Sete anos depois, as figuras mais tenebrosas que alimentaram os noticiários brasileiros por meses a fio ressurgem das cinzas. O julgamento do “mensalão” no Supremo Tribunal Federal (STF), após sucessivos protelamentos, teve início em 2 de agosto e vem servindo para rememorar o escândalo político que balançou o governo Lula, derrubou todo o primeiro escalão do PT, redefiniu alianças e entrou para a história do Brasil como o maior caso de corrupção que se tem notícia.
Mas o que foi o “mensalão”? Um escândalo inventado pela imprensa “golpista” a fim de tirar Lula do poder ou um esquema corrupto circunscrito ao PT e seus então dirigentes, como mostram parte da media e a oposição de direita?
Os meses que abalaram uma República
O escândalo teve início em maio de 2005, como um caso de corrupção localizado nos Correios. A divulgação de um vídeo no qual o diretor da estatal Maurício Marinho, apadrinhado do então deputado Roberto Jefferson (PTB), aparece cobrando propina a um empresário expôs um esquema de beneficiamento de empresas em licitações fraudadas e desvio de verbas. O caso, porém, explodiu com uma entrevista de Jefferson ao jornal Folha de S. Paulo, em junho do mesmo ano, na qual o presidente do PTB (um partido de direita tradicional) descreve um esquema de compra de votos parlamentares.
O PTB já era base do governo Lula e indicava os nomes para as diretorias dos Correios. A entrevista de Jefferson teria sido uma resposta a fim de tirar o foco de seu partido. É pouco provável, porém, que o falastrão deputado tivesse consciência que aquilo desataria o tsunami de denúncias e revelações quase diárias que se seguiriam nas semanas seguintes.
Foi-se revelando então o intrincado esquema do “valerioduto”, o mecanismo comandado pelo publicitário Marcos Valério para irrigar as campanhas eleitorais do PT e aliados e ainda alimentar o “mensalão”. O empresário que iria virar figura chave do escândalo utilizaria as suas empresas para, por meio de contratos com estatais como o Banco do Brasil, desviar recursos públicos a fim de financiar o Partido dos Trabalhadores e aliados. O publicitário teria ainda intermediado empréstimos milionários dos bancos BMG e Rural ao PT.
O tesoureiro do PT Delúbio Soares seria o responsável financeiro pelo esquema, enquanto o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, teria o comando político do “mensalão”. Segundo a denúncia apresentada ao STF, os dirigentes petistas Sílvio Pereira e José Genoíno também dividiam as responsabilidades do esquema. Relatos de vultosos saques, dinheiro em malas e a insólita prisão de um assessor do deputado irmão de Genoíno recheavam as histórias do “mensalão”.
Um mês depois de desatado o escândalo, com a criação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Correios e o aprofundamento da crise, o então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, construiu a tese que até hoje dá base à defesa dos réus e à versão do PT para os fatos revelados em 2005. Tudo se resumiria a um “caixa 2”, ou “recursos não contabilizados”, prática que todo partido faria e que, portanto, não seria tão grave assim.
Tal argumento, porém, não explica a coincidência de saques de R$ 6,4 milhões das contas de Marcos Valério ao mesmo tempo em que parlamentares trocavam de partido para se integrar a siglas da base aliada como o PL (que virou PR), PTB, PP e ao próprio PT. Também não explica a coincidência de saques do “valerioduto” igualmente milionários e votações polémicas na Câmara dos Deputados em 2003, como a MP (medida provisória) que liberou o plantio dos transgénicos e a Lei das Falências, articulada ainda durante o governo FHC e sugerida pelo FMI, assim como a reforma da Previdência que atacou a aposentadoria do setor público.
Os indícios, portanto, são mais que suficientes para mostrar que a tríade Marcos Valério, José Dirceu e Delúbio Soares tratava bem mais que gastos de campanha eleitoral. Havia de tudo, e inclusive a “mesada” para costurar o voto dos aliados, o “mensalão”.
Golpe das elites?
O escândalo foi gestado e a sua denúncia partiu da própria base do governo. Foi, obviamente, explorado politicamente pela oposição de direita, como o PSDB, que tinha como estratégia fragilizar o governo Lula para capitalizar nas eleições de 2006.
Em determinado momento da CPI, porém, ao perceber que o aprofundamento das investigações poderia incriminar bem mais gente que a direção do PT, a oposição pisou no freio. A cassação de três deputados (Roberto Jefferson, José Dirceu e Valdemar da Costa Neto) foi o preço para sinalizar à opinião pública que o caso estava sendo resolvido e que os políticos haviam “cortado na carne”. Mas ninguém foi preso, Lula nem foi questionado se de fato sabia do esquema e, aos poucos, o escândalo foi sendo jogado aos rodapés dos jornais.
Com o passar dos meses, a base do governo foi se recompondo e o crescimento económico, por sua vez, deu novo fôlego a Lula, que se reelegeu sem maiores problemas em cima de Geraldo Alckmin em 2006.
O que esperar do julgamento?
O processo enviado pela Procuradoria Geral da República ao STF ainda em 2006 tem algo como cinquenta mil páginas e cita 38 réus acusados por crimes como corrupção (ativa e passiva), lavagem de dinheiro, evasão de divisas e formação de quadrilha. Qual o significado desse julgamento, que ocorre quase uma década depois do escândalo?
Ao que tudo indica, estamos diante do oposto da máxima que a Justiça “tarda, mas não falha”. O tão aguardado julgamento do “mensalão” será o coroar de uma “pizza” que está assando há sete anos. Quando o escândalo veio à tona estávamos diante de um esquema de corrupção cujo comando era operado pela Casa Civil, o segundo nome da República após o presidente, ou seja, atingia diretamente as instituições.
Os nomes que serão julgados nesse dia 2 de agosto, ainda que permaneçam influentes, como Zé Dirceu, que mantém a sua influência sobre entidades como a CUT e a UNE, já não fazem parte do primeiro escalão do governo. Dirceu, por exemplo, vive hoje como lobista de bilionários, como o mexicano Ricardo Salinas, junto a governos como o Brasil e Venezuela.
E, mesmo assim, nada garante que alguém seja de fato punido. Nada menos que oito ministros do STF foram nomeados por Lula ou pela presidente Dilma Roussef. O caso do ministro Dias Toffoli é um verdadeiro acinte. Mesmo tendo sido advogado do PT por anos, chegando a trabalhar na Casa Civil sob o comando de Zé Dirceu, o ministro não se declarou impedido de julgar o “mensalão”.
E o chamado “mensalão mineiro”, que atinge diretamente o PSDB, por sua vez, não tem nem data para ser julgado.
Herança maldita
A figura paradigmática de Marcos Valério pode ser tomada para explicar o “mensalão” no governo Lula. Mais do que uma “invenção” da imprensa ou da direita, o “mensalão” foi a apropriação pelo Partido dos Trabalhadores dos mesmos métodos utilizados pelos seus antecessores. Não é à toa que o publicitário tenha prestado os seus serviços aos tucanos em Minas Gerais antes de oferecê-los aos petistas. O PT, ao assumir a política e o programa da direita, herda também os seus esquemas corruptos.
Já a oposição de direita, que tenta se aproveitar eleitoralmente do escândalo, não tem qualquer autoridade para isso. A recente cassação do senador Demóstenes Torres (ex-DEM), um dos principais paladinos da “ética na política”, mostrou o grau de desfaçatez e hipocrisia desses partidos. Além de Cachoeira e do próprio “mensalã” mineiro, o PSDB protagonizou a “privataria tucana” e o escândalo da compra de votos para a reeleição de Fernando Henrique Cardoso. Por isso, utilizam o “mensalão” para tirar o foco de si próprios e da CPI do Cachoeira.
Prisão e confisco dos bens
Num momento em que as universidades federais vivem uma das maiores greves de sua história e setores como os metalúrgicos de São José dos Campos (SP) lutam por seus empregos, a UNE e a CUT ameaçam ir às ruas em defesa dos “mensaleiros”, a exemplo do que fizeram em 2005. O argumento mais uma vez será o surrado “golpe das elites”. Resta saber se terão a coragem de repetir o gesto.
Estima-se que o “mensalão” tenha desviado R$ 101 milhões dos recursos públicos, a fim de, entre outras coisas, aprovar medidas contra a população e os trabalhadores, como foi o caso da reforma da Previdência. O programa do PSTU para combater a corrupção é a prisão e o confisco dos bens de corruptos e corruptores. Com o “mensalão” não é diferente.
Diego Cruz, do Opinião Socialista (PSTU/Brasil)