Réquiem para um desertor

O julgamento do “mensalão” [nome pelo qual ficou conhecido o esquema de compra de votos de parlamentares montado durante o governo do ex-presidente brasileiro Lula da Silva]está a chegar ao fim. O resultado final será a condenação de quase toda a antiga cúpula política do PT bem como de várias de suas figuras públicas. Exceção à regra, Lula.

O motivo da condenação parece legítimo: corrupção ativa, compra de votos no parlamento, desvio de dinheiro público e um longo “etcetara”. Uma boa parte da grande imprensa apresenta as condenações como um novo momento da política brasileira; finalmente, dizem, os casos de corrupção são julgados e os corruptos condenados, podendo inclusive ir para a cadeia.

Os juízes do Supremo Tribunal Federal (STF) que estão à frente do julgamento são apresentados como heróis que enfrentam a corrupção e os poderosos numa tentativa de “passar o Brasil a limpo”.

No entanto, parece necessário fazer uma análise mais profunda de todo o processo e de seus condenados. Não apenas de sua trajetória política, mas inclusive a serviço do quê eles corromperam ou foram corrompidos.

O mais notório dos condenados, José Dirceu, tem uma das mais notáveis biografias políticas do Brasil. Líder estudantil no começo da ditadura, preso no congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) de Ibiúna [histórico congresso realizado pouco antes do endurecimento da ditadura militar no Brasil e que terminou com os cerca de 1000 participantes presos pelo DOPS, a polícia política], trocado pelo embaixador Charles Burke Elbrick [sequestrado por organizações de esquerda que optaram pela luta armada] em setembro de 1969, exilado em Cuba, fez treinamento guerrilheiro e virou dirigente da fração esquerdista da Ação Libertadora Nacional (ALN), conhecida como Grupo Primavera, que preconizava a volta para o Brasil e a continuidade das ações militares contra a ditadura.

Desapareceu do cenário político no meado dos anos 70; escondeu-se no interior do Paraná, onde levou uma vida clandestina na pequena cidade de Cruzeiro do Oeste. Incólume, nem mesmo a sua esposa sabia sua verdadeira identidade. Com o fim da ditadura e a amnistia voltou à cena para ajudar a fundar o Partido dos Trabalhadores (PT).

Neste partido dirigirá a sua fração mais à direita, a Articulação, e será sempre o homem que busca um programa moderado e que dialogue com setores burgueses. Vai ser José Dirceu quem perseguirá até à expulsão a Convergência Socialista; será o mesmo José Dirceu quem defenderá, à época do plano cruzado de José Sarney, que o PT deve ser a ala esquerda dos “fiscais do Sarney”. Será José Dirceu que lutará até conseguir a frente com José de Alencar para as eleições de 2002. No poder será o ministro da Casa Civil e, segundo alguns, a eminência parda do governo Lula.

Se alguém pode ganhar o prémio por domesticar o PT, transformá-lo em partido da ordem e em baluarte do regime democrático burguês, esse alguém, sem sombra de duvida, é José Dirceu. Mais incrível ainda, uma das mais importantes compras de votos feita pelo esquema de José Dirceu foi justamente para aprovar a reforma da Segurança Social, um ataque brutal contra os trabalhadores e amplamente apoiado pela burguesia e a sua media.

Por outro lado não é necessário ter muita inteligência nem ser um “expert” em política para se dar conta que somente um lado está a ser julgado. O PSDB e o PMDB têm muito mais culpa no cartório ou, pelo menos, tanta culpa quanto o PT e os seus ex-dirigentes agora condenados. A pergunta é por quê?

A burguesia não perdoa nem esquece

A condenação de Zé Dirceu não tem a ver com o seu presente, pois atualmente poucos políticos fizeram tanto pela estabilidade da dominação burguesa e pela defesa do status quo vigente.

Também é indiscutível que Zé Dirceu não é mais corrupto que a maioria dos grandes políticos burgueses tradicionais. Falcatruas como a das privatizações, da reeleição de FHC [ex-presidente Fernando Henrique Cardoso], entre outras, deixam claro que o pudor da burguesia em relação à roubalheira do Estado é nula ou muito próxima a isso.

No entanto, Zé Dirceu e uma parte de seus comparsas no “mensalão” têm um passado. E é isso que é necessário matar. Diferentemente dos demais corruptos do país, públicos e privados, ativos e passivos, José Dirceu é uma nota dissonante na política brasileira, não pelo seu presente, integrado à ordem, mas por seu passado de dirigente estudantil, líder guerrilheiro e organizador de um partido, que em suas origens esteve contra a ordem vigente.

A burguesia, como todos os setores dirigentes, prefere sempre corromper e cooptar os seus inimigos a liquidá-los. Um ex-inimigo domesticado é sempre um troféu melhor que um ex-inimigo morto. Na política essa verdade tem, digamos, uma dimensão ainda mais ampla. Corromper e cooptar um dirigente inimigo significa não apenas ganhar um novo “aliado” e enfraquecer a parte contrária, significa também desmoralizar as “tropas” inimigas.

Quando se trata de um embate onde não são meramente setores distintos de uma mesma classe que se enfrentam, mas onde os “inimigos” representam, ainda que apenas no imaginário das classes, a classes opostas, esta conquista, o ato de cooptar ou corromper a um dirigente inimigo, toma uma dimensão ainda maior.

Diferentemente da burguesia, o proletariado forma muito menos quadros e dirigentes. Isso é inevitável na sociedade capitalista. A classe trabalhadora é embrutecida permanentemente com drogas, religião, novelas, publicações de baixa qualidade, todo tipo de pornografia, etc. Por outro lado a qualidade do ensino que lhe é oferecida é cada vez mais baixa e tecnocrata. Para cada quadro formado na sociedade burguesa que se passa para ou tem origem no proletariado deve haver centenas que são de origem burguesa e continuarão a servir à burguesia.

O peso de um quadro operário, dedicado à causa da classe trabalhadora, dentro do movimento operário é muito superior ao peso de um quadro burguês dedicado à causa burguesa. A escassez também é um elemento da valorização de qualquer produto. Quando um destes quadros dirigentes cai, é inevitável que o lado oposto se regozije. Mas é necessário não criar mitos. Um morto sempre é um símbolo, o perseguido de hoje será o mártir inspirador de amanhã.

José Dirceu foi, pois, o desertor perfeito. Passou-se para o lado do inimigo, apoiou coisas tais como a contra-reforma da previdência, perseguiu a esquerda de seu próprio partido e, finalmente, meteu-se num dos mais asquerosos processos de corrupção da história do país. O traidor prestou este último serviço à burguesia, o de desmoralizar o seu próprio exército antes da já inevitável queda. José Dirceu cumpriu o triste papel de confirmar aos olhos da classe trabalhadora a máxima, que a burguesia se esforça para legitimar, de que “são todos iguais” e de que no fim das contas todos os políticos só pensam em si mesmos.

A queda de José Dirceu inevitavelmente arrasta consigo uma parte das melhores esperanças de classe trabalhadora: a de que seus representantes fariam outro tipo de política.

Sem romper com a burguesia não há solução para a corrupção

O degradante espetáculo público do julgamento do STF, que já foi chamado com razão de BBB [Big Brother Brasil], e junto com ele a ridícula caricatura dos juízes togados tentando colocar-se acima do lamaçal da sociedade burguesa entorpecerá mais de um coração nestes dias.

Já há quem fale que Joaquim Barbosa [relator do “mensalão” e futuro presidente do STF] deveria ser candidato a presidente da República. O sistema se recria todos os dias. Os “mensaleiros” [os que participaram do “mensalão”] do PT ajudaram a que este triste espetáculo pudesse ser representado sem que a burguesia precisasse cortar mais profundamente entre seus quadros prediletos.

No entanto, para além dos efeitos imediatos, é bom que a esquerda, em especial aquela que se julga revolucionária, e mais ainda a nova esquerda “post” PT, tire lições da adaptação parlamentar e do vale tudo eleitoral.

Acreditar que é possível ganhar eleições e governar junto com a burguesia e não ver que isso levará inevitavelmente a usar e se misturar com os seus métodos de fazer política, leia-se corrupção, chantagem e roubo, é no mínimo ingenuidade. E como dizia Lenine, “em política ingenuidade é crime”.

Jerônimo Castro, de Contagem (Minas Gerais/Brasil)

Outubro de 2012

Nota: Depois deste artigo estar escrito, José Dirceu foi condenado pelo STF e sentenciado a 10 anos e 10 meses de prisão pelos crimes de formação de quadrilha e corrupção ativa. Caso a pena seja mantida, pois ainda poderá haver apelações, o antigo chefe da Casa Civil na presidência de Lula da Silva terá de cumprir parte dela em regime fechado.

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