A História Escondida das Pessoas LGBT+

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A família tradicional, na sua forma conjugal, nuclear, hoje tomada pela nossa sociedade como algo “natural” e normativo, nem sempre existiu. Se, no imaginário ocidental, esta surge como uma forma de organização inquestionável, é porque a versão da História que nos é contada, profundamente desinteressante e estática, procura alimentar a ideia de que certas instituições basilares para o capitalismo — como é o caso da família —, são o que sempre foram e assim se irão manter. No entanto, esta versão míope da História não é mais do que uma forma de as classes dominantes manterem a sua hegemonia e, simultaneamente, estancarem qualquer pensamento crítico que leve à emancipação dos setores mais oprimidos da sociedade. Ao serviço das classes dominantes, em nome da exploração e da opressão, a História é, acima de tudo, uma ferramenta de controlo social e de manutenção do status quo.

Percebendo a forma como a burguesia usa a História para manter a sua predominância na sociedade, Friedrich Engels, sintetizando o trabalho de vários historiadores, começou a revelar uma das faces ocultas da História. No seu livro A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Engels descreveu a evolução da organização social desde as sociedades pré-históricas, até ao estabelecimento de instituições como a Família monogâmica patriarcal, que acompanhou o desenvolvimento do Estado e da Propriedade Privada, a par das forças produtivas da sociedade. Esse estudo acabou por situar, por exemplo, o surgimento de várias opressões, como a opressão da Mulher, simultaneamente com a consolidação da propriedade privada.

Mas o estudo de Engels, apesar de profundamente revolucionário tendo em conta o pensamento dominante na época — que infelizmente ainda é predominante hoje —, foi incapaz de quebrar com o que hoje chamamos de cis-heteronormatividade 1. Ao ignorar a diversidade e as formas como as sociedades primitivas expressavam a sua sexualidade, a cis-heteronormatividade permaneceu como uma constante imutável na História. No entanto, e felizmente, a história da sexualidade humana é bem mais interessante e colorida que a percepção simplista que hoje é corrente. Torna-se então necessário expandir a obra de Engels, para perceber de que forma a sociedade de classes veio condicionar a sexualidade humana.

O antropólogo Claude Lévi-Strauss, no seu livro Tristes Trópicos, no qual estuda um grupo de indígenas no Brasil Central, descreve que os atos homossexuais eram comuns e praticados publicamente, enquanto que os heterossexuais eram praticados em privado. Das 76 sociedades que Clellan Ford e Frank Beach estudaram no seu livro Patterns of Sexual Behavior, apenas 26 eram descritas como sociedades em que atração por adultos do mesmo sexo era incomum. Ou seja, as relações homossexuais eram socialmente aceites em duas de cada três sociedades. Também o antropólogo Tobias Schneebaum descreveu, em Keep the River on Your Right, uma tribo Amarakaeri situada na Amazónia peruana, em que mulheres e homens dormiam separados, e as relações eram unicamente entre pessoas do mesmo sexo, tanto entre homens como entre mulheres. Reparou também que só em situações cerimoniais é que existiam relações heterossexuais para fins reprodutivos.

Mas não eram só as relações entre pessoas do mesmo sexo que eram recorrentes nas diversas sociedades tribais — também as identidades de género não-binárias são amplamente reportadas. Quase todas as tribos da América do Norte, e muitas tribos africanas, tinham as chamadas pessoas dois-espíritos: pessoas que não se enquadravam no binómio típico de género e que, dentro da tribo, cumpriam um papel sexual-ritual nas cerimónias religiosas.

O espectro de identidades e formas de relacionamentos descritos nas várias culturas, demonstram que pouco há de intrinsecamente compulsório ou obrigatório na heterossexualidade, e que não existe nada de “moderno” na homossexualidade, ou em identidades de género não-binárias. Significa que há um percurso histórico da sexualidade humana que nos tem sido escondido, e que confronta as nossas assumpções e percepções das vivências actuais.

Podemos encontrar, na forma como essas tribos se organizavam, vestígios das sociedades primitivas das quais todas as pessoas descendem. Nesse sentido, fica claro que a opressão das pessoas LGBTQ+ não veio de um vazio, nem é um produto da modernidade, mas surge, tal como a opressão da mulher, da própria sociedade de classes. À medida que a tecnologia avança, e surge a domesticação dos animais e o cultivo das terras, começa a surgir a necessidade de manter a herança desta propriedade privada. Como tal, é necessário garantir que toda a gente tenha descendentes e, simultaneamente, forçar a fidelidade na mulher, garantindo a consolidação da família patriarcal heterossexual.

Quando estudamos as sociedades antigas não devemos olhá-las com nostalgia, nem podemos tirar a conclusão de que devemos almejar o retorno à primitividade. Devemos, sim, compreender, em primeiro lugar, que a sociedade actual não reflete um estado imutável ou cristalizado de desenvolvimento humano, do qual nunca poderemos escapar. Em segundo lugar, devemos compreender também que que a própria cis-heteronormatividade — tão comum nos dias de hoje, e que condiciona a livre expressão da sexualidade de todas as pessoas — é reflexo do Capitalismo e da sociedade de classes em si. Isto não quer dizer que não devemos lutar por mais direitos dentro do próprio Capitalismo — claro que devemos, e estas conquistas têm dado resultados que não são de menosprezar. No entanto, acreditar que a total libertação sexual é possível dentro de um sistema que se baseia na manutenção de desigualdades é ingénuo e irrealista.

Podemos então traçar as tarefas que temos pela frente. É importante desafiar a cis-heteronormatividade e lutar contra a homofobia, a transfobia e outros tipos de discriminação baseada na orientação sexual e na identidade de género, dentro dos marcos do sistema capitalista, sem no entanto perder de vista a lente da luta de classes. A opressão e a discriminação são partes integrais do sistema em que vivemos, o que inclui a perseguição sistemática e estigmatização de sexualidades e identidades que não estão em conformidade com a “norma”. É imprescindível lutar contra a crescente onda reacionária que tem ressurgido, e que pretende retroceder com os poucos direitos que conseguimos conquistar. Mas temos também de ter sempre a perceção da necessidade estratégica de derrubar este sistema económico, que mina as relações entre pessoas, e antagoniza as diferenças naturais e a pluralidade salutar de vivências e experiências humanas. Só assim podem ser, todas as pessoas, verdadeiramente livres.

  1. A cis-heteronormatividade é a precepção de que a heterossexualidade e a cisgeneridade correspondem à normalidade, sendo relações homossexuais ou identidades de género não cis desvios anormais por oposição. Esta visão ignora a diversidade e multiplicidade da sexualidade humana.
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