Este mês a Polónia voltou às notícias internacionais devido à discussão acerca do aborto. Contudo, importa entender um pouco da política deste país para poder compreender as posições que surgem relativamente aos direitos reprodutivos da mulher e à interrupção voluntária da gravidez.
Uma das primeiras considerações a tecer acerca da Polónia prende-se com a promiscuidade entre o Estado e a Igreja – para além de ser um dos países europeus com mais católicos, existe uma grande influência da religião nos assuntos estatais. Essa relação é visível, por exemplo, nas declarações do líder do partido que está no poder, Jaroslaw Kaczynski, quando afirma que mesmo em casos que se sabe que os bebés vão morrer ou que têm malformações graves eles devem nascer para serem batizados. Verifica-se ainda, nas posições tomadas pelo Ministro da Saúde, um dos 4 mil médicos que assinaram uma declaração de fé, que se comprometeu a não fazer “abortos, eutanásias, prescrever contracepção, inseminação artificial ou inseminação in vitro” pois estes atos “violam os mandamentos básicos do Decálogo e rejeitam o criador”.
Para além de tudo isto, que já é preocupante, o governo polaco é atualmente composto por um partido nacionalista e conservador chamado Lei e Justiça (Pis), que tem levado a cabo uma série de medidas autoritárias no setor da justiça, através do reforço de poderes que o Governo tem sobre o Supremo Tribunal e sobre o Conselho Nacional de Justiça, órgão responsável pela nomeação de juízes. O governo tem-se debruçado também sobre a legislação que limita a entrada de imigrantes no país. A UE já acionou um artigo do Tratado da União Europeia, que poderá afastar temporariamente a Polónia da intervenção no projecto europeu, devido às politicas recentes que violam os princípios fundamentais da UE [1].
Aliás, a extrema-direita vai de vento em popa na Polónia, auxiliada, obviamente, pelo próprio governo. Todos os anos se comemora a independência da Polónia, conquistada depois da 1ª Guerra Mundial, e no ano de 2017, com o apoio do governo, as ruas da capital encheram-se com mais de 100 mil pessoas, entoando “Polónia Pura, Polónia branca”, “Refugiados fora!” e “Orem pelo holocausto islâmico”. Estes atos anuais são reconhecidos na Europa por acolher e juntar movimentos de extrema direita de vários países – no ano passado participaram figuras influentes da Liga da Defesa Inglesa, por exemplo [2].
Posto isto, torna-se mais fácil compreender as propostas políticas em relação ao aborto. A Polónia é um dos países europeus com mais restrições neste campo – o aborto é permitido somente em casos de malformação do feto, quando a gravidez acarreta riscos para a saúde da mãe e em casos de violação ou incesto. Anualmente, 95% dos abortos legais decorrem destes casos, mas como a lei é tão restritiva, muitas mulheres viajam para países onde o aborto é de mais fácil acesso ou então recorrem a medicamentos abortivos comprados através da internet.
Em 2016, a Polónia parasilou com grandes mobilizações de massas, conhecidas como os “black protests” [3], que juntaram mulheres e homens em manifestações de rua contra a proposta de proibição do aborto, que iria criminalizar as mulheres que o fizessem e também os profissionais de saúde que levassem a cabo o procedimento. Os relatos deixam claro que as mobilizações foram também contra o próprio governo, que já vinha tecendo alguns ataques aos direitos reprodutivos, com a restrição do acesso à contracepção de emergência e o fim da comparticipação dos tratamentos de fertilização in vitro.[4] O governo foi obrigado a recuar na sua proposta, mas agora, em 2018, voltou à carga quando foi apresentada uma proposta no parlamento que visava liberalizar o aborto, possibilitando a sua realização até às 12 semanas, bem como proporcionar melhor acesso à contracepção de emergência, assistência médica e educação sexual. A resposta do governo e demais forças conservadoras, incluindo a Igreja, foi lançar a campanha “Stop Abortion”, que vai no sentido de restringir ainda mais o acesso ao aborto, atacando as mulheres de forma brutal.
Na verdade, toda esta política reacionária e retrograda da Polónia se vê também nas suas campanhas – a mais recente dirigida aos jovens, promovendo um estilo de vida saudável, com exercício físico, boa alimentação, pouco stress e muitos filhos…para combater a queda da natalidade [5]! Obviamente a proibição do aborto vai no mesmo sentido, de controlar a vida dos jovens e especialmente das mulheres, impondo os ideias de maternidade, dona de casa, fada do lar e eterna cuidadora.
A resposta das polacas, em 2016 (que desplotou também o chamado internacional de greve de mulheres!) e hoje, merece todo o nosso apoio e solidariedade.
Em Portugal o aborto foi legalizado em 1984 em casos de risco à vida da mulher, malformação do feto ou violação e só em 2007, após o referendo, a interrupção voluntária da gravidez foi permitida até à 10ª semana – os estudos apontam que Portugal é o pais europeu com menos abortos por cada 1000 nascimentos vivos, demonstrando que o acesso à IVG foi um grande sucesso. No Estado Espanhol a evolução da legislação sobre a IVG foi semelhante, embora as leis sejam mais permissivas nesse país – contudo, em 2014, o governo encetou, à semelhança da Polónia, uma tentativa de reduzir a acesso ao aborto, que foi derrotado nas ruas. Em imensos países as mulheres enfrentam dificuldades e restrições no acesso ao aborto, sendo comum em muitos lugares os abortos ilegais, que põem em perigo a vida das mulheres.
O que vemos é que o acesso ao aborto legal, seguro e assegurado pelo Estado é uma conquista das mobilizações que sacodem os países, que o devemos aos milhares de mulheres e homens que lutam pelo direito à decisão, mas é também um dos primeiros direitos a ser retirado em alturas de crise. O acesso ao aborto é também uma questão muito próxima das mulheres pobres e trabalhadoras – nós lutamos pela legalização do aborto, mas lutamos também para que seja gratuito, parte do Estado Social, pois não podemos pagar as clínicas privadas nem as viagens a outros países.
Dizemos – sobre os nossos corpos, nós decidimos. Nem o Estado nem a Igreja têm o direito de limitar as nossas escolhas, nem decidir se devemos ou não ser mães. Reivindicamos o direito à escolha! Reivindicamos a nossa liberdade e unimo-nos em solidariedade com as mulheres polacas e todas aquelas que se batem contra as leis retrógradas e reacionárias que limitam as nossas vidas. Sobre as nossas vidas, nós decidimos.
Notas