No passado dia 3 de Janeiro, os EUA, por ordem do seu presidente Donald Trump, assassinaram o general iraniano Qassem Soleimani e Abu Mahdi al-Mauhandis, através de um ataque com um drone que matou, pelo menos, 9 pessoas perto do Aeroporto Internacional de Bagdad.
Qassem Soleimani era considerado o número dois do regime iraniano, sendo o comandante da força de elite iraniana Al-Quds da Guarda Revolucionária Islâmica do Irão. Abu Mahdi al-Mauhandis era o líder e fundador da milícia Kataib Hezbollah (Brigadas de Hezbollah, em português “Brigadas do Partido de Deus”), um grupo paramilitar xiita apoiado pelo Irão que integra as Forças de Mobilização Popular iraquianas. Para além deles, foi assassinado também Naim Qassem, o segundo na hierarquia do Hezbollah, no Líbano.
Este ataque de Trump foi o mais grave na escalada do conflito que tem marcado as relações entre os dois países nos últimos dois anos, que começou com a saída dos EUA do acordo nuclear, assinado em 2015, com o Irão e a imposição de sanções económicas ao país. Ao longo desse período, vários acontecimentos fizeram soar os alarmes de que uma nova guerra regional poderia estar eminente. No início de Junho de 2019, em resposta à presença imperialista dos EUA na região, o Irão abateu um drone americano. Em Setembro, as infraestruturas petrolíferas sauditas, na região do Golfo, sofreram um importante ataque, tendo o mesmo sido atribuído ao Irão.
Igualmente em protesto contra a presença militar dos EUA na região, desde Outubro de 2019, ocorreram vários ataques com rockets a bases iraquianas onde estão tropas americanas, que nunca foram reivindicados, mas que os EUA atribuíram às milícias xiitas pró-iranianas. No dia 27 de Dezembro, um desses ataques contra uma base, em Kirkuk, matou um empreiteiro civil e vários soldados norte-americanos. Apesar de não ter sido reivindicado, os EUA culparam a milícia Kataib Hezbollah. Em resposta, no dia 29, os EUA lançaram ataques aéreos contra as bases da milícia situadas na fronteira do Iraque com a Síria, matando pelo menos 25 elementos e ferindo outros 55. No dia 31, milhares de manifestantes mobilizados e organizadas pelas Forças de Mobilização Popular invadiram a embaixada Norte-americana no Iraque, localizada na Zona Verde de Bagdad, arrombando a porta e ateando fogo a partes do seu perímetro.
Na sequência dessa acção, os EUA realizaram o seu ataque a 3 de Janeiro. Entre as várias reacções e ameaças, ficamos a saber que já era uma ideia antiga, tendo sido publicamente apoiada por um editorial do Wall Street Journal de 31 de Dezembro1. Como se pode ver, os EUA ocupam e levam a cabo um crescendo de acções militares no Médio-oriente, cujos estados soberanos da região não têm outra opção se não retaliar, à medida das suas desfavoráveis forças.
Desde logo, o Irão prometeu uma retaliação dura. Por seu lado, Trump ameaçou bombardear 52 alvos iranianos, incluindo marcos históricos e culturais. A 5 de Janeiro, o parlamento iraquiano votou pela saída das tropas americanas do país e o Irão afirmou que não iria mais respeitar os limites impostos pelo acordo nuclear, assinado também pelo Reino Unido, França, Rússia, China e Alemanha. Depois de várias trocas de ameaças, a 8 de Janeiro, o Irão bombardeou as bases iraquianas de Ain al-Assad e de Erbil, onde estavam tropas americanas. Os ataques não causaram vítimas e Trump respondeu com ameaças de novas sanções2.
Desde então, os ânimos arrefeceram e parece que uma nova escalada de guerra na região está afastada, pelo menos temporariamente, principalmente depois da Guarda Revolucionária admitir que a queda do avião civil ucraniano, que matou 176 pessoas, horas depois do ataque às bases no Iraque, foi por culpa de um erro do exército iraniano (o que negou durante três dias). O regime iraniano, que pretendia mostrar que tinha apoio do povo após o ataque do império, voltou a enfrentar a contestação interna com protestos estudantis diários que exigem a sua queda. Atletas, artistas e actores romperam publicamente com o regime3.
Oportunista como qualquer líder imperialista, Trump declarou o seu apoio aos protestos, como já tinha feito antes. As mobilizações que têm abalado o Irão desde o passado dia 15 de Novembro têm um grande peso da classe trabalhadora, tendo origem na subida nos preços do combustível. Tal como as que ocorreram no final de 2017 e início de 2018, opõem-se às intervenções políticas e militares do país no Líbano, no Iraque, na Síria e no Iémen4. Além disso, conjugaram-se com as mobilizações contra os regimes sectários libanês e iraquiano que tiveram início em Outubro passado. As consequências que o ataque de Trump e a resposta do regime dos aiatolas terão nesses protestos são ainda incertas, podendo desviá-los para o campo do sectarismo religioso xiita, ou agravar a ofensiva das milícias e do Hezbollah para reprimir os protestos. Por enquanto, os iraquianos também voltaram a sair à rua gritando “Nem Estados Unidos, nem Irão!”5 e os libaneses voltaram às ruas6.
Com este ataque, Trump pretendia mostrar uma posição de força e, certamente, desviar as atenções dos próprios problemas internos que enfrenta – processo de impeachment. Desde logo e em primeiro lugar, opomo-nos à agressão dos EUA a países soberanos como o Irão e o Iraque, este último trucidado por várias guerras nas últimas décadas. Em defesa e solidários com os povos do Médio-oriente e Norte de África, exigimos a imediata retirada das tropas dos EUA da região e condenamos qualquer ataque do imperialismo sobre aqueles povos. Tenhamos consciência de que é, exactamente, a presença e acção militar imperialista na região que tem desencadeado a gigantesca onda de refugiado e migrantes.
No entanto, essa oposição, dever básico de qualquer revolucionário e internacionalista, não deve servir para legitimar o regime teocrático ditatorial do Irão, com uma estratégia expansionista que em nada serve os interesses dos povos da região. Muito menos, deve servir para lavar a cara a um criminoso de guerra como Qassem Soleimani, hoje aclamado como um herói na luta contra o autoproclamado Estado Islâmico. Na realidade, o general era o responsável pela organização de milícias sectárias xiitas fora das fronteiras do Irão, como a Kataib Hezbollah, que tem tido um papel fundamental a reprimir os protestos no Iraque. De igual modo, teve um papel chave na derrota da revolução síria, com a entrada do Irão na guerra civil, a partir de 2013, sendo responsável, tal como o regime de Assad, pela grande vaga de refugiados que chegou à Europa nos anos seguintes, ou morreu a tentar.
Ainda assim, por mais compreensíveis que sejam as reacções de festejo no mundo árabe, nomeadamente em Idlib, na Síria (que está actualmente a ser bombardeada por Assad e pela Rússia, apesar de estar em vigor um dos inúmeros “cessar-fogo” nunca respeitados7), também não há nada a festejar com a morte de Soleimani.
A única possibilidade de uma oposição consequente a este ataque do imperialismo à região é a solidariedade e mobilização dos trabalhadores e dos povos que já o têm feito desde os últimos meses de 2019, tal como o desenrolar dos acontecimentos dos últimos dias têm mostrado, opondo-nos a qualquer interferência por parte dos EUA. De igual modo, opomo-nos a qualquer interferência por parte do Irão e dos países do Golfo (e respectivos aliados) no Líbano, no Iraque, na Síria e no Iémen.
Não à guerra dos EUA contra o Irão!
Retirada imediata de todas as tropas dos EUA da região!
Retirada de todas as sanções sobre o povo iraniano!
Toda a solidariedade internacional com os povos do Médio-oriente e Norte de África!
1 https://www.wsj.com/articles/the-iranians-escalate-in-baghdad-11577837753?mod=opinion_lead_pos3
2 https://www.aljazeera.com/news/2020/01/iran-tensions-timeline-events-leading-soleimani-killing-200103152234464.html
3 https://allianceofmesocialists.org/iran-popular-protests-against-regime-intensify-in-response-to-iran-downing-of-passenger-plane/
4 https://allianceofmesocialists.org/why-the-latest-uprising-in-iran-matters/
5 https://www.middleeasteye.net/news/no-america-no-iran-thousands-protest-against-foreign-influence-iraq?fbclid=IwAR0PQ4lr5EslqZUmjSZlvt0Bl8H7Ftp6I2GBvuPWg6iu9PEAp_ywioBtbxM
6 https://www.middleeasteye.net/news/dozens-injured-anti-bank-protests-rock-beirut-second-night
7 https://www.middleeasteye.net/news/Syria-Russia-air-strikes-Idlib-ceasefire