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Grécia: Entrevista a Ricardo Cabral Fernandes (II)

Esta é a segunda parte da entrevista que o MAS realizou a Ricardo Cabral Fernandes, activista do Bloco de Esquerda. Entre setembro de 2015 e fevereiro de 2016 esteve em Salónica, Grécia, onde participou no movimento estudantil da Universidade de Salónica e na Unidade Popular.

MAS: Como está a reação da juventude e dos trabalhadores aos ataques do Governo Syriza/Anel?

RFC: Como te disse antes, não sei se os activistas voltaram a ter esperança e a participar nas lutas políticas mais locais. O que sei é que o único movimento que aguentou o desespero criado pela capitulação e, depois, traição do Syriza foi o movimento anarquista. Não tinha esperanças no partido por recusar inteiramente o combate eleitoral e a participação nas instituições do Estado. Organiza e participa em manifestações e combate o Aurora Dourada, por exemplo. Alguns anarquistas recorrem inclusive à luta armada, colocando bombas em sucursais de bancos, instituições que representam os interesses do patronato e destruindo instalações estatais. Lembro-me de um ataque ao escritório do Estado responsável pelo confisco de casas com incumprimento de hipotecas. O Estado estava a fazer directamente esse trabalho pelos bancos. Os anarquistas entraram no escritório e destruíram tudo, inclusive os computadores e os servidores da base de dados. Várias pessoas continuaram a ter um tecto onde viver.

Entretanto, quem tem liderado a luta dos trabalhadores tem sido a PAME, a central sindical afecta ao KKE. Os sindicatos organizam manifestações contra medidas concretas do governo, fazem greves e, por vezes, entram em confrontos com a polícia, que está completamente infiltrada por fascistas e neonazis do Aurora Dourada.

 

MAS: Atualmente qual é a situação da esquerda na Grécia? Qual achas que deveria ser o caminho dos partidos (KKE, Antarsya e Unidade Popular) que estão à esquerda do Syriza? Fazer uma frente de esquerda para as lutas, mas também para as eleições? Radicalizar o programa?

RFC: Depois do referendo de 25 de julho de 2015 e da marcação das eleições legislativas antecipadas por Alexis Tsipras para 20 de setembro do mesmo ano – que não foram mais que um golpe partidário contra a Plataforma de Esquerda – assistiu-se a uma reestruturação profunda da esquerda-radical grega. Se em 2003 o Syriza representou a formação de uma força política de unidade à esquerda – e atenção que na Grécia o sectarismo é muito mais forte que em Portugal -, a sua capitulação e, depois, traição fizeram recuar a esquerda em mais de dez anos. Ao romper com o Syriza a Plataforma de Esquerda criou uma coligação, a Unidade Popular, com várias forças políticas mais pequenas e com partes de forças já existentes – por exemplo, uma parte do Antarsya saiu para formar a coligação. No entanto, o sectarismo mantém-se muito vivo entre a esquerda grega e os eventos recentes ajudaram em muito a que se fortalecesse. Por exemplo, o KKE é o partido mais sectário entre a esquerda. Quando estive em Salónica participei no movimento estudantil e inicialmente assumi uma postura de unidade à esquerda, mas com o passar do tempo tornou-se-me claro que é impossível trabalhar com o KKE, bem como com os seus militantes de base, que são alvo de um controlo e disciplina muito rígidos pela burocracia partidária. O KKE recusava-se a participar nas assembleias do movimento estudantil e quando se realizavam assembleias de estudantes em que a direita (Nova Democracia e PASOK – este último sob a capa de um novo mega partido estudantil chamado Protovoulía (Iniciativa em português) depois do colapso) participava, o KKE atacava mais a esquerda do que a direita. Isto é a minha experiência pessoal e quero acreditar que não é representativa de toda a acção do KKE, mas as informações que recebo da Grécia comprovam-na sistematicamente. Gostaria de ver uma frente de esquerda não apenas nas disputas eleitorais, mas também nas ruas. Porém, parece-me mais fácil tal acontecer na segunda do que na primeira.

Quanto ao programa. A ideia que tenho relativamente ao programa político das principais organizações de esquerda é que não têm um programa definido relativamente à questão da UE e à saída da zona euro, uma questão fundamental. Ou seja, defendem a saída mas não têm um plano concreto para isso nem para o pós-saída. Por vezes os discursos são bastante radicais e têm uma linguagem bastante marxista e revolucionária, mas depois se analisarmos com atenção conseguimos perceber que não existem propostas concretas inseridas num verdadeiro programa e estratégia políticas. Se não se inverter a situação será um erro crasso, podendo significar eventualmente uma repetição da experiência Syriza se houver um novo confronto com os poderes europeus. Não se cria um plano B durante os confrontos, mas muito antes. Esta é uma lição que já devia ter sido aprendida.

 

MAS: Recentemente vimos as manifestações de sectores da extrema-direita em cidades americanas e o assassínio de uma militante de esquerda na cidade de Charlottesville. Temos o Trump que dá força e encoraja este tipo de ideias. Parece que existe no mundo um ressurgimento da extrema-direita e das suas ideias. Na Grécia como está a Aurora Dourada?

RFC: Tens toda a razão. Estamos a assistir ao ressurgimento da extrema-direita no mundo e à normalização de discursos de ódio e de racismo, dividindo a classe trabalhadora.

O Aurora Dourada é actualmente um dos principais partidos de extrema-direita neonazi na Europa e o terceiro partido na Grécia, para além de ser uma inspiração para outras forças políticas no continente europeu como nos Estados Unidos. Por exemplo, um dos fascistas que falou para a Vice durante os confrontos em Charllottesville disse que o movimento se baseava nas acções do partido.

Actualmente, o Aurora Dourada encontra-se acossado, o que não quer dizer que se deva baixar a guarda, bem pelo contrário. Durante anos o partido e os seus grupos armados caçaram pelas ruas gregas militantes de esquerda e imigrantes, matando vários e espancando muitos outros. Porém, com o assassinato do rapper Pavlo Fyssas a 18 de setembro de 2013 por militantes do Aurora Dourada e a enorme convulsão social que se deu, é que o poder político e judicial se sentiram pressionados para agirem contra o partido, acusando-o de ser uma organização criminosa. Os seus principais dirigentes, como Nikolaos Michaloliakos, foram inclusive acusados de liderarem uma organização criminosa. Porém, os grandes responsáveis por impedirem a ascensão da extrema-direita e desta conquistar as ruas gregas não foram os poderes político e judicial, mas sim o movimento antifascista grego. Foram os antifas quem impediram que o Aurora Dourada conquistasse e semeasse o pânico pelas ruas. Este tem imensas lições a ensinar a todos os antifascistas e deve ser estudado atentamente. A primeira é logo que os fascistas não se regem pela mesma moral que nós e, portanto, estão mais que dispostos a utilizar métodos violentos contra todos os que se lhe opõem. O movimento antifascista há muito que ultrapassou o debate sobre se se deve ou não responder com violência aos ataques fascistas – o que não significa não usar a violência de forma reflectida e ponderada sempre que tal seja necessário.

O movimento antifascista é um conjunto de organizações e colectivos de várias tendências políticas, desde a esquerda-radical à extrema-esquerda, não esquecendo os anarquistas e activistas a título individual que simplesmente se opõem ao fascismo. De forma alguma pode ser considerado um movimento centralizado. O que une todas as organizações, colectivos e activistas que o compõem é simplesmente a luta contra o fascismo. Todas as organizações participam no movimento de acordo com a sua própria agenda política e com as capacidades que possuem, marcando manifestações autónomas a que as restantes partes do restante movimento podem ou não participar. As assembleias antifascistas são comuns no seio de cada organização ou colectivo, a que se somam as assembleias “gerais” do movimento sempre que se justifica. O contacto entre os antifascistas é permanente.

No entanto, há certos momentos em que o movimento antifascista age como um todo, como, por exemplo, no dia de memória do assassinato do rapper Pavlo Fyssas, em que marcham todos juntos. Outro exemplo de união é quando algum elemento do movimento antifascista é atacado por forças fascistas, como os esquadrões de ataque do Aurora Dourada, a que o movimento reage em uníssono por meio de manifestações ou de retaliações violentas contra as sedes ou membros do partido.

Se analisarmos as práticas do movimento antifascista conseguimos delinear quatro eixos estratégicos orientadores que todas as organizações e colectivos cumprem de forma independente (e dependendo das suas capacidades), que são: 1) criação de colectivos de bairro antifascistas para impedir a expansão das forças fascistas e dos seus eventos pela cidade, organizando manifestações; 2) disputa de influência através da produção de propaganda (flyers, jornais e cartazes), de debates e de grandes eventos antifascistas, como o Festival Antifascista, que todos os anos se organiza em Salónica em Junho, ou o Torneio de Kickboxing Antifascista, e, por fim, com a criação de websites de monitorização das actividades do Aurora Dourada e de call-centers, onde as pessoas podem ligar para pedirem ajuda ou para comunicar actividades que tenham presenciado ou que saibam que irão acontecer; 3) criação de colectivos de solidariedade para os mais pobres, desempregados e imigrantes, tentando minimizar as suas carências materiais e disputando esta área com os neonazis, que também organizam os seus centros de assistência só para “gregos”; 4) apresentação de alternativas ao fascismo com o aprofundamento de práticas de democracia directa, de auto-gestão, de igualdade e de solidariedade, principalmente nos colectivos de bairro, nos centros de solidariedade e nas assembleias antifascistas.

Todos estes quatro eixos se inter-relacionam, compondo uma estratégia transversal perante a sociedade grega. Uma estratégia ofensiva contra as forças fascistas, mas também construtiva, de prevenção, sob as condições que permeiam o avanço social do fascismo.

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