Os despedimentos em Cuba e algumas reacções da esquerda portuguesa

Em Agosto deste ano, o dirigente cubano Raúl Castro anunciou o despedimento de mais de 1 milhão de funcionários públicos, isto é, entre 25% a 30% dos trabalhadores do país. Castro justificou a medida como fazendo parte de “importantes decisões que constituem em si mesmas uma mudança estrutural e de conceito com o objectivo de preservar e desenvolver o nosso sistema social e fazê-lo sustentável no futuro” (Granma, 2/8). E acrescentou: “É preciso acabar para sempre com a noção de que Cuba é o único país do mundo em que se pode viver sem trabalhar”.

Na verdade, o que o governo do Partido Comunista está a fazer em Cuba é muito parecido com o que os demais governos capitalistas estão a fazer no mundo inteiro: descarregar a crise económica nos ombros dos trabalhadores, com especial ênfase no funcionalismo público. O trabalhador cubano é dos mais mal pagos do mundo, com salários que variam de 10 a 15 dólares. Por isso, mais de 60% da população depende das remessas enviadas pelos seus familiares que emigraram para o estrangeiro.

O governo do Partido Comunista alega que os trabalhadores despedidos poderão encontrar trabalho em outros sectores ou trabalhar por conta própria, como se fosse possível, com a crise económica existente, ou mesmo sem ela, recolocar cerca de ¼ da população economicamente activa. Além disso, o governo cubano, cientificamente, reduziu o subsídio de desemprego para apenas seis semanas. “Em Janeiro deste ano, o governo cubano anunciou a eliminação do salário desemprego dizendo que em troca ofereceria ‘um trabalho produtivo’. Agora, Raul Castro diz que ‘não se trata de encarregar o Estado de colocar cada um em várias ofertas de trabalho. Os primeiros interessados em encontrar um trabalho socialmente útil devem ser os próprios cidadãos’. Falando sem rodeios: que se virem!” (Correio Internacional, Maio de 2010)

Estado capitalista

Para os que insistem que Cuba continua a ser um Estado socialista, como os partidos comunistas, entre eles o Partido Comunista Português, esta medida deveria servir de lição. Assim como a supressão de 24.700 refeitórios operários nos quais comiam diariamente 3,5 milhões de trabalhadores; ou a crescente falta de moradia e o aumento da desigualdade social. Mas não, continuam em coro a defender o pretenso socialismo cubano e a negar a realidade. Em nota à imprensa de 17 de Setembro, o PCP rejeita a ideia de que vá haver despedimentos em Cuba, mas sim uma “reorientação laboral de trabalhadores para outros postos de trabalho”. Digamos que nem Sócrates teria sido tão criativo.

A seguir, na mesma nota classifica as medidas tomadas – além dos despedimentos, o governo cubano anunciou também a construção de mais 16 campos de golfe com capitais internacionais, o descongelamento da venda de casas a estrangeiros e a redução das retenções bancárias às empresas multinacionais – de “actualização do modelo económico em vigor, num momento em que o mundo é sacudido por uma violenta crise do capitalismo”. E conclui com a tradicional declaração de fé no socialismo cubano e denúncia do bloqueio dos EUA.
De facto, Cuba vem enfrentando graves problemas na sua economia desde 2008 (mas de 2003 a 2008 foi uma das economias que mais cresceram na América Latina) em função da crise capitalista, com a queda das receitas do turismo e do preço do níquel. Mas o problema é mais profundo e começa em 1982, quando o governo cubano começou a abrir as portas ao investimento estrangeiro directo em Cuba e a restaurar o capitalismo no país.

Em Cuba, apesar da propaganda cosmética do socialismo, a maior parte da produção, dos serviços e do turismo são privados, constituindo empresas mistas, em que o capital estrangeiro (espanhol, canadiano, chinês, russo, brasileiro e venezuelano) se associa ao Estado cubano, fornecedor de mão de obra qualificada e super-explorada. “Cuba deixou de ser regida pelo plano de produção central e passou a fazê-lo pelo critério fundamental do mercado (produção para o lucro), ao mesmo tempo em que pôs um fim ao monopólio do comércio exterior.” (CI, Maio de 2010) Isto é, no chamado “socialismo” cubano a propriedade é privada, não há economia planificada nem monopólio do comércio exterior. Que “socialismo” é esse?

Quanto ao bloqueio americano, apresentado como uma das razões centrais a explicar o desastre da economia cubana, a verdade é que este bloqueio é parcial (os EUA já são o quinto sócio comercial de Cuba) e não há qualquer bloqueio por parte das demais potências imperialistas, como as europeias e o Canadá.
“A campanha em ‘defesa de Cuba’ é hoje o apoio incondicional a um governo e a um regime no qual as Forças Armadas dirigem a segurança, controlam o Partido Comunista (PCC) e comandam a economia. Elas concentram sob seu controle o chamado Grupo de Administração Empresarial (GAESA), dirigido por um general, que agrupa os principais sectores estratégicos da economia cubana. Foram os militares que desenvolveram o chamado Sistema de Aperfeiçoamento Empresarial e controlavam, em 2007, as 322 maiores empresas do país, responsáveis por 89% das exportações e 60% do PIB. É sobre essa situação e desde esse regime político que o ‘plano de ajuste’ anunciado por Raúl Castro será aplicado sobre os trabalhadores e o povo cubano” (CI, Maio de 2010).

Ditadura a serviço da restauração

É correcto afirmar, como o faz o coordenador do Bloco de Esquerda, Francisco Louçã, em artigo de opinião sobre o anúncio dos despedimentos em Cuba, publicado a 26 de Setembro no esquerda.net, que “Em todo o lugar, em todo o tempo, são precisos sindicatos que falem livremente pelos trabalhadores e que lutem pelos seus interesses, sem se subordinar aos Estados”. É verdade que tanto no Estados burgueses como nos Estados operários é preciso lutar pela democracia operária.

Em Cuba, as liberdades democráticas conquistadas com a derrubada revolucionária do regime de Batista foram suprimidas com a consolidação do estado operário vinculado à ex-União Soviética. E essa ausência de democracia operária mantém-se desde então. O que mudou em Cuba não foi o regime ditatorial que imperava na ilha, mas o Estado, que de operário se tornou capitalista.
A restauração capitalista em Cuba dá-se, como nos demais ex-estados operários burocratizados, com a inestimável ajuda de um regime ditatorial, onde não existe direito de greve, nem liberdade sindical e política. Os burocratas, civis e militares, são o candidatos a burgueses, assim como ocorreu na China, Rússia, etc. Os que criticam o regime são chamados de contra-revolucionários pelos mesmo que, desde o governo, destruíram as conquistas da revolução.

Por outro lado, a ausência de liberdade sindical e política fragiliza e dificulta a reacção dos trabalhadores cubanos às medidas de austeridade na ilha e, neste aspecto, estão em desvantagem frente aos seus companheiros de classe dos regimes democráticos.

Portanto, resulta incompreensível a frase, do mesmo artigo, que diz: “Anos depois, Cuba vive a dificuldade das escolhas. E estes episódios recentes sublinham essa dificuldade”. A que escolhas o artigo se refere? À escolha da expropriação da burguesia e da construção de um Estado operário? À escolha de restaurar o capitalismo? À escolha de impedir a democracia operária?

A seguir, o mesmo artigo afirma que “É compreensível que um Estado não possa ter todos os trabalhadores como funcionários públicos”. Mas a que Estado o artigo se refere? Se for a um Estado operário, em que não haja propriedade privada dos meios de produção, todos os trabalhadores serão “funcionários públicos”, como, aliás, acontecia em Cuba há até bem pouco tempo. E um Estado operário tem o dever de manter o pleno emprego ou, em caso de dificuldades, falar a verdade aos trabalhadores. Mas, se for a um Estado capitalista, também não caberia ao coordenador político do BE este tipo de “compreensão”.

Resulta, sim, completamente impossível, a partir desse artigo, desvendar a sua opinião sobre o carácter do Estado cubano hoje. E esta não é uma questão de menor importância, pelo contrário, é fundamental. Não para justificar a falta de democracia em Cuba, como faz o PCP, mas para demonstrar que a ausência de democracia operária nos Estados operários, isto é, a sua burocratização, denunciada por Trotsky e pelos trotskistas, conduzem, inevitavelmente à sua destruição.

Cristina Portella

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