De cabeça para baixo. Foi assim que o retrato da rainha Elisabete, nas mãos de um militante iraniano pendurado no muro da embaixada britânica em Teerão, percorreu o mundo e virou um símbolo do caminho para o qual as tendências mundiais vêm apontando. Sobretudo um símbolo das relações cada vez mais tensas entre o imperialismo inglês e americano e o regime de Ahmadinejad, no Irão.
No final de novembro, numa justa reação contra as sanções económicas impostas pelo imperialismo inglês ao Irão, um grupo de iranianos invadiu a embaixada britânica em Teerão, levando a Grã-Bretanha a retirar o seu pessoal diplomático do país e a expulsar os representantes do Irão que estavam em solo inglês. A recusa do governo iraniano em abandonar o programa nuclear vem fazendo com que as pressões imperialistas fiquem cada vez mais intensas.
Por enquanto elas se restringem a sanções diplomáticas e económicas, mas já ameaçam partir para o campo militar. Ocorre que o governo israelita, um dos maiores aliados do imperialismo na região e também um dos maiores interessados em impedir que o Irão fabrique qualquer tipo de bomba nuclear, já começou a levantar a hipótese de atacar militarmente o país caso não abra mão do seu direito de desenvolver um programa nuclear. Se Israel, o único país que tem bombas nucleares na região, resolver atacar o Irão, isso poderia significar uma guerra de consequências imprevisíveis no Oriente Médio.
As pressões imperialistas
Mas até agora o governo iraniano não esteve disposto a curvar-se diante das pressões israelitas, apesar de toda mostra de confiança e servilismo que vem dando ao imperialismo em outros terrenos. Os EUA não estão satisfeitos e exigem que o Irão abandone seu programa nuclear, como forma de tirar de suas mãos toda possível condição, por mais remota que seja, de ameaçar Israel ou mesmo defender-se frente a uma possível agressão israelita. Israel quer continuar a dispor do poder de pressão sobre os países árabes e muçulmanos que lhe dá o monopólio regional do armamento nuclear.
A política do Irão é manter-se firme em seu programa nuclear, justamente para se fortalecer com o chamado poder de dissuasão para evitar uma possível agressão por parte de Israel, ou seja, é uma política defensiva. O Irão não teria hoje, mesmo que já tivesse construído a bomba nuclear, a menor condição de atacar Israel, mas isso não é garantia de tranquilidade para o imperialismo, cuja política é manter apenas Israel com poderio nuclear capaz de assegurar o controlo da região ajudado por uma chantagem nuclear sobre os povos do Médio Oriente.
A situação chegou a um limite de tensão nas últimas semanas, quando um avião americano não tripulado caiu em território iraniano e o governo do Irão acusou os EUA de espionagem. Os EUA negaram, mas o fato é que o aparato, normalmente usado justamente para espionar, foi encontrado dentro do Irão.
A discussão no Saban Forum
O Irão é um país-chave para a política imperialista na região, e, por isso, desde a revolução de 79, o imperialismo vem tentando liquidar qualquer veleidade de independência por parte do regime iraniano, para mantê-lo totalmente sob seu controle. No entanto, a política de “guerra ao terror” levada por George W. Bush no Médio Oriente, somada ao pântano em que os EUA se envolveram no Iraque e Afeganistão, tornaram essa estratégia do imperialismo muito mais difícil. Impedido de fazer uma pressão mais dura ou mesmo uma nova intervenção militar, o governo Obama teve de partir para a negociação com os governos locais.
Encontrou no governo iraniano um bom interlocutor, mas, como sempre, os EUA querem um vassalo submisso, não um parceiro que tenha força de negociação. Que o seu gendarme sionista tenha superioridade incontestável no campo militar e nas “armas de destruição massiva”. Por isso, a recusa iraniana em abandonar o seu programa nuclear representa uma ameaça concreta a esses planos imperialistas na região. Até agora o imperialismo não conseguiu sequer provar que o Irão esteja violando alguma das normas internacionais nesse tema, inclusive o Tratado de Não-Proliferação vigente. Tampouco conseguiu provar que o Irão tem capacidade real de produzir uma bomba nuclear. No entanto, os EUA não podem se arriscar a que isso ocorra e, ao mesmo tempo, usam a pressão diplomática contra o Irão como forma de acalmar os israelitas e manter o Irão sobre controle e vigilância permanente.
No entanto, a política americana de fazer pressão diplomática sobre o Irão não vem agradando Israel, que exige uma posição mais dura por parte do imperialismo. Para apertar o cerco ainda mais, é preciso provar antes que o programa nuclear iraniano não é para fins pacíficos, e, sim, bélicos; é o que o imperialismo, sobretudo Israel, estão tentando fazer. E desafiam o governo iraniano a provar o contrário.
No início do mês, o Secretário de Defesa americano, Leon Panetta, durante a reunião do Saban Forum, organismo formado por oficiais americanos e israelitas que discutem os interesses comuns dos dois países, falou sobre isso. O tema deste ano do fórum foi “Desafios Estratégicos no Novo Médio Orientes”. Robert Grenier, que trabalhou muitos anos na CIA, escreveu em um artigo publicado no site da Al Jazeera, que o secretário de defesa americano disse nesse fórum que a determinação do governo Obama de impedir que o Irão adquira armas nucleares é um dos pilares da política americana na região. Ressaltou a importância e eficácia das sanções diplomáticas e económicas contra o Irão, mas cuidadosamente alertou que o recurso da força militar pode ser usado, ainda que não como primeira opção.
Isso poderia ter sérias consequências: uma crise regional cujo resultado final seria o cerco total ao Irão geraria um apoio popular generalizado para seu regime clerical, tanto dentro como fora do país; ataques contra as empresas e tropas militares americanas na região; e “severas consequências económicas” – disse ele, como aumento do preço do petróleo – que poderia piorar ainda mais as já debilitadas economias dos EUA e Europa. Finalmente, ele disse, o início das hostilidades poderia produzir “uma escalada de violência que poderia envolver muitas vidas, e também consumir o Oriente Médio em um confronto que não nos interessa”. (fonte: site da Al Jazeera, 11/12).
William A Galston, que participa há anos desse fórum, disse que a ameaça do uso da força aparentemente não está destinada a causar efeito sobre os iranianos, mas sim sobre os israelitas. De acordo com Galston, entre muitos israelitas de diferentes correntes políticas com os quais falou na conferência, nenhum acredita que a administração Obama utilizaria a opção militar para evitar que o Irão adquira armas nucleares. Essa posição seria completamente inaceitável para os israelitas.
No entanto, para eles, uma ascensão nuclear do Irão não poderá ser tolerada. Esse fato é reconhecido pelo governo Obama e, sobretudo, pelo Departamento de Defesa americano, com o qual potenciais hostilidades com o Irão, se iniciadas, seriam de sua responsabilidade resolver. Já o general Martin Dempsey, das Forças Armadas americanas, deixou claro que, por enquanto, os EUA vêm as sanções economizas e as pressões diplomáticas como um caminho prudente para convencer o Irão. “Eu acho que os israelitas não concordam com nosso ponto de vista, porque para eles se trata de uma ameaça existencial; por isso, acho que é o caso de dizer queas nossas expectativas são diferentes neste momento”.
De onde vem a verdadeira ameaça nuclear?
Essa é a pergunta chave que deve ser feita: quem ameaça quem no Médio Oriente hoje? Os Estados Unidos têm um arsenal nuclear em condições de destruir o mundo inteiro. Na região do Médio Oriente, só existe um país armado até os dentes com armas atómicas, e é Israel, com mais 300 bombas nucleares! Os dois únicos países que não assinaram o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares foram Israel e Paquistão. O Irão é um dos signatários desse Tratado e até agora ninguém provou que esteja violando qualquer uma de suas cláusulas.
Além disso, não se pode ignorar o fato de que o programa nuclear israelita recebe incentivos milionários e continuados por parte dos americanos, o que joga por terra qualquer discurso “pacifista” de Obama e dos militares americanos. Diante de tudo isso, a pressão sobre o Irão aparece como uma enorme hipocrisia. Todos esses dados bem concretos revelam que a capacidade dos iranianos de ter armas nucleares é mínima diante da verdadeira ameaça nuclear que Israel significa: um país que não hesita em bombardear Gaza, assassinar crianças e tratar os palestinianos como párias. Esse sim é um perigo real para toda a humanidade, um país assentado sobre 300 bombas nucleares e construído em base ao ódio contra os palestinianos e todos os povos árabes.
Quanto aos Estados Unidos, o mundo já sabe do que são capazes. Já deram mostras concretas de que usam as bombas nucleares que possuem quando se sentem ameaçados ou precisam referendar a sua dominação. Foi assim em Hiroshima e Nagasaki, no final da Segunda Guerra, quando lançaram as bombas sobre essas duas cidades do Japão, mesmo sabendo que o Japão já estava derrotado. Esses ataques nucleares que os americanos inscreveram em sua trajetória são como tatuagens na história da luta de classes: impossíveis de apagar.
A invasão das embaixadas
As pressões dos Estados Unidos e de Israel contra o Irão vêm fazendo com que o sentimento anti-imperialista cresça entre as massas iranianas. Lembrando a ocupação da embaixada americana em 79 e a crise dos reféns, explode agora uma nova luta anti-imperialista, desta vez contra a Inglaterra. No final de novembro, a embaixada da Grã-Bretanha em Teerão foi invadida por manifestantes que protestavam contra as sanções de Londres contra o Irão por seu programa nuclear. Janelas foram quebradas a pedradas, e as bandeiras britânicas e israelitas foram queimadas.
O governo britânico respondeu ao que chamou de “atos de vandalismo” com o fechamento de sua representação diplomática no Irão e com a expulsão do pessoal diplomático iraniano de Londres. No dia seguinte à invasão, Inglaterra, Estados Unidos e Canadá decidiram impor mais sanções económicas ao Irão. No entanto, a Inglaterra avisou que vai continuar cumprindo o acordo que tem com o Irão em relação à importação de petróleo, não porque seja um país que costuma cumprir os seus compromissos, mas por uma razão mais pragmática: o país precisa do petróleo para tocar a sua economia. As sanções também tiveram como base um relatório da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) que, obedecendo as ordens dos chefes, diz ter encontrado evidências das suspeitas dos ocidentais de que o Irão tenta produzir armamento nuclear, apesar dos desmentidos por parte do governo de Ahmadinejad.
No dia 4 de novembro de 1979, estudantes iranianos invadiram a embaixada dos Estados Unidos em Teerão e fizeram 52 reféns, exigindo que o xá Reza Pahlevi, que estava nos EUA, fosse extraditado para ser julgado no Irão. Pahlevi era um antigo aliado dos Estados Unidos, que, em 1953, haviam apoiado o golpe que derrubou o o chefe de governo nacionalista iraniano Mohammad Mossadegh.
A crise dos reféns dominou os 14 meses restantes do governo Jimmy Carter (1977-1981) e marcou o rompimento diplomático entre Teerão e Washington. Em 20 de janeiro de 1981, 20 minutos após o discurso de posse de Ronald Reagan, os reféns foram libertados. Haviam ficado 444 dias detidos.
A invasão da Embaixada foi o ápice da escalada de nacionalismo deflagrada nove meses antes, quando a Revolução Islâmica derrubou o xá e colocou o aiatolá Khomeini no poder. O fracasso de duas missões americanas de resgate dos reféns, em 1980, foi comemorado pelo povo iraniano fortalecido pela derrota imperialista na sua tentativa de resgate e aumentou o ressentimento contra os Estados Unidos. O então governante da república islâmica, o aiatolá Khomeini, chamava os EUA de “grande satã”.
Cresce o sentimento anti-imperialista entre as massas
Em meio à situação revolucionária em todo Médio Oriente e Magrebe, as sanções do imperialismo contra o Irão só fazem aumentar o sentimento anti-imperialista entre as massas iranianas, expresso agora na invasão da embaixada inglesa. No entanto, a política contraditória de Ahmadinejad representa um obstáculo para que esse sentimento se transforme em uma grande luta anti-imperialista e leve o Irão a somar-se ao ascenso revolucionário que comove diversos países da região.
Ao mesmo tempo em que desafia as ordens dos Estados Unidos e Israel para que abandone o programa nuclear, Ahmadinejad vem se mostrando cada vez mais serviçal ao imperialismo, aberto a todo tipo de negociação e disposto a apoiar os governos mais pró-imperialistas na região. Nesse sentido, mostrou até que ponto foi cúmplice da ocupação do Iraque pelos EUA, ajudando a sustentar o governo títere de al-Maliki todos esses anos. Aconselhou os setores xiitas mais radicais, como o liderado por Moqtada al-Sadr, a submeter-se ao ocupante. Assim que se começou a discuti a retirada das tropas americanas do território iraquiano, o Irão se ofereceu para, apesar de tudo o que o imperialismo fez no Iraque, dar sustentação ao governo apadrinhado por Obama. Trata apenas de obter uma parte, ainda que menor, do saque das imensas riquezas do país pelo imperialismo. Com isso, o regime de Ahamadinejad passou por cima da montanha de destroços em que o Iraque se transformou nos tempos da invasão e, sobretudo, revelou um profundo desprezo pela memória das centenas de milhares de iraquianos mortos no verdadeiro banho de sangue que significou a invasão do Iraque pelos EUA.
Essa política do governo iraniano de buscar uma convivência pacífica com o imperialismo e, ao mesmo tempo, reprimir o movimento de massas, acaba por enfraquecer a luta anti-imperialista, porque ajuda os países imperialistas a levarem até o fim seu projeto de controle e dominação dos países árabes, sem encontrar pela frente a resistência das massas.
Por isso, apesar de defendermos o direito de o Irão desenvolver o seu programa nuclear para se defender contra um possível ataque militar por parte dos EUA e Israel, chamamos as massas a não confiarem em Ahamadinejad como direção dessa luta contra o imperialismo. A situação no Irão deve ser entendida como parte de um processo que vem desde 1979, quando a classe trabalhadora iraniana protagonizou uma das mais impressionantes revoluções do século XX. Ela pôs abaixo o governo de Reza Pahlevi, mas, carente de um partido revolucionário que levasse as massas a tomar o poder e implantar um governo dos trabalhadores, assistiu à subida da burguesia encabeçada por um clero islâmico reacionário. Essa burguesia, a cavalo da revolução e com um discurso populista e supostamente anti-imperialista, nacionalizou o petróleo e o comércio exterior, mas, ao mesmo tempo, desatou uma violenta repressão contra as massas para se consagrar no governo e reconstruir o poder burguês, estabilizar o capitalismo e colocar uma pá de cal na situação revolucionária.
Com essa grande revolução em sua memória histórica, que lhe conferiu uma qualidade superior, o movimento operário iraniano está acostumado a lutar sob forte repressão. Ao longo de sua história recente, isso lhe deu grande experiência em matéria de organização, o que foi decisivo na revolução que derrubou o Xá. Os comités operários (shoras) foram a base fundamental da revolução, bem como os seus sindicatos, que eram tão fortes e combativos que, durante os primeiros anos no poder, os aiatolás os substituíram pelas chamadas Casas de Trabalho, entidades totalmente controladas pelo regime.
Desde o final dos anos 90, os trabalhadores vêm retomando as suas lutas e construindo instrumentos independentes de organização. Entre eles, os motoristas de autocarro de Teerão e os metalúrgicos da fábrica de automóveis Khodro, que sempre foram setores muito combativos. Foi retomada também a sua tradição de fazer grandes atos de Primeiro de Maio, com um caráter de luta e protesto. Em 2009 ocorreram várias greves pelo pagamento de salários em atraso nas indústrias têxteis e também entre os professores, uma classe na qual 80% são mulheres, com salários de fome, que fizeram massivas manifestações contra o regime, mesmo com toda a repressão e o preconceito que existe contra as mulheres.
A trajetória do movimento operário iraniano é rica em experiências não apenas restritas às lutas económicas e sindicais, mas inclui também as lutas políticas, tanto democráticas, contra a ditadura, como anti-imperialistas. Mesmo com os seus sindicatos totalmente controlados, os trabalhadores lutaram contra as fraudes que deram a vitória a Ahmadinejad em 2009. Logo depois de concluído o processo eleitoral e comprovada a ocorrência de fraudes, uma gigantesca onda de protestos tomou conta do país, com mais de três milhões de manifestantes ocupando por vários dias as ruas de Teerão e outras importantes cidades.
Assim, o governo Ahmadinejad já subiu em meio a uma enorme oposição e agora tenta utilizar os atritos com o imperialismo para tentar aumentar seu prestígio junto à população e se manter no poder. Mas os trabalhadores iranianos não devem confiar nem um minuto nessa direção, que não é consequente sequer nas medidas contra os agressores imperialistas. É preciso prosseguir a luta contra o governo e, ao mesmo tempo, exigir que o imperialismo e as suas empresas se retirem imediatamente do Irão. Só a classe trabalhadora, com as suas organizações, poderá defender, de fato, a independência do país e decidir sobre o programa nuclear iraniano, sem qualquer ingerência dos países imperialistas, dos aiatolás e da burguesia do Irão.
Cecília Toledo – PSTU
22/12/2011