A Argentina e a dívida externa

As palavras de ordem de “Não pagamento da Dívida Externa” e de “Ruptura com o FMI” foram o eixo central da política do Movimento ao Socialismo (MAS) argentino desde a sua fundação (1982) e durante toda essa década. Essa palavra de ordem, como explica Nahuel Moreno, dirigente dessa partido, em seu artigo “1982: começa a revolução”, concentrava a luta antiimperialista e anticapitalista no país. É importante destacar que, no início da década de 80, o México havia declarado uma moratória de sua dívida externa, no início do que ficou conhecido como a “crise da dívida”.

Para justificar essas palavras de ordem, argumentávamos que a maior parte da dívida havia sido uma verdadeira burla realizada durante a ditadura, apoiada na repressão: as grandes empresas multinacionais se endividaram no exterior, utilizaram esse dinheiro em especulação financeira interna, nunca pagaram e, no final da ditadura, o governo “nacionalizou” a dívida (entre 1976 e 1982 deu um salto de 7.000 para quase 50. 000 milhões de dólares). Dessa forma, reivindicávamos a suspensão do pagamento e uma auditoria para saber que parte da dívida era legítima.

O segundo argumento que utilizávamos para defender a suspensão do pagamento da dívida era de que tal pagamento – cerca de 8.000 milhões de dólares anuais em juros e principal – era um saque e que esse dinheiro tinha de ser utilizado para o desenvolvimento do país.

A terceira razão por nós apontada para suspender o pagamento da dívida era a de que esta dívida e os seus refinanciamento permitiam que o FMI controlasse permanentemente a economia argentina e, de facto, dirigisse as políticas económicas dos governos.

Nas mobilizações, o MAS cantava “A dívida não vamos pagar, porque com esse dinheiro temos que comer”. No início, chamaram-nos do “loucos do não pagamento”, já que a burguesia argumentava que “era preciso honrar as dívidas” e que o seu pagamento não afectaria o país. Pouco a pouco, foi-se vendo a realidade e até sectores burgueses começaram a falar de suspender o pagamento ou pagar só uma percentagem das exportações. Nosso prestígio diante dos trabalhadores aumentou muito (“o MAS dizia a verdade”).

Posteriormente, a dívida externa argentina foi crescendo exponencialmente (através de sucessivos refinanciamentos e planos) e, no início de 2000, chegou a mais de 180.000 milhões de dólares. A metade com os organismos internacionais (FMI, Banco Mundial) e os governos, e a outra metade com os bancos privados. Essa foi uma das razões que desencadeou a política da “convertibilidade” (1 dólar = 1 peso) e a grande crise que estourou nos finais de 2001.

Nestas condições, os títulos da dívida externa argentina chegaram a valer menos de 20% do seu valor nominal. Nesse momento, o governo do então presidente Néstor Kirchner decretou uma moratória da dívida e a renegociação nominal de parte da dívida com os bancos privados (dívida essa contraída através da venda dos títulos da dívida a esses bancos), com um rebaixamento obrigatório de 50% do seu valor nominal.

Foi, efectivamente, uma medida burguesa, muito tímida e parcial. Em primeiro lugar porque só afectava a parte da dívida com os bancos privados e não os organismos internacionais. Em segundo lugar, porque esse rebaixamento de 50% do valor nominal dos títulos representava, mesmo assim, reconhecer um valor de mais do dobre do que o valor real que os títulos tinham nos mercados. Em terceiro lugar, não se investigava nada da burla da ditadura (base principal da dívida actual, com todos os seus financiamentos).

De concreto, a dívida baixou uns 140.000 milhões de dólares e, sobre essa base, o governo continou a pagar, inclusive de modo antecipado, algumas prestações com o FMI. Por todas estas razões, nós criticamos esta política e exigimos que a moratória e o rebaixamento do valor nominal dos títulos fossem totais. Isto é, um verdadeiro não pagamento está por se conseguir com a mobilização.

Claro que esta política de Kirchner não pode ser compreendida sem o contexto da revolução argentina iniciada em 2001. O governo a apresentou como uma demonstração de antiimperialismo e como a concretização parcial, mas importante, do sentimento do não pagamento. Ao mesmo tempo, a fase ascendente da economia mundial, iniciada em 2003, deu um grande respiro para a Argentina como exportadora de matérias-primas e, depois de vários anos de profundo retrocesso do PIB (mais de 20% acumulado entre 1999 e 2002), entre 2003 e 2008, o PIB aumento em mais de 50%.

O que é totalmente falso é que a medida de Kirchner haja provocado uma queda salarial de 35% (tal afirmação revela uma grande ignorância sobre a realidade argentina). A massa salarial global aumentou em termos absolutos porque entre 2003 e 2008 criaram-se mais de 3 milhões de postos de trabalho e o desemprego, cuja taxa estava em 30%, caiu para 10% da força de trabalho. Claro que isto se deve ao espaço que ainda há para o carácter de exportador de matérias-primas e não à redução da dívida, mas esta medida de nenhuma forma jogou contra essa recuperação.

Sim, há uma erosão salarial, mas ela se origina na brecha entre uma inflação alta por razões estruturais (alguns estudos a estimam em cerca de 24% ao ano em 2010) e os acordos salariais. Não tem nada a ver com o que fez Kirchner com a dívida, mas é parte de uma batalha das empresas para baixar custos. Isso, inclusive, é muito desigual segundo a capacidade de luta de cada classe profissional: as mais fortes, com duras lutas, conseguem manter e inclusive melhorar alguma coisa do seu poder aquisitivo.

Alejandro Iturbe, da Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional (LIT-QI)

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