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Chipre, a verdadeira face do euro

O Chipre, uma pequena ilha com menos de um milhão de habitantes está há pouco mais de uma semana na boca da Europa e do mundo. Não são as praias de temperaturas amenas e água límpida deste país que captaram a atenção global, mas as medidas de guerra económica que a Troika lançou sobre o país.

Na noite de 15 de Março o Eurogrupo – reunião dos ministros das finanças da zona euro – lançou uma verdadeira blitzkrieg (guerra relâmpago) sobre este país. Para avançar com um pacote de “ajuda” de 10 mil milhões de euros ao Chipre, cuja banca se viu duramente afectada pelo processo de negociação da dívida grega, foi exigido uma “taxa sobre os depósitos” no valor de 5,8 mil milhões. Assim, no Sábado, dia 16, de manhã, ao contrário do habitual, os bancos cipriotas não abriram: os balcões estavam encerrados e os levantamentos limitados, para permitir a aplicação de uma “taxa” de 9,9% sobre os depósitos acima de 100 mil euros e 6,7% nos restantes. À data em que escrevemos, mais de dez dias depois, os bancos cipriotas continuam encerrados sem data para abrir.

O ataque ao Chipre mostrou a verdadeira cara da moeda única e ao que está disposta Merkel e seus capangas para a salvar. Sempre com uma desculpa apropriada: se a austeridade nos países até aqui sob intervenção era justificada com a “preguiça dos povos do sul”, neste caso é o facto de um Chipre ser um paraíso fiscal carregado de capital russo de origem duvidosa que desculparia o saque. Porém os maiores offshores europeus, onde pululam os capitais russos, são em Inglaterra, e não se conhece medida semelhante sobre a city Londrina. Os paraísos fiscais são mantidos e incentivados pela banca de todos os países e serviram os desvios colossais de casos como o do BPN pela Europa fora. Na verdade, o Chipre foi a mais recente vítima do processo de colonização do sul da Europa comandado pelo BCE e o FMI, ao serviço da Alemanha e da finança europeia e americana e das suas disputas geopolíticas com a oligarquia russa.

 

O espectro cipriota ensombra a Europa

A decisão por unanimidade tomada pelo Eurogrupo – com o voto favorável de Vítor Gaspar – mostra ao que estão dispostos as potências centrais e os seus lacaios periféricos, onde se inclui o governo PSD/CDS, para salvar a moeda única. O plano da Troika revela-se aqui com toda a crueza, transferir a riqueza dos países sobre intervenção para os credores, a banca, internacionais. Quando não há tempo para cortes salariais e subidas de impostos, a Troika vai directamente aos depósitos. A partir desta fatídica decisão do Eurogrupo passou a pairar sobre as cabeças dos países sobre intervenção o saque compulsivo aos depósitos. Os ministros das finanças europeus dizem que o Chipre é um caso único, como o disseram antes da Grécia.

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A Europa indigna-se e a Troika recua

A medida desta natureza não podia deixar de lançar ondas de choque em grande medida incontroláveis. Por toda a Europa espalhou-se a indignação e o medo, os ministros dos vários países foram chamados a prestar contas, governantes insuspeitos de antipatia para com a austeridade, como Cavaco Silva, mostraram-se consternados e a confiança no sistema bancário ficou abalada, não só entre trabalhadores mas também entre pequenos e médios empresários e investidores. A Rússia, interessada em preservar os seus capitais e a sua posição no Chipre engrossou a voz. A Gazprom – multinacional que controla o gás natural russo – propôs-se a pagar o resgate cipriota e a igreja ortodoxa do país disponibilizou-se para hipotecar o seu património para pagar a dívida.

Apoiado neste movimento, tentando manter-se politicamente à tona de água – o parlamento cipriota fez o inédito: recusou, por unanimidade, a medida da Troika. O governo recusava-se a tocar nos depósitos abaixo de 100 mil euros. A Troika foi obrigada, em menos de 48 horas, a um recuo que, ainda que parcial, é significativo. Apesar da tibieza da posição do parlamento cipriota – que ainda assim aceita a intervenção sobre o país e seus bancos – é uma chapada de luva branca não só em Bruxelas e Berlim, como nos governos de Lisboa, Dublin, Atenas e Madrid. Ficou provado que não é recusa das medidas da Troika que mergulha o país no caos, mas a sua aceitação.

Passados mais de dez dias nem os bancos abriram nem os cipriotas saíram das ruas. E a Troika e o Eurogrupo, que de forma ridícula tentaram sacudir a água do capote, não ficaram menos fragilizados por terem recuado. Tudo indica que os depósitos abaixo de 100 mil euros ficarão, por agora, intocados, e, em compensação, os depósitos acima dos 100 mil euros serão “taxados” em 30%. O euro tremeu e fragilizou-se mas está longe da cair, a moeda única é cada vez mais o marco alemão estendido a toda a zona euro e Merkel lutará, e pagará se necessário, como faz hoje o BCE, para manter o euro.

 

Lições provisórias da tragédia cipriota

Ficou ferido de morte o mito “o euro ou o caos”. Defensores e crentes das virtudes da moeda única, da esquerda à direita, apoiavam-se na ameaça de caos financeiro resultante da saída dos países sob intervenção do euro para defender o pagamento das dívidas ditas soberanas e as, consequentes, medidas de austeridade. A saída do euro, para diversos economistas e políticos, era sinónimo de um cenário semelhante ao vivido na Argentina em 2001: corridas aos bancos com os balcões encerrados, o sistema financeiro em colapso, fugas de capitais e perdas de depósitos. Porém é isso que vive o Chipre hoje, não por querer sair do euro mas por querer manter-se nele. A decisão do parlamento cipriota mostra que a única forma de impor aos credores a vontade dos povos e manter a soberania, é negar as medidas da Troika. Na verdade a posição do parlamento cipriota, é apenas uma amostra demasiado pequena da coragem necessária para enfrentar a Alemanha e os credores, porém foi o suficiente para deixar a léguas os “bons alunos” que estão a afundar Portugal.

Ao Chipre, por ser mais frágil e estar mais exposto, coube-lhe mostrar o futuro reservado aos países periféricos dentro do euro. As medidas de urgência necessárias para resolver a situação Cipriota – apesar de todas as suas especificidades – são semelhantes às que podem impedir que Portugal, Grécia, Espanha ou Itália, se tornem novos protectorados económicos. É necessário rejeitar os planos da Troika e suspender o pagamento da dívida externa, de forma a haver liquidez para pagar salários e criar empregos. É necessário auditar a dívida e julgar e prender os políticos que a fizeram. Estas medidas de resgate dos trabalhadores e dos povos levam necessariamente à saída do euro. Voltar às moedas nacionais, recuperar a soberania e estabelecer relações económicas e comerciais solidárias e justas entre os países do sul é a única saída. Toda e qualquer negociação com os credores só pode ser tida com base neste projecto. Uma negociação que não seja ao serviço dos povos trará sempre austeridade e subordinação.

 

Manuel Afonso

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