No dia 25 de Abril, quando o povo português comemorou 37 anos da revolução que derrubou a ditadura do Estado Novo, o povo árabe continuava a sua revolução na Tunísia, no Egipto, no Bahrein, no Iémen, na Líbia e na Síria (foto). Neste último país, a violenta repressão do ditador Bashar al-Assad já matou 350 pessoas. No dia 25 de Abril, tropas e tanques entraram na cidade de Deraa e abriram fogo sobre a população. A imprensa denunciou também que as cidades de Damasco e Durma estavam a ser invadidas pelas forças militares do regime. Esse genocídio tem de acabar! Pela ruptura das relações diplomáticas e comerciais com a Síria! Toda solidariedade com o povo sírio! Fora Assad e o seu governo assassino! A seguir, reproduzimos alguns artigos sobre a Revolução Árabe, o seu desenvolvimento e as polémicas que está a provocar na Esquerda:
Líbia e Síria: um duro debate divide a esquerda
Como acontece com frequência, a revolução árabe em curso está dividindo águas na esquerda em todo o mundo. Esta experiência vai se incorporar ao aprendizado que uma revolução sempre proporciona.
Por outro lado, os activistas têm a possibilidade de testar a resposta que cada uma das organizações de esquerda dá a essas revoluções e de tirar suas próprias conclusões. O duro debate actual aponta para novas divisões e reorganizações em todo o mundo.
Trata-se de um processo revolucionário de conjunto, que tem na sua origem o sofrimento dos trabalhadores explorados selvagemente. A crise económica mundial amplia o desemprego e produz aumentos nos preços dos géneros de primeira necessidade, gerando explosões nos elos mais frágeis do capital. O outro factor decisivo é o levante dessas massas enfurecidas contra ditaduras brutais que dominam esses países há décadas.
Não há dúvidas de que se trata de uma revolução no sentido mais pleno da palavra. Um momento particular da história em que as massas resolvem tomar em suas mãos os destinos de seus países. Pessoas que se dedicavam a tentar sobreviver, muitas vezes sem qualquer participação política prévia, transformam-se em grandes agitadores e organizadores, em lideranças populares. Algumas vezes, em milicianos de armas nas mãos, dispostas a arriscar suas vidas para mudar o mundo.
Existe ou não uma revolução árabe?
A revolução árabe espantou e colocou na defensiva em um primeiro momento os governos imperialistas. Seus aliados ditadores estavam em xeque, e não havia nenhum plano alternativo. Foi assim com o ditador Ben Ali na Tunísia e mais ainda com Mubarak no Egipto, derrubados em Janeiro e Fevereiro últimos. Obama teve de se adequar, apostando nos militares que assumiram o governo no Egito depois da queda de Mubarak.
Foi a selvajaria da repressão das tropas de Kadafi que causou a guerra civil na Líbia. Em Benghazi, dezenas de milhares de pessoas enfrentaram as tropas, mesmo não tendo armas. Morriam centenas e outros milhares iam para a luta. Até que as tropas se dividiram, oficiais desertaram, a população teve acesso ao arsenal local e se armou. Começava a guerra civil.
Quando a revolução árabe tocou os territórios líbio e sírio, foi a vez dos governos “de esquerda” da Venezuela, Cuba e Nicarágua ficarem na defensiva. A corrente castro-chavista – a mais legítima expressão do reformismo estalinista nos dias de hoje – passou a tentar separar a reacção das massas nesses países do restante da revolução árabe.
A heróica acção das massas na revolução árabe é reconhecida como tal por esses estalinistas até as fronteiras líbias e sírias. Mas nesses países se transformava misteriosamente em uma conspiração imperialista ou monárquica para “retomar o petróleo”. É extremamente educativo que os activistas de todo o mundo estudem os textos desses estalinistas. Nenhum deles consegue escapar desses exercícios de acrobacia.
Aqui se revive uma característica típica do estalinismo: a utilização ampla e consciente de mentiras e calúnias. Em um passe de mágica escondem a revolução e mostram uma conspiração da CIA.
Alguns deles chegam a negar a existência de genocídio por Kadafi, dizendo que é tudo “invenção da media”. O próprio Kadafi, no entanto, para tentar novamente o apoio dos governos imperialistas, comparou suas tropas com a acção de Israel contra os palestinos: “Mesmo os israelitas em Gaza tiveram de recorrer aos blindados para combater tais extremistas. Connosco é mesma coisa” (France 24, 7 Março 2011).
A imagem de um Kadafi como um lutador antiimperialista é mais uma farsa consciente do estalinismo. Usam o passado nacionalista do ditador líbio para justificar o presente. Na década de 90, Kadafi entregou o petróleo de novo para as multinacionais. A Exxon Mobil (EUA), British Petroleum, ENI (Itália), Total (França), Royal Dutch Shell controlam a produção e exportação de petróleo. Mesmo um defensor de Kadafi como James Petras é obrigado a dizer: “As maiores companhias de petróleo estão mais presentes na Líbia do que na maioria das regiões produtoras de petróleo de todo o mundo”.
Infelizmente para os castro-chavistas, o heroísmo dos egípcios na Praça Tahrir é o mesmo que nas ruas de Benghazi na Líbia ou de Deraa na Síria. Os motivos que movem os jovens desempregados e sem perspectivas nesses países são os mesmos.
O imperialismo retoma a ofensiva
A intervenção militar do imperialismo trouxe mais confusão para a discussão. A invasão imperialista é uma grande ameaça para a revolução árabe. Além de seu poderio militar, ainda vem disfarçada de “apoio” contra Kadafi, o que gera esperanças, em particular nas cidades ameaçadas pelas forças do ditador.
Os governos dos EUA, França, Inglaterra que estão à frente da invasão querem estabelecer um controle directo sobre a região. Kadafi já não oferece nenhuma garantia. Mesmo que ganhasse a guerra, não conseguiria reestabilizar o país, por ter uma base social muito reduzida. A imensa maioria do povo líbio apoia a rebelião militar e isso levaria provavelmente a uma guerrilha de massas.
Os estalinistas passaram a justificar o apoio a Kadafi como a única forma de combater a agressão imperialista.
Na verdade, aconteceu o oposto: o ditador líbio possibilitou que o imperialismo deixasse a situação defensiva em que estava na revolução árabe para assumir uma contra-ofensiva política e militar. De aliados das ditaduras em xeque passou a ser o “defensor dos direitos humanos” ameaçados por Kadafi.
As contradições no campo da revolução na Líbia entre o movimento revolucionário e suas direcções são semelhantes às do restante do mundo árabe. No Egipto, muitos dos dirigentes mais reconhecidos, como El Baradei, são figuras claramente pró-imperialistas. A Junta Militar actual é composta por oficiais formados e pagos pelo governo dos EUA. Nem por isso se viu Castro e Chávez repudiarem as mobilizações de centenas de milhares de pessoas que derrubaram Mubarak.
Não se pode confundir uma revolução com seus dirigentes. Certo? Sim, mas para o castro-chavismo isso só é certo para o Egipto, mas não para a Líbia. Ali as posições pró-imperialistas agrupadas no Conselho Nacional Líbio são suficientes para eles desqualificarem a própria revolução.
Para nós, é fundamental estar no campo da revolução contra Kadafi e lutar contra sua direcção pró-imperialista.
Frente a essa invasão, seria necessária uma ampla unidade de ação contra o imperialismo. O que impede essa unidade é o próprio Kadafi, que gerou o levante contra ele e continua a guerra civil contra o povo líbio. Por isso, seguem existindo duas guerras.
Um sector da esquerda apoia a intervenção imperialista
Como se não bastassem todas as lições da história, o passado recente das intervenções militares imperialistas “humanitárias” deveria servir para lembrar que estamos perante o braço armado da contra-revolução.
A invasão do Afeganistão também foi justificada como uma necessidade “humanitária”, devido aos desastres dos talibãs. A do Iraque, para acabar com armas de destruição em massa de Saddam Hussein. Tanto uma como a outra foram realizadas para controlar política e militarmente a região e se utilizam dos mesmos métodos bárbaros que antes denunciavam. A invasão de Kosovo, também “humanitária”, terminou com a imposição da maior base militar dos EUA na Europa, Camp Bondsteel.
Infelizmente, não é isso o que uma parte da “esquerda” pensa.
Ignacio Ramonet, editor do jornal Le Monde Diplomatique e um dos animadores do Fórum Social Mundial, declarou : “Nesse momento, a ONU constitui a única fonte de legalidade internacional. Por isso, e contraditoriamente às guerras em Kosovo e no Iraque, a intervenção actual na Líbia é legal, segundo o direito internacional; legítima, segundo os princípios de solidariedade humanitária; e desejável , para a fraternidade que une povos na luta pela liberdade” (LMD, Abril 2011, pg32).
Gilberto Achcar, um intelectual de prestígio ligado ao SU, saiu em defesa da acção do imperialismo em um recente artigo: “Nessas condições e na falta de qualquer outra solução plausível, era moral e politicamente um erro, por parte da esquerda, opor-se à zona de exclusão aérea”. (Um debate legítimo e necessário desde uma perspectiva antiimperialista).
Deveria ser óbvio, mas nesses tempos de retrocesso ideológico não é. Se a guerra é a extensão da política por outros meios; ou o imperialismo transformou-se em um sistema humanitário ou o apoio a essa invasão é uma aberração. A acção militar do imperialismo é uma extensão de sua política de controle económico e político da região. Esse sector da “esquerda” está legitimando a tentativa do imperialismo de sair da defensiva na revolução árabe e reconstruir seu domínio. Estão simplesmente apoiando a outra face da contra-revolução.
Qualquer ideia de “unidade de acção” com as forças da NATO contra Kadafi vai se virar violentamente contra a continuidade da revolução. Uma possível vitória do imperialismo levará à criação de uma zona sob controle da ONU na região, com uma base militar do imperialismo, à semelhança de Kosovo. Ou à divisão da Líbia, com a imposição militar de um enclave militar imperialista no meio.
Se, por um lado, a corrente castro-chavista apoia Kadafi e Assad, toda essa parte da “esquerda” defende a intervenção imperialista. Interessante como esses dois sectores, que estiveram unidos nos Foruns Sociais Mundiais, dividem-se agora no apoio a dois blocos burgueses (Kadafi e Assad de um lado e o imperialismo de outro).
Nenhum deles se orienta por um critério básico, de classe. É preciso estar junto ao processo da revolução, junto às massas árabes (o que inclui o povo líbio e sírio, rebelados contra as ditaduras nesses países), lutando contra suas direcções burguesas e pró-imperialistas. É preciso lutar contra a intervenção militar do imperialismo, que também quer derrotar a revolução. Por isso falamos de uma revolução e duas guerras na Líbia: uma guerra civil contra Kadafi e outra contra a invasão do imperialismo.
O povo sírio se levanta… e causa outra crise
A Síria é um pequeno país, que tem sua economia baseada na agricultura e na produção de petróleo. Mesmo não sendo um grande exportador, esse é um dos factores centrais da economia, gerando 50% das receitas de exportação do país. É governada há 41 anos por uma ditadura da família Assad. Ali se repete a história de um movimento nacionalista burguês que cumpriu um papel relativamente progressista no início e depois girou à direita e se entregou ao imperialismo.
O partido Baath, nacionalista burguês, tomou o poder em 1963. Hafez Assad – pai do actual presidente – passou a dirigir o país com mão de ferro em 1970. No início estatizou boa parte das empresas lucrativas, incluindo as petrolíferas.
Mas sempre foi uma ditadura sanguinária. Em 1982, reprimiu duramente a mobilização de Amah, com 25 a 30 mil mortos. Um massacre.
Na década de 90 acompanhou o giro à direita de Kadafi e Sadat. Entregou novamente o petróleo para as multinacionais. Hoje, multinacionais petrolíferas como a Shell, Total (França), CNPC, Gulfsands Petroleum (EUA), Tatneft e ONGC Videsh controlam a principal produção do país. A norte americana ConocoPhilips explora o gás.
No ano 2000, Hafez Assad morreu. Para demonstrar o carácter ditatorial de seu governo, o escolhido para a sucessão foi nada menos que seu filho, Bashar Assad. Nenhuma surpresa, se lembrarmos que Mubarak e Kadafi preparavam seus filhos para sucedê-los. Trata-se de ditaduras que impõem um estilo quase monárquico de funcionamento.
Não é por acaso que existe uma sincronia das lutas na Síria e no restante do mundo árabe. A imposição do neoliberalismo no país pela ditadura dos Assad ampliou a miséria das massas, agora agravada pela crise económica e aumento dos preços dos alimentos. O ódio acumulado nas massas em quarenta anos de ditadura é o mesmo que existia contra Mubarak.
As mobilizações começaram em Fevereiro, em apoio às lutas do Egipto. Em Março, na cidade de Deraa, uma mobilização pacífica foi duramente reprimida pela ditadura, causando duas mortes. A reacção das massas foi forte: novas mobilizações tomaram a cidade e incendiaram o palácio da justiça.
A ditadura reagiu com mais violência, massacrando mobilizações pacíficas. Já existem mais de 300 mortos no país.
Nesse momento, a sublevação na Síria está se ampliando. Recentemente, ocupou o centro da terceira cidade do país, enfrentando a repressão. Pode ser que também estenda para o terreno militar, repetindo a experiência da Líbia e de uma nova guerra civil.
Aqui as máscaras caem mais uma vez. Qual é a posição de Chávez sobre a Síria? Aqui não há intervenção militar da NATO. Existe a luta de um povo rebelado contra uma ditadura que entregou o país ao imperialismo, exactamente como no início do processo líbio.
Chávez declarou: “Já começou o ataque contra a Síria, já começaram os movimentos de supostos protestos pacíficos (…) e já estão acusando o presidente de matar seu povo”.
Não satisfeito, ainda classificou o genocida Assad de “líder árabe socialista, humanista, irmão, com uma grande sensibilidade humana”.
Ou seja, para Chávez, o genocida Assad é um “humanista”. Vai ficar gravado na história que a corrente castro-chavista ajudou a legitimar o massacre de populações rebeladas contra ditaduras. No mundo árabe, essas posições se chocam com a enorme simpatia despertada pela revolução. Não é por acaso que não existem mobilizações de apoio a Kadafi ou a Assad nos países árabes. No restante do mundo, apesar da confusão causada pela intervenção imperialista, as posições de Chávez e Castro também não conseguem se impor junto à vanguarda.
Não é por acaso que vários intelectuais castro-chavistas , como Santiago Alba Rico, estão assumindo publicamente essa polémica. Pode ser que seja um claro sinal de decadência dessas correntes.
Eduardo Almeida Neto (PSTU/Brasil)
Um voto a favor da intervenção imperialista na Líbia
No dia 10 de Março, foi aprovada no Parlamento Europeu uma resolução que abriu as portas para a intervenção imperialista na Líbia. Miguel Portas, Marisa Matias e Rui Tavares, os três eurodeputados do Bloco de Esquerda, votaram, juntamente com Vital Moreira (PS) e Paulo Rangel (PSD), a favor dessa resolução.
Esse voto, em nosso entender, rompe com o programa eleitoral do Bloco de Esquerda, que se opõe a intervenções internacionais, mesmo quando mascaradas de ajuda humanitária, como é o caso.
A resolução, apesar de não dizer explicitamente que haverá uma intervenção militar, não deixa outra conclusão que não essa. Além de vários pontos mais ou menos ambíguos, a resolução avança a passos certos para a intervenção militar, sendo o ponto 9 esclarecedor: “Solicita à UE e à comunidade internacional que tomem todas as medidas possíveis para isolar completamente Kadhafi e o seu regime a nível nacional e internacional”. Outras alíneas, como a 12, deixam explícito que é preciso acabar rapidamente com o período revolucionário e transformá-lo num regime democrático burguês que não ponha em causa o domínio do imperialismo sobre o Médio Oriente.
O ponto 10, apenas votado favoravelmente por Rui Tavares, acaba por ser a corolário lógico dos restantes e diz que “a União Europeia e os seus Estados Membros devem honrar a sua responsabilidade de proteger [uma expressão que faz lembrar a “War on Terror” de G.W. Bush] (…); sublinha que nenhuma posição das Nações Unidas deve ser posta de parte (…) incluindo uma zona de exclusão aérea”.
Os argumentos apresentados pelos deputados europeus para justificar o seu voto, desde a “liberdade” até ao voto ter sido fruto das circunstâncias negociais, não limpam um facto que mancha o seu mandato: os deputados do Bloco de Esquerda votaram a favor de uma resolução que abriu as portas à intervenção militar do imperialismo na Líbia. Esta discussão, ao contrário do que diz Miguel Portas em texto publicado no www.esquerda.net, a 14 de Março, não é meramente “ideológica” ou “propagandística”. Como pode o Bloco de Esquerda ser um um pólo agregador de forças à esquerda, com políticas não só pelo emprego, saúde e educação, mas também de resistência contra as guerras imperialistas, se, quando a situação se lhes depara, imediatamente surge um “sentido de responsabilidade” que os faz negociar com os socialistas no Parlamento Europeu e acabar a votar com Paulo Rangel?
O Bloco de Esquerda deve demarcar-se deste voto e manifestar a sua solidariedade com o povo líbio, lutando pela saída do imperialismo da região e pela continuação da revolução contra a ditadura de Muammar Khadafi.
Manuel Neves
As revoluções não caem do céu
NATO fora da Líbia!
Não tenhamos dúvida de que a revolta na Líbia surgiu na continuação das revoltas da Tunísia e do Egipto que contagiaram o mundo inteiro.
Face à intervenção militar da NATO na Líbia, só pode haver uma reacção possível: a de estarmos determinantemente contra. Havendo nos meios progressistas sectores que defendem a necessidade de “proteger os rebeldes” contra a repressão sangrenta do ditador, esta não é uma afirmação tão evidente como pode parecer.
Em toda a sua história, a NATO nunca interveio por razões humanitárias em nenhum conflito armado. Se existisse um princípio de intervir sempre onde há “violação sistemática dos direitos humanos, incluindo a repressão de manifestantes pacíficos, mortes de civis e incitamento à hostilidade e à violência contra a população civil” (cf. Resolução 1973 da ONU), por que não intervieram nem a NATO nem a ONU no massacre que ocorreu em Gaza no inverno 2008-2009?
Khadafi, aliás, soube recordar aos seus ex-amigos que ao bombardear os rebeldes – segundo ele, terroristas da Al Qaeda – não estava a fazer na Líbia mais do que o exército israelita tinha feito em Gaza, com o consentimento da chamada comunidade internacional: “Até os israelitas em Gaza tiveram de recorrer aos tanques para combater tais extremistas. Nós fazemos o mesmo”.
Não tenhamos dúvida de que a revolta na Líbia surgiu na continuação das revoltas da Tunísia e do Egipto que contagiaram o mundo inteiro. São essas revoltas contra as ditaduras que temos a obrigação de apoiar, independentemente das contradições no seu seio.
Em todos os acontecimentos revolucionários que alastram pelo mundo árabe, apesar das diferenças entre cada um deles, a missão dos países imperialistas tem sido uma: aniquilar as revoltas e substituir os ditadores amigos por governos seus lacaios. Aos governos imperialistas não convém a existência de regimes democráticos no Magrebe e no Médio Oriente. O seu objectivo é um único: defender os seus interesses militares estratégicos e controlar os recursos energéticos na região. Para isso, precisam, entre outros, de um Egipto que colabore com a ocupação israelita da Palestina e de uma Líbia que controle a imigração africana às portas da fortaleza europeia.
Na Líbia, o imperialismo começou por deixar Khadafi reprimir os rebeldes. Os serviços secretos de Israel e o ministro da Defesa Ehud Barak autorizaram a empresa de armamento Global CST a recrutar cerca de 50.000 mercenários africanos para reprimir as manifestações. Os pagamentos em troca de petróleo continuaram a ser dirigidos para o banco central, controlado por Kadhafi. O embargo às armas não se limitou às forças fiéis ao regime, mas estendeu-se aos rebeldes para impedir a sua vitória. Por fim, as sanções internacionais não incluíam um embargo ao petróleo nem o congelamento dos dividendos dos investimentos líbios nas maiores multinacionais do mundo, permitindo assim que Khadafi continuasse a pagar mercenários e armamento a fim de manter a sua supremacia no que se tinha tornado uma guerra civil.
A ONU e mais tarde a NATO só intervieram militarmente quando a revolta popular já estava enfraquecida. Começaram por destruir a força aérea do regime e, desde a Conferência de Londres, em 29 de Março, apoiam o Conselho Nacional Líbio de Transição e encaram mesmo a possibilidade de lhe entregar armamento. Esse apoio traduz-se no acesso a bens do Estado congelados – cerca de 3.000.000.000 de dólares – e na autorização para vender parte do petróleo líbio.
A encruzilhada líbia pode hoje resumir-se ao seguinte dilema: ou a NATO deixa Khadafi triunfar, porque já está a pensar em reabilitá-lo como estabilizador regional (o que fez com Saddam Hussein entre 1991 e 2003); ou sobe a parada para derrotá-lo e implantar na Líbia um governo fantoche do imperialismo, enfeitado com os ecos evanescentes do que foi a insurreição. Em qualquer caso, os planos da NATO devem ser combatidos e derrotados.
Elsa Sertório
Novos capítulos da Primavera Árabe
Com mais de três meses decorridos desde a explosão popular na Tunísia, que virou a primeira página das revoluções árabes do século XXI, continuam a seguir-se novos capítulos na revolta dos povos do Norte de África e Médio Oriente.
Assim, desenrolam-se três tipos de cenários principais. Aquele que diz respeito aos países que viram o imperialismo, directamente ou indirectamente, usar a agressão militar para mudar o curso da revolução; aquele em que as revoltas são recentes ou só recentemente se radicalizaram; por último, o dos países em que a revolução já produziu importantes conquistas, com a queda dos respectivos ditadores e regimes.
Agressão imperialista
Começando pelo primeiro grupo, o Bahrein, pequeno país-ilha do Golfo Pérsico, foi o exemplo inicial. Com uma revolta maciça que exigia a queda da monarquia e mudanças democráticas na constituição, num país em que a polícia se compõe de estrangeiros contratados e onde os Estados Unidos têm uma importante base naval a pouco mais de 200 km do Irão, o regime via-se sem meios próprios para tirar à força a população das ruas e, por outro lado, as tropas americanas criariam muita antipatia se o fizessem. Deste modo encomendou-se uma intervenção estrangeira, mas à Arábia Saudita, Qatar e Emirados, que em meados de Março descarregaram mais de mil tropas e material de guerra para reprimir violentamente os protestos e fazer cumprir a vontade do rei e dos interesses que este sustenta.
Na Líbia, os mísseis da NATO procuram garantir que na era pós-Khadafi o país continue a ser uma semicolónia onde reinem os interesses franceses, italianos e das outras grandes potências.
As novas revoltas
O segundo grupo, em que as revoltas se iniciaram mais recentemente, inclui a Síria e o Iémen. Na Síria, o rastilho foi provocado pelas balas que a polícia não hesitou em usar, assassinando três de um tímido grupo de centenas que se manifestavam contra a prisão de jovens que tinham pintado graffiti antigoverno. Este país, antiga peça do eixo do mal de Bush, havia recentemente recebido muitos elogios das potências europeias pelas reformas de mercado que proporcionaram negócios chorudos àquelas e à elite burguesa do país, de onde se destaca a família do presidente Bashar Al-Assad, a mais rica do país.
No espaço de menos de um mês, e sob uma repressão implacável e um saldo de largas dezenas de mortos, a determinação e a força do povo sírio já conseguiram arrancar importantes concessões, como a libertação de centenas de prisioneiros políticos ou a nacionalidade para milhares de curdos, antes apátridas.
No Iémen, após mais de um mês de luta contínua de estudantes e trabalhadores pela queda do regime de ditadura e desigualdade social, o governo de Abdulah Saleh parece estar por um fio, com um exército dividido e os EUA a quererem patrocinar negociações de transição de poder, percebendo que o povo não desiste enquanto não tirar do poder o seu homem de confiança.
Revolução continua
Finalmente, a Tunísia e o Egipto, onde a revolução produziu resultados mais importantes com as quedas dos respectivos ditadores, Ben Ali e Mubarak, a Primavera não deixou o clima político arrefecer, e a situação continua bem quente.
Na Tunísia, após o derrube do regime, a mobilização popular, acabada de conquistar as liberdades de expressão e associação, continuou acesa forçando o afastamento de todos os antigos aliados de Ben Ali do governo interino, assim como a dissolução do RCP, o velho partido da ditadura.
Mas é no plano económico-social, de onde nasceu a raiva que em Dezembro fez explodir a situação, que as lutas vão ganhando expressão, procurando, de forma mais ou menos consciente, uma saída de classe para o problema que foi o principal motor da revolução. A UGTT, principal central sindical, vive um processo de ruptura entre a direcção nacional e as bases regionais, fartas da condução pouco combativa e representativa como a direcção tem conduzido a central.
No Egipto, a partida do odiado Mubarak também não satisfez boa parte da vontade popular. Nas semanas que se seguiram, greves fortes por salários e direitos laborais paralisaram importantes sectores da indústria, enquanto manifestantes ocupavam sedes da polícia secreta exigindo a sua dissolução. Mais recentemente, a desconfiança crescente face ao conselho militar que recebeu o poder das mãos de Mubarak traduziu-se no regresso das manifestações à Praça Tahrir, exigindo o fim do estado de emergência, o julgamento de Mubarak e o afastamento dos seus antigos aliados do governo interino. O comando do exército, que em Janeiro/Fevereiro não intervinha para dar uma impressão de neutralidade, mostra agora a sua verdadeira cara, não hesitando em mandar tropas para reprimir e desfazer os ditos protestos.
Um segundo acto da revolução árabe, aquele em que o povo liberto da tirania autoritária quer tomar a economia nas mãos e assentar nela um novo poder, pode estar começando a ser construído.
André Traça