O MAS entrevistou Ricardo Cabral Fernandes, activista do Bloco de Esquerda. Entre setembro de 2015 e fevereiro de 2016 esteve em Salónica, Grécia, onde participou no movimento estudantil da Universidade de Salónica e na Unidade Popular.
MAS: Passado dois anos e meio de Governo do Syriza em coligação com a Anel. Qual é a situação política na Grécia?
RCF: A Grécia é hoje uma neocolónia europeia e o seu governo aplica todas as medidas que a troika, principalmente Merkel e Schauble, exige. Durante alguns meses o Syriza tentou mostrar ao povo grego que, mesmo depois das eleições de 20 de setembro, se opunha acerrimamente às políticas da troika nas reuniões do Eurogrupo para depois aceitar todas as medidas que lhe impunham. Era o “vejam lutámos e tentámos, mas eles são mais fortes”, tentando passar as responsabilidades para as instâncias europeias. Nos últimos meses Alexis Tsipras e o seu círculo mais próximo mudaram de estratégia: tentam vender a ideia de que o país já passou pelo pior e que a economia está a crescer, uma clássica estratégia usada no passado por Antonis Samaras, ex-líder do Nova Democracia e ex-primeiro-ministro da coligação ND-PASOK. Usam emissões de dívida soberana pontuais para o justificarem, emissões que apenas trocam dívida por dívida, empurrando o problema da dívida para o futuro. Só o conseguirão fazê-lo até um certo ponto e mais tarde ou mais cedo será imperativo proceder-se a uma reestruturação da dívida. A questão é como será feita, lembrando a de 2012, que apenas serviu para salvar a banca francesa e alemã. O apoio do Fundo Monetário Internacional à reestruturação da dívida soberana grega deve ser olhado com cautela ou até mesmo com desconfiança, tendo em conta a cartilha neoliberal que aplicou por todo o mundo e na Grécia.
Estas duas estratégias não têm resultado. A credibilidade do Syriza junto do povo grego cai a cada dia que passa. O partido continua em queda abrupta nas sondagens – se bem que na Grécia estas são de desconfiar – e o Nova Democracia, liderado por Mitsotakis, um fervoroso neoliberal que estudou economia na Universidade de Chicago, já ultrapassou o Syriza. Para mim é uma questão de tempo até o partido colapsar. Os anos recentes demonstraram que sempre que uma força política de centro-esquerda, o PASOK ou o PSF, por exemplo, é conivente ou aplica a cartilha da austeridade e das reformas estruturais aliena a sua base social de apoio, ao contrário do que acontece com os partidos de centro-direita. Ao seguirem os ditames da troika perdem o seu carácter diferenciador face aos de centro-direita, colocando em causa o próprio bipartidarismo. O caso do Syriza é ainda mais grave no sentido em que representou uma grande esperança para muitos gregos e por possuir um discurso mais radical do que o PASOK, o que faz com que as contradições entre o que prometeu e o que está a fazer sejam gritantes. Para além disso, o Syriza nunca teve – e ainda não tem – uma estrutura partidária, implantação local e organizações de trabalhadores a si afectas como os partidos da Internacional Socialista tinham e têm, o que contribui para a sua erosão e provável colapso. De um partido de esquerda-radical, o Syriza passou, em poucos meses, a partido neoliberal. Aderiu ao “extremo centro” que Tariq Ali tão bem definiu.
O colapso do Syriza coloca-nos imediatamente uma questão: quem vai representar a esquerda anticapitalista doravante? É que caso nenhuma força política se afirme nos próximos tempos não é despeciente afirmar que a desilusão de muitos gregos pode ser capitalizada pelo Aurora Dourada, mesmo que neste momento se encontre acossada.
MAS: O Syriza desrespeitou a votação do povo grego no referendo sobre o memorando no Verão de 2015. Quais foram as consequências para o povo grego?
RCF: As consequências foram desastrosas tanto para o povo grego como para a esquerda grega e europeia. Para o povo grego representou uma traição e a ilusão de uma falsa esperança representada pelo Syriza. Em consequência dos erros estratégicos do partido o povo grego foi punido com o pior memorando de austeridade e de reformas estruturais desde que a crise económico-financeira entrou pela Grécia adentro. O povo grego ficou sem reacção e num estado de incredulidade, em que a descrição que mais se assemelha é a de que Naomi Klein faz no seu livro “Doutrina de Choque”. De um pico de lutas sociais intensas passou-se para uma profunda letargia. Cheguei a Salónica logo depois da capitulação do Syriza e o que pude ver foi isso mesmo. Todo um povo sem saber o que fazer a seguir. Muitos activistas simplesmente desistiram e foram para casa sarar as feridas, reflectir no que tinha corrido mal e sem grandes esperanças no futuro. Espero que hoje isso já tenha mudado e que tenham voltado a participar na luta política.
MAS: E para a esquerda radical europeia?
RCF: A experiência grega tem imenso para nos ensinar. Ao longo do curso contraditório da História os erros políticos tornaram-se não poucas vezes em fontes de conhecimento para a esquerda revolucionária. Perante uma derrota ou um impasse o pensamento revolucionário é obrigado a descobrir novos caminhos, mas tal apenas pode acontecer se não ignorarmos os acontecimentos ou se apenas olharmos para algumas vertentes da História – como tem acontecido em Portugal pelas principais direcções dos partidos de esquerda. Em suma, temos de aprender com o passado para disputarmos o presente e o futuro.
Apesar da estupefacção e desalento de grande parte da esquerda europeia após a capitulação do Syriza, a grande maioria dessa mesma esquerda recusou-se a debater tamanha derrota, e quando o fez focou-se apenas na caracterização da União Europeia (UE) e na forma como esta esmagou o governo grego. Parece que na luta de classes só existe um lado no combate e não dois, recusando qualquer carácter dialéctico da própria luta de classes. No entanto, e apesar desta limitação, retiraram-se grandes ilações quanto ao carácter da UE, o que por si só já foi uma conquista.
MAS: A que lições te referes?
RCF: Bem, genericamente refiro-me a três, mas obviamente que existem muitas outras nos múltiplos planos de combate. A primeira lição foi que as instituições europeias, os governos europeus e o Fundo Monetário Internacional (FMI) não hesitaram em se coligar para imporem uma estratégia de prevenção de um possível contágio eleitoral grego aos restantes Estados do Sul da Europa, principalmente Espanha e Portugal. Era imperativo que a esquerda radical não granjeasse crescente credibilidade enquanto alternativa à austeridade permanente imposta pelo Centro e Norte da Europa e aplicada pelos seus lacaios políticos no Sul da Europa.
A segunda é a de que as instâncias europeias se assumem como porta-vozes de uma visão estratégica para o projecto europeu que não aumenta apenas a assimetria entre Estados ricos e pobres, mas que é também a construção de um novo modelo neocolonial na Europa do Sul. E a terceira é a de que a orientação austeritária seguida até ao momento não é produto de uma alegada teimosia ou ortodoxia das instâncias europeias, mas antes de uma necessidade material das burguesias nacionais de uma maior acumulação capitalista nos principais centros de poder europeus. A teimosia e a ortodoxia não serão solidária e altruisticamente colocadas de parte em consequência da apresentação de argumentos económicos ou das crises humanitárias que possam existir, como Varoufakis aprendeu e os gregos infelizmente tanto sentem na pele depois de três memorandos. Em suma, é o expoente máximo da luta de classes.
Se num primeiro momento a visão estratégica da esquerda radical europeísta sobre a União Europeia foi fortemente abalada depois da capitulação do Syriza, a verdade é que nos meses seguintes esta voltou a ganhar força política – basta olhar para os documentos estratégicos do Partido de Esquerda Europeia (PEE) sobre o assunto. Por exemplo, Gregor Gyzi, presidente do PEE e membro da direita da direcção política do Die Linke, continua a defender que a UE pode ser transformada por dentro e abraça a ideia de uma coligação entre o Die Linke e o SPD – e com Os Verdes se tal for necessário – para formar governo, uma geringonça à alemã, e, através da liderança da principal potência do projecto europeu transformar a própria UE. O líder do SPD, Martin Schulz, não tem, de acordo com as sondagens mais recentes, quaisquer possibilidades de ganhar as eleições legislativas de 24 de setembro deste ano à chanceler Angela Merkel. Mas pior do que acreditar numa ilusão contra dados eleitorais, é acreditar que as burguesias europeias o vão permitir. É continuar a bater com a cabeça na parede. Einstein uma vez disse: “a definição de louco é tentar várias vezes a mesma coisa e esperar resultados diferentes”. Tentar mudar a União Europeia por dentro e para mais através de coligações à “la geringonça” é simplesmente uma ilusão. Receio bastante que a solução governativa portuguesa esteja a ser vista por algumas direcções de forças políticas do campo da esquerda-radical como a solução para o combate contra a austeridade e as burguesias, quando a geringonça já mostrou que a austeridade se mantém, mesmo que menor e sem a imagem de vivermos num permanente estado de excepção.
MAS: Disseste antes que no confronto entre o Syriza e os poderes europeus parece que só existiu um lado e não dois pelas conclusões parciais da esquerda radical. Podes desenvolver?
RCF: As direcções dos partidos de esquerda, principalmente dos parlamentares, recusaram-se a olhar para os erros e lições positivas do Syriza no confronto contra os poderes europeus, independentemente dos motivos para o terem feito. Na análise que faço divido-os em três níveis diferentes. O primeiro é o europeu; o segundo o do governo; e o terceiro o do partido. Todos estes planos se interligam e complementam.
O principal e óbvio erro que o Syriza fez foi não ter preparado um plano B de saída da zona euro. No confronto com os poderes europeus o potencial de chantagem e de ameaça é fundamental e um plano seria essa margem de manobra. O Syriza acreditava que podia transformar a UE por dentro e essa ideia é bastante velha em certas alas do partido, para além de que a Grécia nunca seria confrontada com a ameaça de expulsão da zona euro. A direcção do Syriza acreditou ingenuamente que os líderes europeus queriam o melhor para a Europa e que nunca tomariam uma decisão desta magnitude que colocasse em causa os próprios alicerces do projecto europeu – o que de que quem entra já não sai, princípio que, inclusive, está consagrado nos tratados europeus. Os líderes europeus farão dos tratados europeus letra morta se a isso forem obrigados. A ideia de transformar a UE por dentro é claramente eurocomunista, que acredita que o Estado enquanto sujeito é um palco de combate e disputável por dentro, gradualmente, com a burguesia. Passando esta ideia para o plano europeu esse Estado é a UE. Estou a simplificar bastante a ideia, mas genericamente é isto. E este erro leva-nos para uma segunda questão fundamental na história teórica para a esquerda: a sua relação com o Estado, o eterno debate “reforma ou revolução”. Ser-se governo não é o mesmo que ser-se poder e o Syriza aprendeu isto mesmo da pior forma. A ideia de se controlar o aparelho de Estado por apenas se ser governo é uma falácia tremenda. Os ministros do governo grego davam ordens e tinham o chamado “Estado profundo” a boicotá-los constantemente. Um deles foi precisamente o Presidente do Banco Central Grego, Yannis Stournaras, que agiu activamente nas reuniões do Banco Central Europeu e com os banqueiros e finança mundiais contra o governo grego.
MAS: Dá um exemplo dessa situação.
RCF: Por exemplo, recusou-se a aumentar a linha de crédito de liquidez dos bancos naqueles longos sete meses, mesmo que todo o sistema bancário grego pudesse colapsar por falta de liquidez. Para derrotar o governo grego a burguesia estava disposta a tudo. O Syriza foi obrigado, como também o será qualquer força politica anticapitalista que no futuro tome o governo com um programa reformista ou revolucionário, a combater em duas frentes: a externa, contra as burguesias europeias, e a interna, contra a burguesia grega. Como retirar os elementos sabotadores da burguesia no aparelho do Estado? A esquerda tem de voltar a aprofundar o debate sobre a sua relação com o Estado, actualizando as teorias sobre o Estado nesta nova realidade de dicotomia entre os Estados nacionais e um mega Estado europeu. Análise da questão, definição de programa, de estratégia e, depois, de organização.
O Syriza enquanto partido deu-nos tanto erros como lições positivas que devem ser estudadas e, porventura, adaptadas às particularidades de cada palco nacional pelos partidos de esquerda. Comecemos pelos erros. Primeiro, o de ter tido focado a luta política nas instituições, logo a política eleitoral, em vez de se focar nas ruas e na criação de alternativas políticas mais locais. A partir das duplas eleições de 2012 toda a gente ficou a saber que era uma questão de tempo até o Syriza ser governo. Começou-se, inclusive, a criar um governo sombra. No pós-grande recessão, a trajectória estratégica do Syriza é parecida com a de outros partidos de esquerda radical europeus e pode-se dividir em duas fases distintas que se interligam e sobrepõem: o foco na participação e apoio aos movimentos sociais com as ocupações de praças (Occupy Wall Street, Praça del Sol) e de manifestações (Que se Lixe a Troika, por exemplo); e a fase do foco na política eleitoral, nas instituições e de ser ou apoiar o governo depois da dissolução dos movimentos sociais para substituir os partidos sociais-liberais que iam colapsando, que estavam em risco de ou que precisavam de ser salvos. Por fim, podemos estar também a assistir a uma nova fase estratégica com os movimentos de Jeremy Corbyn, Bernie Sanders e Jean-Luc Melenchon. São organizações de carácter partidário, mas que estão a conseguir aglomerar movimentos sociais, partidos políticos mais pequenos e trabalhadores e organizações sindicais sob a mesma bandeira. Formalmente a luta faz-se sob a alçada do partido, mas vai muito para além deste e as lideranças não podem decidir tudo à porta fechada sem ouvirem os seus aliados de base.
Voltando à burocratização do Syriza. A burocracia partidária aumentou à medida que o partido se foi expandindo e quando entraram milhares de novos militantes, muitos oportunistas vindos do PASOK. Os interesses da burocracia começaram-se a sobrepor aos dos militantes e trabalhadores, o que, em parte, resultou no erro seguinte. Segundo erro, a falta de democracia interna dentro do próprio Syriza, o que produziu e foi produto de uma enorme concentração de poder num círculo restrito à volta de Alexis Tsipras. Começou-se a observar a um culto de personalidade – e até podemos fazer alguns paralelismos com outros partidos de esquerda radical europeus próximos de nós. O Podemos vem-me logo à cabeça, por exemplo. As decisões do partido eram tomadas no topo, longe das bases do partido e, para piorar a situação, as informações e decisões não eram transmitidas. Ora, um militante é – e deve ser – uma extensão natural do partido em cada casa e local de estudo/trabalho, explicando a situação política e as decisões do partido a todos os trabalhadores. Caso contrário estes apenas tomarão conhecimento das acções do governo/partido pelos meios de comunicação social, que, por sua vez, são controlados pela burguesia e defendem os seus interesses materiais e ideológicos. Foi exactamente isto que aconteceu. Quando confrontados pelos trabalhadores sobre uma decisão do governo grego, os militantes do Syriza não eram capazes de responder pelo simples facto de ou não saberem que uma decisão tinha sido tomada ou por não saberem o porquê de ter sido ou até por ambos. Isto retira credibilidade ao partido e aos militantes junto dos trabalhadores, para além de criar um sentimento de impotência nos próprios activistas. E se antes do partido ser governo as decisões já estavam concentradas num reduzido círculo e, por vezes, à margem dos próprios órgãos partidários, com a entrada do Syriza no governo as decisões passaram a ser tomadas no Conselho de Ministros e não nos órgãos partidários. A democracia interna ficou ainda mais fragilizada, se ainda existia sequer.
Um último erro foi a concentração do internacionalismo do Syriza e da esquerda radical europeia no Parlamento Europeu com o grupo parlamentar GUE/NGL e PEE. O internacionalismo institucional é importante, mas não é de todo suficiente para combater os interesses internacionais dos capitalistas e não deve ser o principal foco numa estratégia internacionalista. É fundamental um internacionalismo de rua, de movimentos sociais, de troca de experiências de base. Estes dois internacionalismos não se auto-excluem, ao invés, complementam-se dialeticamente, elevam em conjunto a voz da rua europeia e intensificam a luta de classes. Na minha opinião, o Syriza não investiu o suficiente para criar internacionalismo de rua, quando este é fundamental para demonstrar solidariedade e criar raízes para futuros movimentos por toda a Europa, principalmente nos países do Sul. Se não tivessem sido ativistas de movimentos sociais que tomaram as rédeas de livre e espontânea vontade, as expressões de solidariedade não teriam sido tão grandes como foram. Poderei estar a ser injusto, mas é o que me parece. Na questão do internacionalismo parece-me também imperativo referir a necessidade de um programa político internacional adaptado às especificidades nacionais e que repudie as ilusões do europeísmo de esquerda. A simples partilha de valores comuns já não é suficiente para a esquerda agir concertadamente neste momento. É essencial ir mais além e preparar conjunta e democraticamente, de baixo para cima, um programa internacional de rompimento com a zona euro e até com a UE, um programa anticapitalista que coloque a tónica nos interesses dos trabalhadores. A iniciativa do Plano B propõe-se fazer isso, mas é preciso esperar para ver quais as linhas programáticas gerais que terá, a estratégia para a saída da zona euro que escolherá e, não menos importante, ver qual será a metodologia para se criar esse plano, se no final será à porta fechada com uma série de académicos ou especialistas ou se democraticamente pela base. É esperar para ver, mas a primeira reacção que tive foi positiva.
Quanto às lições positivas da experiência do Syriza. A principal parece-me ser a construção de redes de solidariedade a partir de 2010. Até foi a juventude do partido a avançar com isso mesmo contra o círculo de Tsipras, o que, convinhamos, não é muito próprio de uma juventude partidária na forma como em Portugal se olha para este modelo organizativo. Porém, as primeiras redes de solidariedade não foram criadas pelo partido, mas por organizações autonomistas e anarquistas, mas os militantes do Syriza não ficaram para trás. As redes de solidariedade não são apenas positivas por responderem às necessidades dos trabalhadores, desempregados, estudantes, pensionistas e reformados quando as estruturas sociais do Estado colapsam, mas também por criarem práticas alternativas ao sistema capitalista. Novas relações de produção, mesmo que micro, democracia de alta intensidade na base, destruição de hierarquias e do individualismo neoliberal extremo, etc. Em suma, destrói-se a hegemonia neoliberal e erode-se a forma como esta molda os comportamentos sociais pela prática, ao mesmo tempo que aglomera cada vez mais trabalhadores e contacta com as suas realidades.