Torna-se impossível encontrar actualmente um país árabe que não esteja sacudido por revoltas e mobilizações. A crise económica mundial afecta os países do Médio Oriente e do Norte de África. São os trabalhadores imigrantes destes países na Europa os primeiros a perder os seus postos de trabalho e com isto caem a pique os envios de remessas de dinheiro para os seus países. Vem o FMI impondo programas de privatização dos serviços públicos, de redução drástica dos gastos dos Estados, de diminuição do número de trabalhadores, funcionários públicos…
Nada que pareça estranho, mas cujas consequências são muito mais demolidoras nestes países com taxas de desemprego que superam os 50% da população activa. A este quadro há que acrescentar, desde finais de 2010, o maior aumento de preços dos produtos alimentares desde 1990 e as suas consequências nos países árabes que conformam uma das grandes regiões do mundo importadoras de alimentos. A Líbia, por exemplo, importa 75% dos alimentos que consome.
Acresce a essa situação o ódio aos governos fantoches das grandes potências imperialistas, ditaduras encarregadas de aplicar os planos do FMI à custa da fome do povo e que se mantêm sob estados de emergência que se prolongam por décadas. É neste cenário que os acontecimentos de Tunes se acendem como um pavio, e o efeito dominó se inicia em toda a região unida por sentimentos de nacionalidade, tradição de luta e repúdio ao imperialismo e ao sionismo. Assistimos a um processo de levantamentos, a uma revolução que tem como bandeiras (como é dito na declaração da Corrente Vermelha perante os factos ocorridos em Tunes) a luta pelo pão, o trabalho e a liberdade. Um processo revolucionário em que se destacam os jovens, afectados pelo desemprego e sem nenhuma possibilidade sequer de emigrar.
Por estas razões, todos os levantamentos populares nos países árabes foram olhados com enorme simpatia e receberam um apoio incondicional desejando o seu triunfo. Assim o entendeu a Corrente Vermelha, por isso saímos à rua apoiando os povos tunisino e egípcio assim que se soube dos levantamentos.
Os acontecimentos na Líbia, pelo contrário, desencadearam uma polémica em toda a esquerda, uma polémica difícil e muito dura. O posicionamento perante os acontecimentos na Líbia envolve sem dúvida questões de princípio e as linhas divisórias não estão agrupadas nas correntes mais tradicionais ou em organizações mais próximas ideologicamente. Assim, as posições oscilam, entre outras, desde os que ficaram desde o início do processo ao lado de Kadafi, com especial destaque para o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, ou da Venezuela, Hugo Chávez, Fidel Castro e a direcção cubana, até aos que se posicionaram desde o início em apoio ao levantamento popular contra Kadafi como a Frente Popular de Libertação de Palestina, o Partido Comunista dos Trabalhadores da Tunísia, a LIT-QI, o Hezbollah…
Para além do posicionamento concreto, um debate desta natureza exige mais rigor que o que sobressai de toda essa esquerda que sustenta a teoria da conspiração, não só por tudo o que já representa a Líbia, mas também porque o choque se pode repetir perfeitamente, inclusive em maior grau, se a revolução avançar para a Síria ou a Argélia.
Teoria da conspiração ou luta de classes?
O surpreendente deste debate é que não havendo um único país do mundo árabe que tenha ficado livre das revoltas populares se negue a relação deste processo com o líbio.
Para aqueles que desde o início procuraram demarcar-se do levantamento na Líbia e diferenciá-lo do processo geral do Médio Oriente e do mundo árabe, a razão mais esgrimida é a de que esse levantamento é dirigido pela “Frente Nacional de Salvação da Líbia [NFSL na sigla inglesa (…) uma organização financiada pela CIA [que] incita o povo líbio a reiterar um juramento de lealdade ao rei Idris el-Senusi como líder histórico do povo líbio”.
Recentemente, Julio Anguita (ex-secretário-geral do Partido Comunista de Espanha e ex-coordenador de Esquerda Unida), numa aparição pública, partilhava desta explicação salientando os acontecimentos na Líbia como algo alimentado por “manipuladores” financiados pela CIA. Ou seja, segundo este raciocínio, em todos os países árabes há levantamentos populares excepto na Líbia, em que são uma provocação instigada pela CIA.
Esta forma de explicar os fenómenos políticos e/ou sociais está, sem dúvida, muito próxima da amplamente difundida teoria da conspiração. Mas aceitemos momentaneamente esta tese e suponhamos que o que se passa na Líbia se explica como parte de um plano engendrado pela CIA. Surgem então numerosas dúvidas:
Khadafi é o homem do imperialismo na Líbia desde 2003, e, especialmente a partir de 2006, as multinacionais faziam o que queriam naquele país; o FMI, oito dias antes do levantamento popular, felicitou publicamente o governo líbio pelos planos que estava a aplicar. Khadafi foi fotografado com todos os presidentes do mundo e foi convidado especialmente por Obama para a Cimeira do G-8. Khadafi apoiou entusiasticamente Ben Ali, o ditador tunisino, e Mubarak, e quando estes estavam a ser questionados pelos levantamentos populares ofereceu a ambos asilo na Líbia. Khadafi é o homem que dispõe das chaves da cidade de Madrid e é amigo declarado de Aznar. Khadafi é sócio de Berlusconi, e o governo líbio é accionista do grupo aeronáutico e de defesa Finmeccanica, controlado pelo Estado italiano; accionista da empresa de petróleo ENI, da têxtil Olcese e do clube de futebol Juventus, entre outros. Inclusive o governo líbio participa como accionista nas Comunicações Quinta, da qual o accionista maioritário é Berlusconi.
A pergunta é inevitável: por que é que a CIA organiza uma conspiração contra um homem com semelhante currículo? O que aconteceu nos oito dias entre o comunicado do FMI felicitando o governo de Khadafi e os levantamentos populares de 17 de Fevereiro para que o imperialismo tenha mudado de política e tenha desejado os levantamentos populares contra aquele que até essa data era um governo aliado?
À teoria da conspiração recorrem as correntes políticas mais díspares. Khadafi, por exemplo, também opina que é uma conspiração, mas, segundo ele, organizada pela Al Qaeda e pela NATO que a apoia: “Enfrentamos o terrorismo da Al Qaeda, por um lado, e, por outro, a NATO, que agora apoia a Al Qaeda”.
Historicamente, as intervenções da CIA caracterizam-se pelo apoio a golpes militares, mas é surpreendente que na Líbia a CIA haja tentado e continue a tentar uma revolta popular, tanto mais quando o faz num barril de pólvora como o mundo árabe, sacudido por revoltas por toda a parte. Pareceria um bombeiro louco lançando gasolina sobre um enorme incêndio.
Mas mais uma vez admitamos que essa hipótese é correcta e que a CIA liderou uma revolta popular contra aquele que apenas há um mês era um governo amigo. Porque então, quando nos primeiros momentos, o levantamento varria as tropas de Khadafi, o imperialismo esperou para intervir até que Khadafi se refizesse e o movimento “sedicioso” fosse massacrado e reduzido a Benghazi? Porque, quando os insurrectos pediram armas, os governos, entre os quais o espanhol, as negaram?
Os marxistas, e em especial Lenine, apesar de não terem Internet nem páginas web, liam a imprensa burguesa e definiam a sua política não em base a conspirações, mas sim na análise das classes sociais, no seu papel, nas suas contradições internacionais e nacionais. Onde ficam nesta teoria conspirativa as classes sociais, o carácter de classe dos Estados, as contradições internas de cada classe, as contradições entre os próprios estados imperialistas e entre os grupos multinacionais, as contradições entre os movimentos sociais e as suas direcções?
Da mesma forma que para os antigos gregos e romanos o devir do mundo se explicava pelo Destino, para os teóricos da conspiração tudo está escrito para que suceda de uma determinada maneira. Assim explicam os acontecimentos da Líbia.
Qualquer dado da realidade é secundário ou se explica porque o imperialismo “nos confunde”. “Não podemos nos guiar pelos meios de comunicação do imperialismo”, dizem eles, mas não se dão ao trabalho de ler os poucos ou muitos dados que tenhamos; apelam contra a leitura dos diários burgueses para não ficarmos presos à confusão, que importa o que diga o inimigo! Os únicos artigos que devem ser lidos são os “verdadeiros”, aqueles que provêm de opiniões que “demonstram” a conspiração da CIA.
No entanto, não têm depois o menor problema em sustentar a sua teoria conspiratória de um movimento liderado supostamente desde o primeiro dia pela NFSL com base numa nota informativa do New York Times de 25 de Fevereiro.
Os critérios de Lenine para “descobrir a verdadeira essência de uma guerra”
Perante as guerras, Lenine, contra os pacifistas que condenavam toda guerra por princípio e frente aos oportunistas que capitulavam aos governos e estados burgueses, exigia, antes de definir uma posição política, determinar a natureza da guerra.
Para os defensores da teoria de la conspiração na Líbia, basta repetir que “tudo é uma montagem”, “a imprensa mente”, e uma vez iniciada a intervenção imperialista já não há nada que discutir porque a posição revolucionária se define com base em que o “inimigo ataca”. Com essa forma de raciocinar, parece sem sentido perguntar-lhes aquilo que Lenine exigia responder antes de definir uma política. Qual é a natureza desta guerra?
Lenine, que certamente dedicava horas e horas a ler todos os jornais burgueses que caíam nas suas mãos, polemizando sobre a guerra com todos os que faziam “troça do marxismo” dizia: “Como descobrir a “verdadeira essência” da guerra, como determiná-la? A guerra é a continuação da política. É preciso estudar a política que precede a guerra, a política que leva e levou à guerra”; “O filisteu não compreende que a guerra é a “continuação da política” e por isso se limita a dizer que “o inimigo ataca”. Com más veemência, Lenine prossegue com esta polémica: “Se não o fizéssemos assim, esqueceríamos a exigência principal do socialismo científico e de toda la ciência social em geral e além disso nos privaríamos de compreender tudo sobre a guerra actual (…) Pode-se explicar a guerra sem a relacionar com a política precedente deste ou daquele Estado, deste ou daquele sistema de Estados, destas ou daquelas classes? Repito uma vez mais: esta é a questão crucial, que sempre se esquece e cuja incompreensão faz com que, em cada dez discussões sobre a guerra, nove resultem numa disputa vã e mero palavreado. Nós afirmamos: se não tiverem estudado a política praticada (…) se não tiverem demonstrado a relação desta guerra com a política precedente, não terão entendido nada desta guerra”. (1)
Para os teóricos da conspiração todos estes critérios de Lenine são prescindíveis. As explicações dos fenómenos políticos ou sociais que acontecem no mundo não precisam de fundamento científico, material, nem marxista, basta saber que “o inimigo ataca”. Como na velha ditadura que suportámos durante quarenta anos, qualquer revolta social se explicava devido aos “agitadores estrangeiros”, “desordeiros profissionais pagos com o dinheiro de Moscovo”.
Os factos da realidade
Além das conclusões políticas a que se quer chegar, o facto objectivo é que assistimos a uma onda revolucionária em todo o mundo árabe e Oriente Médio. Na Líbia, o governo de Khadafi, o homem das multinacionais do petróleo, o garante da pilhagem imperialista, enfrenta protestos e lutas que culminaram em 17 de Fevereiro numa insurreição popular. Vejamos um exemplo simples. Samir El Magrebi, um estivador do porto de Benghazi, ao explicar a um correspondente de um jornal venezuelano que ganhar 200 dinares e vive com a sua família num quarto da casa de seus pais em um bairro muito humilde, El Zeitún, disse: “Somos seis irmãos e três irmãs, e apenas três dos nove têm trabalho. Encontrar um emprego hoje em dia é muito difícil, quase impossível. A primeira coisa que precisamos melhorar depois da revolução são as questões de habitação, emprego e salário. É o que todos nós esperamos, que a situação melhore”.
Da mesma forma que em toda a região, o levantamento coloca no centro das suas exigências a luta contra o aumento dos preços e pela satisfação das necessidades mais elementares, contra o governo corrupto e pelas liberdades democráticas básicas.
A revolta de 17 de Fevereiro estendeu-se às principais cidades do país e tornou-se forte na região da Cirenaica, de antiga tradição opositora a Khadafi. Khadafi responde reprimindo os protestos com sangue e fogo, o que longe de parar a guerra gerou um enfrentamento armado. A utilização do exército contra os protestos, longe de resolver o problema, abre uma crise profunda no regime.
Sectores do exército desertam, ministros, diplomatas e “homens de negócios” deixam as fileiras do regime e passam para a oposição. Os insurrectos assaltam quartéis e arsenais de armamento, para enfrentar assim os corpos de elite e os mercenários de Khadafi.
Um site nada suspeito de ser pró-imperialista como voltairenet.org informava o seguinte “O governo de Netanyahu solicitou à companhia Global CST que socorresse o regime amigo do coronel Khadafi (… ) recrutar e transportar até 50.000 mercenários, o que parece ser um projecto bastante ambicioso”.
Para quem conheça bem o sionista Netanyahu, mas não tanto a empresa mencionada, há que dizer simplesmente que a Global CST é uma multinacional especializada, entre outras, coisas no comércio de mercenários de guerra e é dirigida pelo general na reserva do exército sionista Israel Ziv.
Assim, os factos mostram que, contrariamente ao Egipto e à Tunísia, o regime é incapaz de controlar institucionalmente a revolta, está dividido, e Khadafi apela aos corpos de elite e a mercenários para abafar os protestos que, longe de sucumbir, se generalizam, e os acontecimentos configuram assim uma situação de guerra civil. A transformação de um levantamento popular em guerra civil é o facto objectivo e a diferença qualitativa, neste momento, entre a Líbia e o Egipto ou a Tunísia.
Voltando às exigências de Lenine antes de definir uma política, qual é a natureza desta guerra? É preciso dizer que a intervenção da NATO na Líbia, a guerra imperialista produz-se sobre a existência de outra guerra, a guerra civil. Assim, na Líbia, estamos no meio de duas guerras. Os defensores da teoria da conspiração negam de facto a existência da primeira e reduzem o conflito líbio a uma só guerra, “o imperialismo ataca”; negam assim o levantamento popular e acabam objectivamente sendo os defensores assumidos ou inconfessos de Khadafi.
O movimento insurgente e a sua direcção
Para todos os defensores da teoria da conspiração da CIA, a diferença entre a Líbia e o Egipto e a Tunísia está precisamente na direcção do processo. Para todos eles a direcção do levantamento e o levantamento em si são a mesma coisa, o que dá à insurreição um carácter reaccionário, contra-revolucionário, manipulador, como diz Anguita.
Definir a natureza de um movimento pela sua direcção é um erro muito comum entre alguns sectores da esquerda e é alheio ao marxismo.
Os acontecimentos no estado espanhol são pródigos em exemplos. As mobilizações recentes dos trabalhadores tiveram à sua frente uma direcção corrupta, parte do regime e aliada do governo. Cada mobilização que convocou fê-lo pensando em colocar-se melhor na negociação perante o governo e trair a luta, incluindo a greve geral. Alguns sectores da esquerda, apoiando-se neste facto correcto, negaram-se sucessivamente a participar nas mobilizações convocadas pelas CCOO e UGT, inclusive negaram-se a apoiar a greve geral do passado 29 de Setembro. Por que é que apoiamos essas mobilizações, participámos nelas e impulsionámos entusiasticamente uma greve geral quando sabíamos antecipadamente da natureza dessa direcção e o que pretendia? Não sabíamos que iam trair? O que fazíamos “misturados” com traidores e corruptos, agentes do regime e do sistema?
Vejamos outros exemplos, Egipto e Tunísia. Sectores dessa esquerda que hoje distingue a Líbia do resto do processo revolucionário árabe participaram desde o início nas manifestações de apoio ao levantamento na Tunísia e Egipto, mas quem era a direcção desse processo?
Las massas egípcias protagonizaram um levantamento exemplar contra o governo de Mubarak, a Praça da Liberdade foi o símbolo desse levantamento, mas à frente do mesmo colocaram-se dirigentes burgueses e reaccionários como a Irmandade Muçulmana ou os partidários do pró-imperialista El Baradei. O exército egípcio, a instituição chave do regime, dirigida e assistida pelo imperialismo, desarmava os manifestantes enquanto deixava entrar na praça os bandos de Mubarak para causar estragos. As massas que gritavam contra o governo e queriam derrubar Mubarak acabaram aplaudindo o Exército.
O movimento foi controlado, até agora, pelo regime. Hoje no Egipto o exército de Mubarak preserva o poder e, com ele, todos os seus pactos de fome e miséria e sustenta o imperialismo e o sionismo. Por que é que participámos então de forma entusiástica nas manifestações de apoio às revoltas no Egipto quando tinham à frente semelhante direcção pro-imperialista e na praça se gritava por uma intervenção do exército egípcio?
A explicação é que nós não confundimos jamais o movimento com a sua direcção. A natureza política de um movimento popular de protesto é determinado pelo objectivo, a quem ou o quê enfrenta, porque o movimento para um marxista é por definição inconsciente, não tem consciência do rumo geral da luta nem dos seus objectivos históricos. As massas quando se mobilizam fazem-no em reacção àquilo que vivem, repudiando quem os condena à miséria ou à opressão. Sobre essa acção inconsciente, objectiva, actuam as direcções políticas, o factor subjectivo, consciente, sejam estas direcções mais ou menos fortes, sejam mais ou menos prestigiadas, sejam revolucionárias ou reaccionárias. Sob o impulso objectivo da acção das massas actuam esses elementos conscientes, que representam interesses de classe diferentes e opostos, para dirigir num ou noutro sentido o processo dando-lhe um programa.
Para os marxistas, esse processo, sem qualquer desfecho linear, está repleto de tensões, contradições e choques entre as distintas forças que disputam essa direcção. Dá-se, assim, uma luta viva, cujo resultado não vem predeterminado por nenhum conspirador nem nenhuma força do destino.
A luta na Líbia e a direcção do processo
Qual é então a natureza do movimento de protesto contra Khadafi? O facto concreto que desencadeia as mobilizações primeiro e a repressão do regime depois é sobejamente conhecido. Os protestos na Líbia se iniciaram, como em tantos outros países árabes, quando surge o processo da Tunísia. Em 17 de Fevereiro, as manifestações contra Khadafi, encabeçadas pelos familiares das vitimas do massacre ocorrido na prisão de Abu Salim, em Trípoli, há 15 anos, onde foram assassinados 1200 presos, e a detenção do advogado dos familiares dos presos, foram reprimidas com tiros pelas forças de Khadafi. Desencadeiam-se, assim, os acontecimentos actuais.
O povo líbio, farto de ver deteriorarem-se as suas condições de vida, farto de corruptos e de uma ditadura que se prolonga por mais de 40 anos, como na Tunísia e no Egipto, sai às ruas. É um movimento progressivo, objectivamente revolucionário e objectivamente antiimperialista, pois enfrenta o governo lacaio do FMI e do imperialismo. Uma pergunta fundamental que toda a esquerda deveria fazer é o que faria se se encontrasse no local? Se nós estivéssemos na Líbia, estaríamos sem dúvida com os que saíram à rua contra Khadafi, apoiando esse movimento, independentemente da sua direcção. E quanto mais reaccionárias fossem essas direcções, mais obrigados estaríamos de intervir para impedir que se tornassem a direcção do movimento.
A Al Jazira e numerosos meios de comunicação mundiais deram conta da constituição, desde o início da revolta, dos chamados Comités Populares. Para quem tenha interesses nos relatos, do lado dos insurrectos há abundante informação gráfica e sonora, entre os quais num órgão de comunicação nada suspeito de pró-imperialismo como a Telesul venezuelana e a sua correspondente na Líbia Reed Lindsay.
Após os acontecimentos de 17 de Fevereiro, alastram-se por todo o país Comités Populares. Onde se expulsavam as tropas de Khadafi, eram esses Comités os encarregados de assegurar a provisão de alimentos; assegurar a electricidade, obter petróleo para o abastecimento de combustíveis às plataformas; assegurar a distribuição de alimentos e água. Esses Comités são os que asseguraram que os funcionários que trabalham nas sucursais locais do Ministério das Finanças, nos lugares onde se juntaram à revolução, “assinassem os cheques que garantiram o pagamento dos salários”; esses Comités armados asseguraram las tarefas de defesa e o funcionamento das agências do Banco central. Os Comités asseguram que nos bancos que haviam retomado o seu funcionamento fosse permitido retirar diariamente até 160 dólares.
A ausência de instituições nos lugares libertados foi preenchida por estes Comités. Não é nada difícil adivinhar o que todo este processo implica, porque todo processo revolucionário quando deita abaixo o Estado e a sua coluna vertebral, o exército, se divide, vê-se obrigado a substituir e a improvisar toda essa engrenagem.
Quem é a base de todas essas milícias e do movimento insurreccional? Da mesma forma que em muitos outros países árabes, são os jovens, homens e mulheres, que encabeçaram o levantamento contra o tirano.
Basta observar as reportagens para ver unas milícias improvisadas, mal armados, com pouca disciplina, sem estrutura de comando. Bem longe dos disciplinados, bem pagos e melhor armados corpos de elite que defendem Khadafi. Basta observar para ver como as milícias armadas, produto de un levantamento popular, são parecidas às que se puderam ver nos primeiros momentos da revolução espanhola contra o golpe militar fascista.
É a partir daí que aparece o factor determinante, a direcção revolucionária que existe ou não antes, mas que não se pode improvisar, inventar, sobre a marcha dos acontecimentos. Como manter as milícias? Como centralizar os esforços de fornecimento militar? Como formar organismos centralizados a nível nacional ante a dispersão local? Como constituir um governo centralizado de toda las zonas libertadas?
Como a realidade é incompatível com o vazio, inicia-se uma luta, repleta de tensões, choques e contradições abertas, entre os distintos sectores sociais e políticos em disputa que se vêm obrigados a resolver todos estes problemas.
Os dados conhecidos indicam que se generalizaram os Concelhos municipais, e começou a coordenação entre eles em algumas zonas. Inicialmente, todos os dados evidenciam um papel relevante da chamada “Coligação revolucionária de 17 de Fevereiro”, cujo porta-voz é Abdelhafed Ghoga, jurista e defensor dos direitos humanos. Há crónicas muito vagas de difícil comprovação que afirmam existirem entre as milícias rebeldes muitos militantes “islamistas e comunistas”.
Acrescenta-se a um panorama de caos nas fileiras da insurreição, produto da falta de uma direcção unificada, a saída massiva da Líbia do que é a componente central da classe trabalhadora líbia, os trabalhadores imigrantes, em especial os egípcios. Numa população de cerca de 6,5 milhões de habitantes, incluindo mais de 1,5 milhões de trabalhadores estrangeiros, estima-se entre um milhão e um milhão e meio as pessoas que saíram da Líbia desde que começou o conflito.
A formação do chamado Concelho Nacional aparece como a resposta “necessária” tanto para “pôr ordem” nas fileiras dos insurrectos como para estabelecer um interlocutor com o regime e com o mundo.
A formação do Conselho Nacional reflecte as tensões internas e os objectivos díspares de seus próprios componentes. As diferenças geracionais e políticas entre as suas componentes são notórias. “O Concelho foi útil para manter a coesão. É normal que no principio existam diferentes pontos de vista. Não é fácil que todos aceitem a autoridade do Concelho”; “O mais difícil é controlar os jovens”, declarava Mohamed Gheriani um dos seus mais importantes porta-vozes.
Destas contradições entre o Concelho Nacional e a base insurrecta dão conta não só as afirmações anteriores. No mesmo dia em que a ONU aprovava a resolução autorizando a intervenção na Líbia, milhares de pessoas manifestavam-se numa praça central de Benghazi para festejar a notícia. As imagens, que eram retransmitidas pela Al Jazira, mostram na praça um enorme cartaz que circulou sob a forma de fotografia, com um lema en inglês: “No foreing intervention, Libyan people can manage it alone” (“Não à intervenção estrangeira, o povo líbio pode fazê-lo sozinho”).
O Concelho Nacional, integrado por 31 membros, na maioria clandestinos, é composto por representantes das várias cidades, por figuras de prestígio na luta pelos direitos democráticos e por um núcleo duro de homens procedentes do regime de Khadafi (e sem notícias da irrelevante e tão citada NFSL). Para citar alguns ex-kadhafistas, cabe mencionar a Abdul Fatah Younis, ex-chefe do Ministério da Governação, que se passou para o lado da sublevação nos primeiros dias da revolução; Ali Aziz Al Issawi, que foi ministro da Economia de Khadafi e se demitiu do posto de embaixador na Índia; o ex-ministro da Justiça Mustafá Abdel Yalil, em 21 de Fevereiro. O Concelho começa assim a ser ocupado por “personalidades respeitadas, intelectuais, e homens de negócios”.
Conseguir que esse Concelho “cumpra a sua missão” não é tarefa fácil, por isso, o líder supremo das forças da NATO, o almirante James Stavridis, afirmou numa intervenção perante o Senado dos EUA que se detectaram “indícios” da presença de elementos da Al Qaeda e do Hezbolá entre as forças rebeldes. “Estamos a analisar bem de perto o conteúdo, a composição e as personalidades dos líderes da oposição”, disse ele. No mesmo sentido, o ministro dos Assuntos Exteriores francês, Alain Juppé, manifestava as suas dúvidas sobre o mesmo Concelho, em cujo reconhecimento havia sido pioneiro o governo gaulês: “O Concelho Nacional de Transição libio (CNT) não tem o monopólio da representação dos rebeldes no seu país”.
O imperialismo apressou-se a reconhecer esse Concelho, em primeiro lugar para o ajudar a pôr “ordem” e disciplina às indisciplinadas milícias e em especial, como eles próprios reconhecem, aos mais jovens. A formação do Concelho Nacional, longe das teorias da conspiração, mostra as contradições internas e a luta pela revolução, entre o carácter objectivo antiditatorial e antiimperialista que expressa o levantamento das massas e a ausência de una direcção revolucionária, o que permite a homens do velho regime e sectores burgueses (“homens de negócios”) situarem-se na liderança para reconduzir esse levantamento para uma transição acordada com o imperialismo e com o que consigam salvar do regime de Khadafi.
Qual é o objectivo da intervenção militar do imperialismo?
Conta-se que quando o governo prussiano pediu ao general Karl von Clausewitz um plano de guerra para enfrentar a França, Clausewitz respondeu: diga-nos qual é o objectivo político e nós trataremos do plano de guerra. Este célebre general prussiano do século XIX, autor do tratado “Sobre a guerra”, foi sempre muito tido em conta por Engels e sobretudo por Lenine. Dele é essa célebre e muito conhecida frase que Lenine repete “a guerra é a continuação da política por outros meios”.
Os governos imperialistas, por mais perversos e canalhas que sejam, estão longe de ser catalogados como idiotas ou acéfalos que não sabem o que fazem. Por isso, o ministro francês da Defesa, Gérard Longuet, fazendo eco das tensões surgidas nas fileiras aliadas, recordava: “Se não há um projecto político não faz sentido intervir”. Qual é então o objectivo político que preside à intervenção? Para os defensores da teoria da conspiração resume-se a pôr um sinal de igual entre esta intervenção e a intervenção no Iraque.
Se o objectivo político é o mesmo que na guerra do Iraque, acabar com Sadam Hussein, ocupar militarmente o Iraque e impor um governo colonial, porque é que a resolução da ONU recusa expressamente a ocupação da Líbia? Porque é que, como disse muito bem a declaração da Corrente Vermelha, “não somente permaneceram impassíveis enquanto o levantamento popular estava sendo arrasado, mas também negaram explicitamente armas quando a resistência as pediu? Porque é que as petrolíferas continuaram a financiar Khadafi? Porque é que, mais surpreendentemente ainda, Obama e Zapatero afirmam taxativamente: “A operação na Líbia não pretende expulsar Khadafi”; “A resolução 1973 do Conselho de Segurança da ONU não pretendia nem pretende a expulsão do coronel Khadafi, o seu objectivo era adverti-lo para deixar de usar as armas contra o seu povo, e que se o não fizesse a comunidade internacional estaria disposta a usar a força para pôr fim aos assassinatos do seu povo” (Zapatero).
Para vermos como são fiéis a esta máxima de Lenine, “a guerra é a continuação da política”, basta observar as operações militares. Desde que começaram, em 19 de Março, as operações da NATO, elas centram-se no ataque aéreo às posições de Khadafi e ao bombardeamento com misseis Tomahawk. Cada bombardeamento permite que as tropas rebeldes avancem, mas assim que cessam os bombardeamentos, as forças de Khadafi recuperara novamente terreno. Se o objectivo é, como no Iraque, acabar rapidamente com Khadafi, ocupar militarmente o país e impor um governo colonial, por que esta forma de intervenção militar que nem acaba com Khadafi nem permite o triunfo dos insurrectos?
Recordemos as máximas de Lenine: “demonstrar a ligação desta guerra com a política precedente”, “explicar a guerra relacionando-a com a política precedente deste ou daquele Estado, desse ou daquele sistema de Estados, destas ou daquelas classes”. Onde estão as análises da crise económica mundial, das divisões interimperialistas pelo controle dos mercados? Onde estão as análises de um imperialismo encravado em duas guerras como as do Iraque e Afeganistão? Os teóricos da conspiração apagam com o cotovelo o que escreveram com a mão apenas umas semanas antes da eclosão do conflito.
Que a intervenção na Líbia está a gerar tensões nas fileiras do imperialismo e destes com países como Rússia e China é sabido em todo o mundo. O chefe dos imperialistas, Obama, foi claro: “Ampliar a nossa missão militar na Líbia para provocar a mudança de regime seria um erro… A aliança ter-se-ia dividido,teríamos de pôr tropas no terreno, os perigos a que teriam de fazer frente os nossos soldados aumentariam assim como a nossa responsabilidade nos acontecimentos seguintes”.
Com uma crise económica mundial que inclui uma redução de gastos militares nos EUA de 55.000 milhões de euros, com duas guerras não solucionadas e uma região inteira sacudida por levantamentos populares, repetir a política do Iraque é um suicídio. A recente reunião do imperialismo em Londres concluiu a dizer que todos querem “a soberania, independência, integridade territorial e unidade nacional líbia”. Sem desconhecer um milésimo da demagogia e dos truques imperialistas, estas são declarações substancialmente diferentes das proferidas na guerra do Iraque.
As resoluções da ONU, a negação em dar armas aos rebeldes, as acções militares da NATO e as declarações do imperialismo, em especial do seu líder máximo, Barack Obama, mostram que o objectivo político da intervenção, como diz a declaração da Corrente Vermelha, é assegurar o controle da zona e impor a “estabilidade” numa área estratégica para os recursos energéticos, porque perante os crescentes levantamentos populares os governos e regimes políticos da zona mostram-se incapazes de manter a estabilidade política.
Diferentemente do Egipto e da Tunísia, não conseguiram um acordo por dentro do regime para desmantelar o levantamento porque na Líbia o levantamento destruiu o estado e a coluna vertebral do mesmo, o exército. Nem Khadafi, apoiado pelos seus mercenários e tropas de elite, nem a direcção da insurreição, que não demonstra controlar a população e ser a direcção incontestável, garantem por si só essa estabilidade; por isso, as acções militares da NATO estão ao serviço de encurralar ambos e forçar um acordo negociado de unidade nacional, uma transição negociada sob a tutela imperialista.
Se a política do imperialismo fosse simplesmente derrubar Khadafi, teria bastado armar desde o primeiro dia a oposição até aos dentes e não dar tréguas com os ataques aéreos para acabar com Khadafi em dois dias sem necessidade de que um só soldado da NATO pisasse o solo da Líbia. Mas, afirmemos uma vez mais, um Concelho Nacional que não demonstrou ser o representante de todos os insurrectos e capaz de controlar os jovens armados não é garantia alguma para o imperialismo.
A proposta de Franco Frattini, ministro dos Assuntos Exteriores italiano, a potência com mais presença na Líbia, é clara: “impulsionar uma reconciliação nacional líbia”. “A solução da crise será política, não militar”, repete o beligerante Sarkozy. Abrir as portas ao exílio de Khadafi, sem lhe pedir contas pelo passado, como fizeram com Ben Ali e Mubarak, é não só a “proposta política” em que aposta o imperialismo, mas também a que se junta o próprio filho de Khadafi e figura central do regime, Saif Al-Islam. A declaração do Concelho Nacional comprometendo-se a respeitar todos os acordos internacionais firmados pela Líbia (o mesmo que fizeram os militares egípcios), o recente discurso de Khadafi afirmando que aceitaria qualquer decisão da União Africana e o envio a Londres de emissários do regime abrem ainda mais a porta a essa negociação que é um “segredo” de polichinelo.
As acções militares da NATO acompanham como a sombra acompanha o corpo a pressão para impor essa política.
Contra o imperialismo e com a revolução ou contra a intervenção para defender Khadafi?
A declaração da Corrente Vermelha afirmava no passado 10 de Março: “Que os povos do mundo se mobilizem contra a intervenção imperialista executada pela NATO, pelo direito à autodeterminação dos povos e contra o regime de Khadafi, com o objectivo de impedir – em primeiro lugar – qualquer apoio directo ou indirecto do Governo espanhol à agressão imperialista.
“Manifestamos o nosso apoio ao levantamento do povo líbio para derrotar o regime de Khadafi, no marco das revoluções dos povos árabes contra os governos pró-imperialistas e corruptos. O armamento dos trabalhadores e das classes populares líbias, e o surgimento de uma direcção política que se oponha firmemente à ingerência das potencias imperialistas e que seja para desenvolver até às suas últimas consequências uma estratégia de insurreição armada contra o regime de Khadafi, são a única garantia de que o povo líbio possa conquistar a total soberania nacional, a democracia, a liberdade e a possibilidade de avançar para o socialismo”.
Os que defendem, como nós, esta posição são chamados “Ni-nis”. Adoptar a definição de um programa de televisão lamentável, um triste reality show dedicado aos jovens que “Não estudam, nem trabalham”, mostra muito pouco respeito, muito pouca imaginação e um nível político lamentável.
Atribuem-nos a defesa da mesma posição dos que na primeira guerra do Iraque diziam “Nem NATO nem Sadam”. Inclusive afirma-se que não somos consequentes com a posição mantida até agora de que nós defendemos um país atacado pelo imperialismo independentemente do regime que esse país tenha. Continuamos a defender firmemente esse mesmo princípio, assim como o fizemos nas guerras do Iraque. Mais ainda quando aqueles que, como eu, têm anos militando na LIT-QI tiveram que aguentar não poucos insultos dos que se calavam e ficaram escandalizados quando, durante a guerra das Malvinas, defendemos a Argentina, em plena ditadura, contra a agressão da Inglaterra.
Surpreende especialmente que muitos dos que com justíssima razão dizem “Nem PSOE, Nem PP” tornem-se agora tão contrários a dizer “Nem, Nem”. Mas na guerra da Líbia quem nos acusa de “Ni-nis” só podem fazê-lo desde um ponto de vista: desconhecer a existência da guerra que precede a intervenção imperialista, desconhecendo o levantamento popular contra Khadafi. Na realidade os “Ni-nis” não existem; dizer “Nem Sadam Nem NATO” quando havia uma guerra de agressão imperialista só podia ser a bandeira do neutralismo frente a essa guerra, isto é, a bandeira da capitulação vergonhosa à agressão imperialista.
Quem diz “NATO não, Fora Khadafi”, longe de qualquer neutralismo, mantém a coerência da nossa posição: estamos contra a intervenção imperialista e a favor de que a insurreição derrote Khadafi. Deixamos claro que estamos contra a intervenção imperialista, mas não somos neutros na guerra civil aberta, queremos que os insurrectos líbios não deixem rasto do regime do pró-imperialista e tirano Khadafi.
O paradoxo do debate é que a posição que agitam contra os “Ni-nis” acaba sendo neutral numa das duas guerras em curso, a guerra civil líbia, e por essa via acabam capitulando completamente ao regime de Khadafi. Pior ainda, mostram uma inconsequência extrema. Se é certo que não há a tal guerra civil como nós afirmamos e se tudo é uma montagem, se aqui não há outra guerra além da agressão imperialista, porque não exigir apoio militar a Khadafi, porque não exigir voluntários e armas para defender a Líbia, a de Khadafi, contra o imperialismo? Porque não exigir de todas as organizações e governos árabes armas e voluntários para ir para a Líbia? Em vez de tudo isso, os “antiimperialistas” declaram-se agora partidários acérrimos da “não ingerência”.
Construir um movimento de massas em apoio às revoluções árabes e contra a intervenção imperialista
Como nos declaramos partidários de organizar um grande movimento de massas contra a intervenção imperialista estamos obrigados a reconhecer a realidade como ela é. Os companheiros que vão com os panfletos a convocar para as manifestações contra a intervenção da NATO nas suas fabricas, nas suas empresas ou a nas mesquitas deparam-se com uma realidade que está a anos-luz dos abundantes comentários de “Kaos en la red” e de algumas reuniões da “vanguarda antiimperialista”. A imensa maioria da classe trabalhadora, incluindo boa parte dos melhores activistas operários, e a imensa maioria da chamada comunidade árabe não estão de facto contra a intervenção da NATO ou têm importantes dúvidas de se esta é o “mal menor”. Pior ainda, há um dado demolidor que deveria fazer reflectir os teóricos da conspiração: o que se passa nos países árabes em que, estando sacudidos por um processo revolucionário em toda a região, não há manifestações de massas contra la intervenção? Por que é que no Líbano, Tunísia e Egipto não vieram milhões à rua para dizer não à intervenção imperialista?
Para os defensores da teoria da conspiração a explicação é simples, os poderosos meios de comunicação mentem, falsificam e confundem, gerando assim um determinado estado de opinião. Mas os meios de comunicação começaram a ser assim agora? Que saibamos sempre foram assim, mentirosos, falsificadores, etc. Como explicar então que milhões de pessoas no mundo vieram para as ruas contra a intervenção no Iraque, que nos países árabes todas e cada uma das intervenções do imperialismo trouxe milhões para as ruas e nesta desta vez é um deserto?
Dizem que as grandes mentiras, para que tenham credibilidade social, necessitam de una dose de verdade. A grande mentira do imperialismo, de que intervém na Líbia para salvar a população civil, assenta numa dose de verdade, a de que Khadafi está reprimindo de forma sanguinária a população que se levantou contra ele. Quando qualquer pessoa do mundo ouviu dizer que Khadafi entraria em Benghazi como Franco entrou em Madrid, acabou tendo a dose definitiva de verdade que fez engolir a grande mentira.
Querer combater as mentiras do imperialismo negando os factos da realidade, essas “doses de verdade”, é a aposta segura para não construir nenhum movimento antiimperialista.
Afirmar que “o que une” é a condenação da intervenção da NATO, que esse deve ser o acordo “mínimo” para impulsionar um movimento contra a guerra, é apostar em não construir esse movimento de protesto contra a intervenção. Porque dizer só “Não à intervenção da NATO”, desconhecendo a guerra civil em curso, desconhecendo a recusa de todos os governos de enviar armas aos insurrectos, é dizer Não à NATO… e que Khadafi arrebente com os insurrectos, é definitivamente o apoio inconfesso a Khadafi. Essa politica é um crime para o processo revolucionário nos países árabes e enche de razão aos que, desgraçadamente, opinam que essa intervenção “é o mal menor”.
Temos que impulsionar um movimento contra a guerra que diga “NATO não, FORA Khadafi”, que grite como outro dia em Madrid “Não à intervenção, sim à revolução”. Há que levar esse debate às empresas, aos sindicatos e especialmente aos trabalhadores árabes imigrantes, para explicar pacientemente que para apoiar os trabalhadores e o povo líbio para que derrotem Khadafi é preciso que sejamos contra a intervenção da NATO e exijamos armas para os insurrectos, como afirma a declaração da Corrente Vermelha.
É preciso manifestar todo apoio e solidariedade aos que pegaram em armas contra Khadafi, e por isso não queremos uma intervenção para substituir uma tirania por outra, pela pior de todas as tiranias, a das grandes potências. Não queremos que a NATO com o regime de Khadafi, ainda que sem ele, e os sectores do Concelho Nacional que vêm desse mesmo regime, roubem ao povo líbio o seu direito à vitória. Não queremos um “novo regime” que continue a espoliar os recursos da Líbia, entregando as riquezas do país às multinacionais; não queremos um novo regime que seguindo as ordens do FMI continue a condenar a juventude ao desemprego e à miséria. Por isso, o levantamento de 17 de Fevereiro só triunfará se for o povo armado a derrotar Khadafi e fechar a porta à NATO.
Seguramente que mais de um “antiimperialista” clamará aos céus a dizer: pedem armas aos governos imperialistas! Não basta isso para provar a capitulação ao imperialismo?
Será preciso recordar-lhes que Ho Chi Min e o Vietmin pediram e receberam armamento do imperialismo norte-americano na sua luta contra os imperialismos francês e japonês e que saibamos não foram acusados por eles de pró-imperialistas. Os partisans italianos e franceses na II Guerra Mundial exigiram várias vezes armamento aos exércitos norte-americano e britânico sem que tenham sido acusados por eles de pró-imperialistas saxões. E não foi uma das grandes reivindicações da República em 1936 o pedido de ajuda militar às potencias imperialistas, os chamados aliados? Não foi sempre um motivo de denúncia o miserável embargo de armas que o governo Blum fez à república e a recusa dos aliados de enviar essas armas?
Em todos os casos citados, pedir armas é uma exigência básica, um direito dos povos defenderem-se dos tiranos, é além disso uma forma directa de desmascarar a demagogia imperialista. Os que falam em defender o povo líbio, porque lhe negam repetidamente o direito a defender-se? Mas é sobretudo a demonstração clara e sincera de que queremos a vitória do povo líbio frente a Khadafi.
Apoiar os insurrectos líbios, exigir armas para a sua defesa, é a maneira de colocar uma barreira entre os jovens armados e a direcção capituladora do Concelho Nacional, é a melhor maneira de fazer a ligação com esses sectores que defendem “Não à intervenção estrangeira, o povo líbio pode fazê-lo só”.
O futuro da Líbia com um novo regime surgido da unidade nacional ou da completa derrota do regime de Khadafi não vai fechar o processo revolucionário. O novo regime terá que responder às reivindicações económicas, sociais e democráticas que estão na base do levantamento que hoje sacode a Líbia e todos os povos árabes. Nenhum governo colonial poderá satisfazer essas reivindicações e isso dá base material à continuidade da luta. Mas os que de forma confessa ou inconfessa se puseram do lado de Khadafi não terão nada que dizer, porque estiveram do lado do tirano que o povo derrubou.
Ángel Luis Parras, de Corrente Vermelha
(1) Fragmentos de textos de Lenine sobre a guerra. As duas citações correspondem a dois artigos: “Sobre a caricatura do marxismo e o ‘economicismo imperialista´ ” (1916) e “A guerra e a revolução” (1917).