Concentrando-se apenas na política dos EUA na Síria não se consegue captar a dinâmica de uma contra-revolução contra uma revolta popular, explicam Shireen Akram-Boshar e Emma Wilde Botta
Um artigo no Jacobin, por Greg Shupak, intitulado “U.S. Out of Syria”, fornece uma análise do papel do governo dos EUA na Síria que é, na melhor das hipóteses, enganoso e, na pior das hipóteses, uma compilação de teorias da conspiração perigosas.
O artigo de Shupak começa por lançar dúvidas sobre a ideia de que o regime do ditador sírio Bashar al-Assad usou armas químicas na guerra arrasadora, antes de se voltar para um enfoque exclusivo sobre o papel dos EUA no conflito.
Ao fazer isso, Shupak torna invisíveis os crimes do regime de Assad, que é responsável pela grande maioria da carnificina na Síria e que atacou indiscriminadamente civis com todo tipo de armamentos bárbaros, incluindo, mas não se limitando, a armas químicas.
Com os seus argumentos, Shupak se junta a uma secção da esquerda que pede desculpas pelo ditador sírio Bashar al-Assad e as intervenções russas e iranianas que o apoiaram. Ao assumir essa posição, eles se aliam a forças que trabalharam para esmagar a revolução síria e a Primavera Árabe.
Esta é uma posição desastrosa que se insere na lógica da “guerra ao terror”, desvaloriza a acção do povo sírio e estabelece um perigoso precedente para futuras revoltas.
Como socialistas revolucionários, reconhecemos que a intervenção militar dos EUA em qualquer lugar é contra os interesses de todos os trabalhadores. Concordamos que a intervenção dos EUA na Síria e em outros lugares deve ser combatida inequivocamente. Também concordamos com a afirmação de Shupak de que “não existe um papel positivo que a América e seus aliados possam desempenhar por meio da intervenção” e que “devemos impedir que os nossos governos impinjam mais danos ao exterior”.
De fato, precisamos reconstruir um movimento anti-guerra a partir da base para que isso aconteça. Mas argumentos como os de Shupak, fornecem cobertura ao regime ditatorial culpado de crimes de guerra, tornando aquele projeto mais difícil.
A esquerda está dividida sobre a questão da Síria desde o início da revolta, há sete anos, quando milhões de sírios comuns, inspirados pela Primavera Árabe, na Tunísia e no Egito, se levantaram para exigir liberdade e igualdade em Março de 2011.
Pela primeira vez em gerações, sírios de todas as facções reuniram-se para participar da revolta inicial, incluindo curdos e palestinianos, rompendo uma cultura de silêncio e medo mantida sob uma ditadura implacável.
A revolução síria, como as várias revoltas regionais, demonstrou solidariedade com as massas de trabalhadores árabes e com os palestinianos contra o regime colonial de Israel. Alguns da esquerda caracterizam, erradamente, a revolta como tendo sido liderada por militantes islâmicos com apoio estrangeiro. Na realidade, foi uma expressão genuína de indignação popular.
O levante da Síria foi um dos mais avançados da Primavera Árabe. Estudantes e trabalhadores estabeleceram Comités de Coordenação Local que permitiram criar redes de activistas em todo o país, jornais e media gratuitos onde anteriormente existia somente a média do regime, e protestos em todo o país organizados sob slogans anti-intervenção, anti-sectarismo e promovendo a não-violência.
Nos primeiros dois anos, grandes sectores do país foram libertados do regime, onde as pessoas elegeram os seus próprios conselhos locais e passaram a administrar os seus assuntos, desde a educação e dos media ao reassentamento de sírios internamente deslocados.
O regime de Assad respondeu com uma guerra total.
Alvejou manifestantes pacíficos, sitiou cidades e iniciou campanhas de detenções em massa e tortura. Na infame prisão de Saydnaya, mais de 13.000 sírios, predominantemente activistas não-violentos detidos nos primeiros dias da revolta, foram enforcados.
O regime alimentou as tensões sectárias a fim de colocar sectores da população uns contra os outros e reprimir o amplo apoio à revolta. Fundamentalistas islâmicos foram libertados propositadamente das prisões do regime para minar a revolta amplamente secular.
Ao facilitar a criação de brigadas jihadistas com libertações seletivas de prisioneiros, o regime criou os terroristas que afirmava estar a combater – e depois usou a lógica da “guerra ao terror” para justificar o massacre de qualquer oposição.
Assad então lançou ataques em bases sectárias. Ele cortejou cinicamente os curdos no norte da Síria, em grande parte retirando as suas forças das cidades de maioria curda e concentrando o seu poder de fogo noutros lugares, num esforço para dividir os árabes dos curdos.
Enquanto o povo sírio gritava: “O povo sírio é um só”, o regime declarou “Assad ou nós queimamos o país”. E queimou o país.
Em 2012, Assad começou a bombardear bairros inteiros que se rebelaram. Desde então, o regime lançou quase 70 mil bombas de barril – grandes contentores cheios de pregos, aço, gasolina e outros objectos, normalmente atirados de helicópteros, com alcance indiscriminado.
Shupak observa que a maioria dos sírios que ainda vivem no país “estão em territórios controlados pelo governo”. Isso é verdade. Deve-se ao facto de o regime de Assad ter bombardeado e ter imposto cercos de fome em quase todas as cidades e vilarejos que se rebelaram desde 2011, despovoando a maioria da Síria que se libertou do controle do regime.
Esta barbárie deslocou metade da população síria, existindo agora 6 milhões de pessoas refugiadas fora das fronteiras da Síria e outros 6 milhões de deslocados internos.
As missões de investigação da ONU concluíram que o regime de Assad usou armas químicas mais de duas dúzias de vezes. Ainda assim, os apologistas do regime sugeriram que o ataque de 7 de Abril nunca aconteceu, que os rebeldes devem ter-se suicidado e que Assad não tinha motivos para encenar o ataque, sendo este o poder dominante que claramente venceu a guerra.
Essa lógica é contestada quando impelidos a explicar por que Israel usa fósforo branco em Gaza, por que os EUA lançaram bombas atómicas em Hiroshima e Nagasaki e por que as potências imperiais mais fortes do mundo dizimaram as regiões contra as quais estão lutando.
Quando a revolta síria começou, os vários setores da esquerda teve que fazer uma escolha – apoiar uma insurreição popular ou um ditador assassino. Alguns sectores da esquerda voltaram a antigos paradigmas do imperialismo norte-americano no Oriente Médio, que sempre foram incompletos e que certamente hoje já não se encaixam no contexto da região. Eles erradamente viram os EUA como o principal agressor na Síria e ignoraram as acções do povo sírio em 2011.
Shupak junta-se ao coro de vozes dos setores da esquerda que afirmam que os EUA intervieram na Síria com o objectivo principal de derrubar o regime, alegando que “o esforço da CIA para derrubar o governo sírio tem sido um dos mais dispendiosos programas de acção secreta da história da agência”.
Um estudo da verdadeira intervenção dos EUA na Síria mostra que os EUA não estavam à procura de uma mudança de regime.
Desde o início da revolta, os EUA têm hesitado em apoiar decisivamente as forças anti-Assad, principalmente negando-lhes armamento antiaéreo que seria necessário para combater a guerra aérea do regime. Uma vez que ficou claro que o Irão apoiaria o regime de Assad e o ISIS invadiu a Síria do Iraque, os EUA abandonaram qualquer pretensão de ser contra Assad e concentraram-se estreitamente no combate ao ISIS.
No final de 2014, três anos desde Março de 2011, os EUA começaram a bombardear as brigadas do ISIS, Jabhat al-Nusra e do Exército Livre da Síria.
As tropas no terreno concentraram-se na região do norte da maioria curda, onde os EUA formaram uma aliança táctica com o YPG, liderado pelos curdos, em grande parte porque lutariam apenas contra os seus inimigos assassinos no ISIS e não contra o regime.
Como os EUA financiaram especificamente as facções rebeldes que combateriam o ISIS, isso empurrou muitas facções que queriam combater o regime em direcção a grupos fundamentalistas como o Jabhat al-Nusra, que tinha financiamento, armas e melhor preparação.
Embora os EUA ainda sejam a potência mundial dominante, estão longe de ser a única ameaça imperialista à soberania da Síria. Ainda que os apologistas do regime afirmem que aqueles que se opõem a Assad devem pedir intervenção estrangeira, os anti-imperialistas de princípio reconhecem que a intervenção estrangeira é a razão pela qual Assad permaneceu no poder, mesmo quando os sírios libertaram as cidades de seu governo.
Em 2013, a intervenção iraniana salvou o regime e, em 2015, a intervenção russa fortaleceu a contra-revolução. O Irão forneceu soldados de infantaria para compensar os sírios que desertaram do exército de Assad e a Rússia forneceu bombas e aviões. Ambos gastaram milhares de milhões para sustentar o regime de Assad.
Sem o poder aéreo russo, Assad não teria conseguido abater Aleppo Oriental, ganhando uma vantagem decisiva ao dizimar grande parte da maior cidade síria.
Os apologistas de Assad, na esquerda, caracterizaram erroneamente o regime como um pilar “socialista, anti-imperialista e anti-sionista” no Oriente Médio.
“Socialista”, apesar do facto de o regime ter integrado a Síria no modelo neoliberal e privatizado o país até que família Assad deter 60% da riqueza do país, enquanto os sírios comuns enfrentavam os mais altos níveis de pobreza e desemprego no Oriente Médio em 2011.
“Anti-imperialista”, apesar de o regime ter enviado tropas para apoiar a invasão do Iraque na primeira Guerra do Golfo e participado da “guerra ao terror”, liderada pelos EUA através do programa de tortura de supostos terroristas em locais negros na Síria.
“Pró-Palestina”, apesar do bombardeio do regime de Assad ao campo de refugiados de Yarmouk, que já foi a capital cultural da diáspora palestiniana na Síria, depois de implementar um cerco à fome que reduziu a população de 150.000 a menos de 4.000.
Apesar de se opor à intervenção dos EUA, não devemos cair na armadilha de pedir desculpas pelas classes dominantes de outros Estados. O princípio da solidariedade internacional deve ser a base da oposição genuína ao imperialismo norte-americano. A questão é simples. De que lado está? Do lado de Assad ou do povo sírio resistindo ao seu regime opressivo?
Como internacionalistas, estamos com os trabalhadores do mundo e contra a classe dominante e os seus governos em todos os países. Exigimos o fim de toda a intervenção das potências imperialistas, incluindo os EUA e a Rússia e exigimos aos EUA que deixem entrar todos e quaisquer refugiados que queiram fugir da carnificina.
Socialist Worker (originalmente publicado em https://socialistworker.org/2018/05/01/the-left-cant-be-silent-about-assads-crimes). Tradução de Rebeca Moore.