Era uma sexta-feira de primavera. No dia 24 de maio, a República da Irlanda foi às urnas em um referendo para decidir se revogava ou não sua legislação que criminalizava o aborto. O dispositivo legal em questão estava em vigor desde os anos 80 e fazia do país, de forte tradição católica, um dos mais atrasados da Europa na questão dos direitos da Mulher.
Estimativas das mais variadas apontam que centenas de milhares de mulheres viajaram nas últimas duas décadas para a vizinha Grã Bretanha, onde o aborto é permitido, para interromper a gravidez. Só em 2016, mais de 3 mil mulheres declaradamente residentes na Irlanda receberam atendimentos relativos a aborto no país, segundo o NHS (Sistema de Saúde britânico).
E um número ainda maior, por falta de condições, sofreu na carne as consequências da legislação atrasada do país. Um dos símbolos da campanha do SIM (pela revogação da proibição) foi o caso de Savita Halappanavar, uma dentista de 31 anos que morreu em 2012 na cidade de Galway. Seu falecimento foi resultado de complicações de uma gravidez que não pôde ser interrompida por motivos legais, apesar de todo o risco conhecido pelos médicos. Existe até uma campanha para que a nova Lei, que deve entrar em vigor até o final do ano, receba o nome de “Savita” em sua homenagem.
A ofensiva da extrema-direita
Desde o início dos anos 2000, já havia uma pressão social crescente pela modernização desta legislação, e de outros atrasos impostos pela forte influência da Igreja Católica no país. Em 2015, um referendo já havia aprovado o reconhecimento de casamento entre pessoas do mesmo sexo. Porém, ainda mais desta vez, a pergunta impressa na cédula não foi a única questão verdadeiramente em disputa no referendo irlandês.
O país é governado por uma coalizão parlamentar de maioria neo-liberal. É um governo clássico neo-liberal: reacionário, que aplica os planos de austeridade e ataca os trabalhadores e movimento sociais mas não abraça abertamente a ideologia rascista e semi-fascista da “nova ultra-direita”. O próprio Taoiseach [1], Leo Varadkar, apoiou o SIM neste Referendo e declarou ser gay em uma entrevista, durante o referendo de 2015. Obviamente, o conjunto das forças de esquerda e movimentos sociais estiveram na linha de frente da campanha pelo SIM sem que isso significasse qualquer apoio ao governo de Varakdar, pelo contrário, combinaram essa luta com a resistência às políticas de seu governo.
Porém, nos dois meses que antecederam o pleito, o NÃO apresentou um aumento significativo, em volume de campanha e nas pesquisas eleitorais, colocando em dúvida qual seria o resultado do processo. Emer Toibin, uma das lideranças da campanha do NÃO disse ao jornal britânico The Guardian que “quando olhamos para as campanhas do Brexit e de Trump, percebemos que a mídia já não consegue mais ganhar todas” [2]. Na verdade, houve um investimento considerável em mídias eletrônicas, que teria sido bancado maioritariamente por setores da “nova direita” internacional [3], além de segmentos minoritários da burguesia irlandesa. Foi contratada a empresa norte-americana PSM (Political Social Media), que atuou nas campanhas do Brexit e de Trump. Também foi contratado pelo NÃO o ex-sócio da Cambridge Analytica [4] e diretor técnico (CTO) da campanha do Brexit, Thomas Borwick. A campanha do NÃO ganhou força, com bastante impulso nas redes sociais e uma abordagem baseada em fake news e preconceitos, e as pesquisas passaram a apontar quase um “empate técnico”.
Um Youthquake contra o “Não” e independente do “Sim” oficial
Felizmente, essa movimentação foi percebida – e respondida, em tempo hábil. Um youthquake [5] – trocadilho em inglês com os termos “juventude” e “terremoto” que significa grandes mudanças políticas e culturais vindas da juventude – se deu de forma independente da campanha oficial do SIM. Estudantes irlandeses no exterior fizeram campanhas financeiras para viajar ao país para votar. Na Inglaterra, várias universidades liberaram os estudantes irlandeses dos exames naquele período e ajudaram a organizar as campanhas financeiras, entre elas a Universidade de Oxford. O volume de campanha nas ruas aumentou, denunciando não apenas a reacionária campanha do NÃO como as limitações da campanha oficial do SIM e do governo. A força deste movimento atravessou os limites anteriores da polarização, levando o SIM a ganhar em quase todos os distritos (perdeu apenas em 01 dos 42 distritos, e por um pequena margem). Estima-se que tenha ganho em todas as faixas etárias, com exceção de maiores de 65 anos. Em uma votação com altíssimo comparecimento, cerca de dois terços do eleitorado (66.5%) votou pelo SIM.
Irlanda do Norte: A bola da vez
Diferente do restante do Reino Unido (Grã Bretanha) onde o aborto é legalizado e fornecido pelo NHS desde 1967, o aborto ainda é considerado ilegal na Irlanda do Norte. Como era de se esperar, o resultado do referendo na República da Irlanda teve um impacto imediato sobre seu vizinho terrestre. Recentemente, pressionado pela luta das Mulheres nos dois lados do Mar da Irlanda, o governo Theresa May já havia aprovado uma lei onde o NHS custeia o serviço para que as mulheres da Irlanda do Norte o façam na Inglaterra – mas o momento é de avançar.
Um elemento complicador é que o Partido Conservador depende do ultra-reacionário DUP, da Irlanda do Norte, para assegurar a maioria parlamentar que permite que Theresa May seja a Primeira-ministra. E o DUP já avisou, minutos após a divulgação dos resultados no sul, que tal mudança do lado norte “não estava em cogitação”. Enfim, mais um elemento de instabilidade em uma região já conturbada, potencializada pelas incertezas do Brexit e que sustenta um governo cada vez mais frágil. Esse quadro contribui para a insustentabilidade do governo May e a possibilidade da antecipação de novas eleições – o que coloca na ordem do dia a perspectiva de um governo Jeremy Corbyn. Mas isso é assunto para outros artigos…
Marcio Drumond
[1] Primeiro Ministro da Irlanda
[3] Como tal doações são ilegais pela legislação eleitoral irlandesa, não existem registros, mas sobram denúncias, desses aportes.
[4] Empresa britânica envolvida em um escândalo de manipulação de dados individuais em redes sociais, intervindo em eleições e favorecendo campanhas políticas de extrema-direita em vários países.
[5] Youthquake foi considerada a palavra do ano (2017) pelo Dicionário de Oxford – https://en.wikipedia.org/wiki/Youthquake