O segundo aniversário do início da revolução encontrou novamente dezenas de milhares de manifestantes nas ruas das principais cidades do Egito. Em Suez, Alexandria, Mahalla, Port Said e, principalmente, na emblemática Praça Tahrir, os trabalhadores e o povo egípcio protagonizam concentrações, marchas e duros confrontos com a polícia e o exército.
Exigem do atual governo da Irmandade Muçulmana, presidido por Mohamed Morsi, que cumpra as reivindicações democráticas e económicas ainda não atendidas desde que, depois de 17 dias de intensa luta e ao custo de 850 mártires, derrubaram o ditador Mubarak, em fevereiro de 2011.
Nas ruas e nas praças egípcias, ressoa com força o grito de “pão, liberdade e justiça social” e a icónica palavra de ordem “O povo quer a queda do regime!”. O governo islâmico de Morsi, junto com a cúpula militar, responde a essas mobilizações com uma brutal repressão e um maior endurecimento do regime.
A Câmara Alta do Parlamento aprovou um projeto de lei no dia 28 de janeiro, apresentado pelo próprio Executivo, que autoriza o Exército a “garantir a segurança do país e deter manifestantes”. Desta forma, e com a missão de “proteger as instituições vitais do Estado”, os militares gozam novamente de completa liberdade para reprimir o povo e atuam em conjunto com a polícia, em princípio até as próximas eleições legislativas, programadas para abril.
Mas a juventude e o povo egípcio não se amedrontaram com o fato de os militares saírem às ruas. Ao contrário, as manifestações tornaram-se cada vez mais massivas e radicalizadas. Com a situação fugindo ao seu controle, o presidente egípcio decretou “estado de emergência” nas cidades de Port Said, Ismailia e Suez, onde imperará um toque de recolher das 21h às 6h durante um mês. Nem bem esta decisão foi anunciada, várias organizações e milhares de pessoas declararam que continuariam nas ruas e desafiariam a restrição.
A reação foi imediata, e o chefe do Exército e ministro de Defesa, general Abdel Fattah al Sisi, declarou em comunicado que o país se encontra à beira “do colapso” e que “as tentativas de afetar a estabilidade das instituições do Estado é um assunto perigoso, que ameaça a segurança nacional egípcia”. O Exército mobilizou as suas forças em várias cidades, principalmente na zona do Canal de Suez, uma via de navegação crucial pela qual passam 17.000 barcos por ano e que rende 470 milhões de dólares ao Egito mensalmente.
Desde que esta nova onda de protestos começou, e no fechamento deste artigo, já são quase 60 mortos e centenas de feridos devido aos confrontos com as forças repressivas.
O regime mantém-se mesmo sem Mubarak
O povo egípcio, no contexto do processo revolucionário que se abriu em toda a região, iniciou a sua revolução movido pela fome e pela ausência das liberdades democráticas mais elementares. Milhões saíram às ruas, fartos de décadas de miséria, exploração, entrega das riquezas ao imperialismo e submissão à terrível opressão da ditadura militar de Mubarak.
O processo revolucionário liberou imensas forças sociais que sacudiram todo o país e que se retroalimentam com as lutas dos povos vizinhos. A revolução egípcia, com uma grande participação da juventude empobrecida e uma importante participação da classe trabalhadora organizada, conquistou o seu primeiro e poderoso triunfo ao derrubar o odiado ditador Mubarak.
Entretanto, apesar da poderosa mobilização popular e devido à traição de direções tradicionais com sólidas raízes populares, como a Irmandade Muçulmana, a queda de Mubarak não significou a queda do regime político, que continua assentado na preeminência e nos enormes privilégios económicos da alta cúpula militar.
Os militares continuaram mantendo o controle do poder económico e político. Primeiro, por meio da Junta Militar encabeçada pelo marechal Hussein Tantawi (que dissolveu o Parlamento e a primeira Assembleia Constituinte) e, depois, com o pacto contrarrevolucionário que a Irmandade firmou com o alto comando militar, pelo qual Morsi assumiu a presidência em troca de manter os interesses económicos e políticos do Exército intactos.
Com Morsi na presidência, os militares continuam controlando pelo menos 40% da economia local, pois são proprietários de grandes grupos empresariais e extensões de terra. Além disso, as Forças Armadas do país continuam a receber anualmente mais de 1,4 mil milhões de dólares dos Estados Unidos catalogados de “ajuda militar”, o que as torna a instituição militar que mais recebe recursos financeiros do imperialismo depois de Israel. Em outras palavras, são os Estados Unidos que continuam a pagar os salários dos generais egípcios.
No terreno político, os militares continuam definindo e controlando o seu próprio orçamento sem controlo algum de qualquer outra instituição estatal e mantêm a prerrogativa de nomear o ministro de Defesa no gabinete, que em nenhum caso pode ser um civil.
Além de tudo isso, gozam de uma irritante impunidade, ao ponto de serem praticamente intocáveis. Até agora, nenhum comando militar importante foi condenado pelo massacre de 850 pessoas durante as mobilizações que derrubaram Mubarak, sem mencionar os crimes de lesa humanidade cometidos durante a sua ditadura. Há poucas semanas, por exemplo, um Tribunal de Apelação declarou nula a condenação do ex-ditador à prisão perpétua e determinou que todo o julgamento deve ser refeito.
Este é o regime que, mesmo sem Mubarak, mantém-se e sustenta-se no pacto entre a Irmandade e a mesma cúpula militar de sempre. A essência do regime bonapartista, repressor e submisso ao imperialismo continua intacta, pois o regime foi reformado (por isso a situação é diferente em muitos sentidos em relação aos tempos de Mubarak), mas não destruído, como foi o caso da Líbia.
A permanência da essência do regime configurou-se na Constituição defendida por Morsi e pela Irmandade, redigida pelos islâmicos ao gosto dos generais, que, após outra série de violentos protestos em dezembro de 2012, foi aprovada num plebiscito com a participação de apenas 32,9% dos potenciais eleitores e apesar de ter sido derrotada nos principais centros urbanos, como Alexandria e na própria capital, Cairo.
Isto é o que explica que amplos setores de massas sintam-se traídos em seus anseios de conquistar verdadeiras liberdades democráticas e continuem a lutar pelos mesmos objetivos pelos quais lotaram as praças há dois anos.
Esta situação combina-se com o agravamento da já dramática situação económica que o Egito enfrenta, e que não parece ter solução a curto prazo. No mais importante e populoso país do mundo árabe, 40% da população encontra-se abaixo da linha de pobreza. Em julho de 2012, segundo as cifras do governo, o desemprego chegou a 12,6%. Na juventude, esta taxa supera os 85% entre os jovens com título universitário e ensino médio, segundo dados do Ministério de Recursos Trabalhistas do Egito[1]. Por outro lado, o desemprego afeta muito mais as mulheres e é maior entre os habitantes das zonas urbanas (16,2%) que das rurais (10%). Nesses dois anos, mais de 1.500 empresas foram fechadas e o turismo, importante fonte de divisas para o país, está praticamente paralisado.
O país tem uma dívida externa que representa 90% de seu PIB. No ano passado, Morsi gastou cerca de 10% do PIB somente para pagar juros de empréstimos que foram contraídos por Mubarak. O deficit fiscal (gasta-se mais do que se arrecada) é de 10,4%.
Estas são as contradições que movem a revolução. Por um lado, um regime político opressor que, pela força da revolução, foi obrigado a realizar mudanças, mas que se mantém em sua essência para sustentar o Estado burguês e defender os privilégios de uma minoria parasitária de generais e capitalistas locais, que entregam o país ao imperialismo. Por outro, uma situação económica insuportável para amplos setores das massas exploradas.
Por isso a revolução continua. Mas continua sobre novas bases objetivas e subjetivas. A juventude e o povo trabalhador sabem que são os protagonistas da queda de Mubarak e agora lutam para avançar mais.
A própria dinâmica da situação objetiva e o avanço (em saltos) na consciência de milhões de trabalhadores a partir de sua ação política coletiva fazem com que a mobilização e a revolução desenvolvam-se num processo permanente. Derrubado Mubarak, agora as mobilizações se dirigem diretamente contra o governo da Irmandade Muçulmana em conluio com os generais, o principal partido burguês do país e, até há pouco tempo, uma direção política inquestionável.
A experiência com a Irmandade Muçulmana
É um facto o crescente desgaste político de Morsi e da Irmandade Muçulmana ante a vanguarda de ativistas e setores de massas. Não afirmamos que a Irmandade tenha perdido toda a sua base social e política, mas a dinâmica atual não indica que este partido vá aumentar o seu prestígio, e sim o inverso.
Com cada medida, com cada decreto ou cada repressão aumentam as fissuras na máscara “progressista” da Irmandade. Conforme as mobilizações aumentam e a experiência é mais concreta, mais se revela o verdadeiro rosto da Irmandade, e o seu papel de avalista da manutenção do regime e de instrumento do imperialismo para derrotar a revolução no Egito e em toda a região fica mais nítido aos olhos dos egípcios e dos outros povos árabes.
Em dezembro passado, quando Morsi anunciou o “decretaço” com o qual passava a concentrar quase todos os poderes e forçava o plebiscito para impor uma Constituição feita pelos militares, antioperária, antigreves e baseada em preceitos religiosos, milhares de pessoas saíram às ruas e dezenas deram suas vidas a enfrentar esta medida.
Mais de 40 sedes da Irmandade foram incendiadas em várias cidades pelas massas revoltadas. Milhares ocuparam novamente a Praça Tahrir e transpuseram barreiras de arame protegidas por tanques do Exército para depois rodear o próprio Palácio Presidencial. Quando houve o plebiscito, milhões não foram votar ou votaram contra do texto constitucional de Morsi e dos militares.
Agora é a mesma coisa. Novas sedes foram atacadas pelas massas, e nas praças há cada vez mais cartazes exigindo a renúncia de Morsi, algo impensável há apenas seis meses.
Isso se explica porque a Irmandade, totalmente entregue à tarefa de derrotar a revolução, vê-se obrigada a mostrar de que lado está. Apesar de seus discursos ou de suas medidas assistencialistas para alguns setores da população, o aumento das lutas e do “caos” fazem com que agora a Irmandade tenha que chamar a repressão aberta.
Somente no domingo, dia 27 de janeiro, mais de 90 pessoas foram presas no Cairo acusadas de “vandalismo” e “sabotagem”. No meio do descontrolo, a própria cúpula da Irmandade interpelou Morsi publicamente e exigiu mais repressão. Mohamed Beltagy, um dos líderes mais proeminentes do Partido da Liberdade e Justiça, o braço político da Irmandade, censurou Morsi: “O que está esperando para intervir?”. Para dizer-lhe depois: “É seu dever parar tudo isso através de todos os meios que a Constituição e a lei proporcionam”. E acrescentou: “inclusive a declaração do estado de emergência”. (El País, 27/01/13)
Nem isso nem os bandos armados com paus, tanto da Irmandade como de outros setores ligados aos salafistas (setor cujo programa é a instauração de um Estado teocrático islâmico e que desde os tempos de Mubarak eram usados como força de choque contra as massas mobilizadas), que irrompem para dispersar as manifestações, passam desapercebidos para as amplas massas mobilizadas. Toda a experiência concreta e o desgaste da Irmandade abrem espaço real para construir novas alternativas políticas de direção.
A mobilização deve continuar e unificar-se
Este é o momento em que as mobilizações devem continuar, ampliar-se e unificar-se em torno de um plano de luta nacional. É fundamental avançar na mais ampla coordenação de todas as organizações sindicais, juvenis e populares que enfrentaram Mubarak e que continuam se mobilizando. A luta deve continuar não só pela conquista de liberdades democráticas, contra as medidas repressivas do governo e contra a própria Constituição bonapartista que impera desde dezembro, mas também por medidas concretas contra o desemprego, por aumento de salários e por uma reforma agrária radical.
Neste contexto, também é necessário discutir a caracterização e a política em relação à oposição burguesa ao atual governo de Morsi.
Desde o final de 2012, o setor maioritário da oposição à Irmandade, que se declara “liberal e laico” e toma distância da “era Mubarak”, agrupou-se na chamada Frente de Salvação Nacional. Esta frente política é muito ampla e dirigida por personagens como Mohamed el Baradei e o antigo chanceler de Mubarak e ex-secretário geral da Liga Árabe, Amr Musa. Outras figuras, como Hamdin Sabahi, um nacionalista burguês que foi o terceiro candidato mais votado nas últimas eleições e que tem um peso importante no mundo sindical e social, também cumprem um papel de destaque. A Frente de Salvação Nacional chamou a votar pelo “NÃO” no plebiscito.
É muito importante, na conjuntura da luta contra o governo e o regime bonapartista, que as organizações operárias e juvenis apliquem uma política de ampla unidade de ação contra as medidas de Morsi. Nesse sentido, é correto coordenar atos e mobilizações com todos aqueles que de fato enfrentem o regime, inclusive com esses setores burgueses.
Porém, esta política não pode significar jamais um abandono da independência de classe nem deve gerar qualquer tipo de ilusão de que a oposição burguesa seja uma alternativa de mudança real em relação a Morsi e aos militares. Por seu caráter de classe, a oposição burguesa “laica e democrática” não é e nem poderá ser consequente até o fim na luta contra o regime, muito menos no combate ao imperialismo.
Diante das mobilizações, cada vez mais radicalizadas, o chamado da Frente é principalmente a “dialogar” com o governo, pois teme, tanto quanto Morsi, que as massas ultrapassem as vias do Estado capitalista. Isso fica claro, por exemplo, no recente chamado de El Baradei, que convocou tanto Morsi como os militares para buscarem juntos uma forma de pacificar a situação: “Necessitamos urgentemente uma reunião entre o Presidente, os ministros de Defesa e do Interior, o partido governante, a corrente salafista e a Frente de Salvação Nacional (FSN) para dar passos urgentes a fim de deter a violência e começar um diálogo sério”, pois “nem a FSN nem o Governo querem dar cobertura à violência” (EFE, 30/01).
É claro que, para além das diferenças táticas ou relacionadas à divisão de cargos ou quotas de poder, tanto o setor de Morsi e dos militares como o setor integrado pelos senhores El Baradei ou Musa (cuja principal bandeira é um “governo de unidade nacional”, que na prática significa um novo pacto com a Irmandade e os militares) coincidem na visão estratégica de apaziguar a mobilização popular e derrotar a revolução no Egito.
A revolução é permanente
É por tudo isso que insistimos na necessidade de continuar e aprofundar a mobilização independente da classe operária e dos setores populares. Também é imprescindível ir a fundo no processo, ainda que seja incipiente, de reorganização sindical da classe, que se expressa na fundação ou na renovação de vários sindicatos e inclusive federações, como é o caso da Federação Egípcia de Sindicatos Independentes (EFITU). As organizações sociais e populares devem-se fortalecer e centralizar as suas mobilizações em torno de um plano de luta que contemple as principais reivindicações de todos os setores e que seja definido democraticamente.
Na atual situação, a tarefa imediata que está colocada no Egito é destruir o regime sustentado pelos generais e financiado pelo imperialismo, garantido principalmente pelo governo da Irmandade.
A mobilização deve avançar até destruir completamente o regime. A resolução desta tarefa é fundamental para que a revolução possa avançar, é fundamental para conquistar liberdades democráticas e ampliar assim a organização operária e popular, criando melhores condições para construir uma direção revolucionária – isto é, operária e internacionalista – para o processo.
Por isso, é necessário que todo o movimento operário, juvenil e popular levante as palavras de ordem de: fora o governo de Morsi e dos militares; abaixo a Constituição de Morsi e dos militares; exijamos uma nova Assembleia Constituinte para instaurar amplas e totais liberdades democráticas, para romper todos os acordos com o imperialismo, para expropriar os bens de Mubarak e de todos do antigo regime, e construir um Egito socialista a serviço dos trabalhadores e do povo;
por um aumento imediato e geral dos salários que corresponda ao necessário para os gastos familiares; por um plano económico de emergência e pela redução imediata da jornada de trabalho sem redução de salário, de forma que garanta trabalho para todos; pela expropriação das grandes empresas nacionais e multinacionais e do sistema financeiro!
Desde já, é necessário lutar pela rutura completa com o imperialismo: rutura imediata do Tratado de Camp David e de toda a subordinação financeira e política do Exército ao imperialismo e a Israel; não ao novo endividamento de 4,8 mil milhões de dólares que Morsi e os militares estão a negociar com os banqueiros de Washington; não ao pagamento da dívida externa, para que esses recursos sejam investidos em trabalho, saúde e educação para o povo egípcio; rutura total com o FMI e com todos os organismos imperialistas!
Ao mesmo tempo, a tarefa de destruir o regime deve estar colocada na perspetiva estratégica de instaurar, de forma imediata, um governo operário, camponês e popular baseado nas organizações sociais e na sua democracia.
Nesta dinâmica, somente um governo com estas características poderá avançar nas tarefas de libertação social e nacional, começando pela rutura completa de todos os pactos políticos e económicos que sujeitam o Egito ao imperialismo e ao Estado nazista-sionista de Israel. Somente com a tomada do poder pela classe trabalhadora será possível punir todos os crimes de Mubarak e da cúpula militar e confiscar todas as suas propriedades e a enorme fortuna acumulada a partir do roubo descarado do povo e da entrega das riquezas nacionais ao imperialismo.
A revolução no Egito, como todas as que se desenvolvem na região, continua e ilumina o caminho para todos os povos do mundo. Dois anos depois, a revolução mostra-se como um processo permanente, que combina tarefas democráticas e anticapitalistas e inter-relaciona revolução política e social, como parte deste todo que é a revolução socialista mundial.
[1]Rianovosti, 15/8/2012.
Ronald León Núñez (Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional)