sagias feita por Tsipras diz muito sobre as prioridades de Tsipras no momento de escolher a sua entourage como chefe do Governo. Pretendia ele, tanto quanto possível, rodear-se de pessoas que pudessem estabelecer pontes com o establishment, com o patronato, com os credores. Sagias tinha sido conselheiro do governo socialista de Simitris nos anos 1990, na época em que este lançou um grande programa de privatizações.
Varoufakis descreve Sagias da seguinte maneira: «Sagias não era um homem político mas sim, como costumava apresentar-se ele próprio em tom mais ou menos jocoso, como advogado sistémico. […] Nem um só dos grandes contratos que punham em jogo os interesses privados e o sector público escapou à sua sagacidade: privatizações, vastos projectos imobiliários, fusões, ele dominava tudo. Tinha aconselhado a Cosco, o conglomerado chinês que tinha comprado partes do Pireu e sonhava adquirir a totalidade, privatização à qual o Syriza se opunha ferozmente.» E acrescenta: «No dia em que Pappas me disse que Sagias seria sem dúvida secretário de um gabinete, fiquei agradavelmente surpreendido: teríamos entre nós um ás do direito, um conselheiro que sabia redigir projectos de lei imbatíveis e desenterrar os segredos vergonhosos do antigo regime.» «Agrada-me muito o Sagias, pensei eu. Ele tinha consciência de namoriscar com a oligarquia e não o escondia.» [22] Sagias, como mostra Varoufakis mais adiante no seu livro, apoiou as sucessivas escolhas que levaram à capitulação definitiva.
Acrescente-se que durante o governo de Tsipras I, ele também ajudou a Cosco a adquirir as partes do porto Pireu que a empresa chinesa ainda não possuía. [23] Aliás foi a firma de Sagias quem redigiu o primeiro contrato com a Cosco em 2008. Depois de deixar as funções de secretário do Governo, Sagias tornou-se ainda mais activo no seu gabinete de negócios. [24] Voltou a ser conselheiro oficial de grandes interesses estrangeiros para intermediar novas privatizações. Serviu os interesses do emir do Qatar em 2016, que pretendia adquirir uma ilha grega, a ilha de Oxyas em Zakinthos, inserida numa área protegida. Sagias também foi conselheiro da Cosco em 2016-2017 num litígio com os trabalhadores do porto Pireu, quando foi formulado um plano de reforma antecipada (ou de despedimento disfarçado) de mais de uma centena de trabalhadores perto da idade da reforma.
Na quinta parte abordaremos os acontecimentos de Janeiro-Fevereiro/2015: os dias que antecederam a vitória aguardada do Syriza a 25 de Janeiro, a criação do governo Tsipras, o programa do Syriza, a entrada em funções de Yanis Varoufakis como ministro das Finanças e as negociações que conduziram ao acordo funesto de 20 de Fevereiro de 2015.
Eric Toussaint. Tradução: Rui Viana Pereira
Notas
[1] Y. Varoufakis, Conversations entre adultes. Dans les coulisses secrètes de l’Europe, Les Liens Qui Libèrent, Paris, 2017, cap. 5, p. 127.
O livro foi publicado em Novembro/2017 pela editora Marcador, com o título Comportem-se Como Adultos. A Minha Luta Contra o Establishment na Europa, e deu origem a algum debate público, nomeadamente em Lisboa, na livraria Tigre de Papel, 6/Janeiro/2018.
[2] Ver Vice, «The Former Finance Minister Who Tried to Warn Greece About the Crisis», publicado a 15 de Julho de 2015, consultado a 12 de Novembro de 2017.
[3] Y. Varoufakis, op.cit., cap. 5, p. 129.
[4] Adea Guillot, «Grèce : l’ex-députée socialiste Elena Panaritis renonce au FMI», publicado a 1/06/2015, Le Monde.
[5] Enquanto esteve sob a alçada de Varoufakis ele não carregou muito na conta; mas em Agosto/2015 apresentou uma factura de 375 000 euros relativa ao período anterior a Julho/2015. Isto provocou um sururu e alimentou a campanha de descrédito lançada pela imprensa dominante grega contra Varoufakis. GRReporter, «A Korean adviser of Varoufakis claims a fee of €375,000», publicado a 9/08/2017, consultado a 12/11/2017.
[6] O Banco Lazard é um grupo mundial de aconselhamento financeiro e de gestão de activos. Tendo nascido como empresa franco-americana em 1848, o Lazard é actualmente cotado na Bolsa de Nova Iorque e está presente em 43 cidades, em 27 países. O seu dirigente mais conhecido em França é Matthieu Pigasse. Sob a sua direcção o banco aconselhou diversos governos em matéria de dívida ou de gestão de activos (entenda-se: privatizações): o Equador em 2008-2009 no que diz respeito à dívida, a Grécia em 2012 e em 2015, a Venezuela em 2012-2013. M. Pigasse possui interesses directos no jornal Le Monde, no Huffington Post e na revista Les Inrockuptibles. Em finais de 2017, Matthieu Pigasse e o Banco Lazard alinharam com o regime corrupto e repressivo do presidente congolês Denis Sassou-Nguesso para o ajudar nas suas relações com os credores.
[7] Especialista em dívida soberana e consultor no banco Lazard, com o qual aconselhou o primeiro-ministro grego Georges Papandreou e o presidente equatoriano Rafael Correa para a renegociação da dívida dos respectivos países. Participou, com o Banco Mundial, na «iniciativa para a redução da dívida dos países pobres muito endividados» (iniciativa PPTE). É editorialista do jornal Le Monde. Daniel Cohen foi também conselheiro de François Fillon, primeiro-ministro de Nicolas Sarkozy de 2010 a 2012. A seguir apoiou François Hollande, presidente de 2012 a 2017.
[8] Y. Varoufakis, op.cit., cap. 5, p. 131.
[9] James K. Galbraith, Crise grecque, tragédie européenne, ed. Du Seuil, Paris, 2016.
[10] Ver o artigo de Martine Orange, «L’économiste James Galbraith raconte les coulisses du plan B grec».
[11] Daniel Munevar é um economista pós-keynesiano originário de Bogotá, na Colômbia. De Março a Julho/2015 trabalhou como assistente de Varoufakis, quando este era ministro das Finanças; aconselhou-o em matéria de política orçamental e sustentabilidade da dívida. Antes disso foi conselheiro no Ministério das Finanças da Colômbia. Em 2009-2010 foi funcionário do CADTM na Bélgica; depois de regressar à América Latina, coordenou a rede do CADTM na América Latina de 2011 a 2014. É uma das figuras marcantes no estudo da dívida pública na América Latina. Publicou numerosos artigos e estudos. Participou com Éric Toussaint, Pierre Gottiniaux e Antonio Sanabria na redacção de Os Números da Dívida 2015. Trabalha desde 2017 em Genebra, na CNUCED.
[12] Y. Varoufakis, op.cit., cap. 5, p. 133.
[13] Y. Varoufakis, op.cit., p. 17.
[14] Foram publicados excertos pelo The Economist (8/02/1992) e pelo The Financial Times (10/02/1992) com o título «Preservem o Planeta dos Economistas».
[15] Lawrence Summers, por ocasião da assembleia anual do Banco Mundial e do FMI em Bangkok em 1991, interveio juntamente com Kirsten Garret, «Background Briefing», Australian Broadcasting Company, segundo programa.
[16] A lei aprovada sob a tutela de Robert Rubin e Lawrence Summers é conhecida como lei Gramm-Leach-Bliley Act Financial Services Modernization Act de 1999. Esta lei foi aprovada pelo Congresso, dominado por uma maioria republicana, e promulgada pela administração Clinton a 12/11/1999. Permitiu aos bancos de investimento e aos bancos comerciais [aqueles onde o cidadão comum deposita as suas poupanças e o seu salário; também concedem crédito de pequena e média dimensão, a curto e médio prazo – N. do T.] fundirem-se, dando origem a bancos de serviços universais, que tanto prestam serviços típicos dos bancos comerciais como dos bancos de investimento e dos seguros. A votação desta lei resultou de um lobbying intenso dos bancos, para permitir a fusão do Citibank com a companhia de seguros Travelers Group, a fim de formar o conglomerado Citigroup, um dos mais poderosos grupos de serviços financeiros do mundo. A aprovação da nova legislação implicava a revogação da lei Glass Steagall Act, ou Banking Act, em vigor desde 1933, que entre outras coisas estabeleceu incompatibilidades entre os bancos comerciais e os bancos de investimento, o que permitiu evitar grandes crises bancárias nos EUA até 2007-2008.
[17] Financial Times, 26-27/02/2005.
[18] A polémica foi igualmente alimentada pela desaprovação do ataque lançado por Summers contra Cornel West, um universitário negro e progressista, professor de Religião e de Estudos Afro-Americanos na Universidade de Princeton. Summers, que é um notório pró-sionista, denunciou West como anti-semita, por este apoiar a acção dos estudantes que exigiam um boicote a Israel enquanto o governo israelita não respeitasse os direitos dos Palestinianos. Ver Financial Times, 26-27/02/2005. Cornel West, que apoiou Obama com entusiasmo, viu com espanto este presidente rodear-se de Summers e Rubin. Ver http://www.democracynow.org/2008/11/19/cornel_west_on_the_election_of
[19] Sachs publicou em 2005 um livro intitulado O Fim da Pobreza (The End of Poverty: How We Can Make it Happen in Our Lifetime), que foi muito bem acolhido pelo establishment. Em 2007-2008 o CADTM participou na realização e na difusão do documentário filmado La fin de la pauvreté? (O Fim da Pobreza?), que apresenta uma demonstração oposta à de Sachs. Este filme do cineasta Philippe Diaz foi seleccionado no Festival de Cannes de 2008 para a Semana da Crítica (contém entrevistas a Joseph Stiglitz, Susan George, Amartya Sen, Éric Toussaint, John Perkins). Sachs voltou a publicar um livro mainstream em 2015 sobre o desenvolvimento sustentável. Eis um exemplo dos comentários promocionais que podemos encontrar na imprensa: «O conselheiro especial do secretário-geral da ONU, o economista Jeffrey Sachs, é uma das personalidades mais influentes em matéria de desenvolvimento sustentável. Inspirador dos 8 objectivos do milénio para o desenvolvimento (OMD) que foram inscritos de 2000 a 2015, Sachs sabe brilhar e fazer-se ouvir em todos os meios.»
[20] Y. Varoufakis, op.cit., cap. 5, p. 132.
[21] Y. Varoufakis, op.cit., cap. 15, p. 398
[22] Adéa Guillot e Cécile Ducourtieux do jornal Le Monde, escreveram a propósito de Sagias: «Durante muito tempo próximo do Pasok, participou em numerosas negociações de contratos públicos e aconselha regularmente os investidores estrangeiros que pretendem implantar-se na Grécia».
[23] Mais à frente voltarei ao papel desempenhado pelo próprio Varoufakis na privatização do porto Pireu e suas relações com a Cosco.
[24] Ver o sítio oficial da firma de Sagias.