O que têm em comum o sucessor de Berlusconi e a maior favela do Brasil? Aparentemente nada, mas ambos protagonizam duas das maiores farsas estimuladas pela imprensa nos últimos dias. Mario Monti é apresentado como um tecnocrata competente, íntegro e acima das disputas partidárias, o “super mario” que enfrentou a Microsoft quando chefiou o comissariado europeu para a Concorrência, o “negativo absoluto” do seu antecessor e o homem capaz de restaurar a confiança dos mercados numa Itália a naufragar. Mas este é apenas um ponto de vista, justamente aquele defendido pela troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional), pela banca e a burguesia italiana.
Há outras leituras possíveis que interessam mais ao cidadão comum, isto é, o trabalhador de quem estão a retirar salários, direitos e, em muitos casos, a própria capacidade de sobreviver. Mario Monti não é um tecnocrata neutro (como, aliás, não o é a tecnocracia), não é um intelectual académico distante do comezinho mundo do poder, mas um homem de mão da burguesia. O seu currículo fala por si: diretor europeu da Comissão Trilateral, uma espécie de estado-maior informal do imperialismo mundial criado por David Rockefeller em 1973; presidente honorário da think-tank Bruegel; assessor internacional do Goldman Sachs, um dos maiores bancos de investimento do mundo, e membro do conselho consultivo da Coca-Cola.
Mario Monti é agora, acima de tudo, o interventor da troika na Itália para conseguir aplicar planos de austeridade semelhantes aos já em curso na Grécia, Espanha, Irlanda ou Portugal. Berlusconi, após 17 anos no poder, estava suficientemente desgastado para ser-lhe impossível levar a cabo tal tarefa. Por isso, foi forçado a renunciar para que outro, com mais credibilidade, pudesse continuar o trabalho sujo. Uma situação idêntica à ocorrida em Portugal, com a demissão de Sócrates, na Espanha, com a saída antecipada de Zapatero, e na Itália, com a renúncia de Papandreu. Berlusconi e Monti não são opostos, como a imprensa quer fazer crer, mas duas faces da mesma moeda política da burguesia, cujo atual objetivo é forçar os trabalhadores a pagar a crise do capitalismo.
Choque de paz?
A outra parangona dos últimos dias relaciona-se com a incursão policial na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, numa operação autodenominada “Choque de Paz”, cujos fantásticos resultados teriam sido a prisão do chefe do tráfico local e a sua ocupação por 3 mil soldados sem um disparo em apenas duas horas. Tal façanha está a ser “vendida” pela imprensa como um fato notável que terá como consequência a erradicação do tráfico de drogas daquela favela com 101 mil habitantes. “O que temos de concreto é a libertação dessas pessoas do jugo do fuzil”, assegurou o secretário da Segurança Pública do Rio de Janeiro. A frase é sonante, mas está muito longe da verdade.
A verdade é que os governos do Rio de Janeiro e do Brasil estão a empenhar-se em “limpar” com show-off a imagem da cidade e do país para o Mundial de Futebol de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Para isso, há alguns anos, iniciaram a “pacificação” das favelas, com a expulsão dos traficantes e a sua ocupação por Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). Na Rocinha, isso significa que 1.100 policiais militares irão ocupá-la permanentemente, isto é, no lugar de traficantes armados haverá policiais militares igualmente armados. Quem conhece minimamente o historial da Polícia Militar (PM) no Brasil sabe bem o que isso significará em termos de insegurança para os seus habitantes.
A PM no Brasil é uma polícia militarizada com foros privilegiados que teve origem na ditadura militar e se constitui numa das forças policiais mais violentas do mundo, com registo de corrupção, tortura e assassinatos. O massacre no presídio do Carandiru, em São Paulo, em 1992, quando 111 presos foram mortos por policiais militares, é apenas um dos exemplos mais conhecidos.
À população carioca, nomeadamente a que vive nas favelas e convive de perto com a ditadura do tráfico, certamente agradará a expulsão dos traficantes, mas não haverá qualquer vantagem na sua substituição por outro bando armado. As favelas são a síntese da violenta desigualdade social existente no Brasil, na qual o tráfico de drogas encontra terreno fértil para se expandir. Só uma política radicalmente oposta à implementada pelos sucessivos governos brasileiros, inclusive os do Partido dos Trabalhadores, poderá de fato erradicar a pobreza e a criminalidade das favelas e do “asfalto”.
Mas não é esse o objetivo da operação pacificadora na favela da Rocinha e nas outras favelas do Rio. Basta verificar o que pensam das favelas os responsáveis por tal operação. Há quatro anos, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, associou a fecundidade das mulheres da Rocinha a uma “fábrica de produzir marginal”. A grande maioria dos habitantes das favelas do Rio são trabalhadores e não marginais, vítimas, e não cúmplices, dos traficantes. Assim como são vítimas de governantes como Sérgio Cabral, para quem militarizar as favelas é a fórmula ideal para mostrar serviço aos burocratas da FIFA e do Comité Olímpico e simular o fim da criminalidade no Brasil.