A Primavera Árabe e o processo contra-Primavera Árabe
As gigantescas deslocações de refugiados vindos do Norte de África e Médio Oriente são a consequência de uma série de acontecimentos históricos e da alteração da situação política naquela região.
Os EUA e as grandes potências europeias (Reino Unido, Alemanha e França, predominantemente), através dos governos nacionais daqueles países, mantinham um enorme controlo político e económico sobre a região. Daí extraiam grandes quantidades de riqueza e controlavam uma das grandes reservas mundiais de petróleo.
A Primavera Árabe, que se iniciou nos finais de 2010, é precisamente uma reacção dos povos, do Norte África e Médio Oriente, contra as castas governativas ditatoriais, dos seus países, obedientes aos interesses das grandes potências mundiais. Este processo, órfão de uma direcção que o conduza, para além das aspirações democráticas, a um sistema económico e político alternativo ao capitalismo, está ainda em desenvolvimento.
O que estamos a assistir, neste momento, é à decorrência desses levantamentos de massas, onde os principais episódios começaram na Tunísia e se foram alastrando pela Argélia, Jordânia, Omã, Egipto, Iémen, Sudão, Iraque, Bahrein, Líbia, Kuwait, Marrocos, Líbano, Síria e Turquia. Uma vez que toda esta agitação conseguiu alterar governos mas não alterar os seus regimes ou sistema económico, acabam por recuar nas suas conquistas.
À semelhança da revolução alemã (1918/1919), após a sua derrota, seguiu-se um considerável período de retrocesso civilizacional, onde se inseriu o crescimento do partido nazi e o genocídio de milhões de pessoas – o Holocausto. Este é um episódio, ainda que assumindo contornos diferentes, se está a replicar hoje no Norte de África e Médio Oriente sobretudo através do Governo sírio de Bashar al-Assad e do Estado Islâmico. Estamos portanto a assistir, neste momento, a um bárbaro processo contra-revolucionário para o qual têm contribuído diversos factores.
Trocam-se as elites, mantêm-se as vontades
Perante gigantescas manifestações, não houve governo fantoche que se tenha mantido tal como até então. Para acalmar as massas houve uma tentativa, por parte dos países imperialistas, de alterar alguma coisa naqueles regimes ditatoriais para que tudo se mantenha como antes: houve concessões, houve reformas governativas e até houve quedas sucessivas de governos. EUA e potências europeias não conseguiram impor a sua vontade e saem, pelo menos momentaneamente, enfraquecidos da região.
Não que as grandes potências mundiais não disponham de poderio militar para esmagar aqueles levantamentos populares, sob uma justificação de “estabilização” da região, o facto é que a crise económica atingiu profundamente o coração das maiores economias do mundo. Para além disso, a intervenção militar no Iraque foi um enorme desastre político – ficou claro que não passou de uma justificação disparatada para alargar a influência política e económica, dos EUA e países europeus, sobre a região. Estes factores contribuem, em grande medida, para que uma intervenção militar aberta, dos países imperialistas, naquela região, seja de muito difícil execução. É desta forma que se explica que, em 2013, o parlamento do Reino Unido, sob pressão da opinião pública, tenha rejeitado a sua participação, ao lado dos EUA, numa intervenção militar aberta na Síria.
Com a intervenção das grandes potências mundiais retraída (mas não inexistente) e os levantamentos populares sem alternativas de poder, é a altura em que as elites locais se chegam à frente para pôr um fim à Primavera. Este é o caso das elites governativas da Arábia Saudita e do Qatar que, sob uma influência histórica dos EUA, vêem um espaço económico e político vazio (antes ocupado pelas grandes potências) e tratam de alimentar uma organização racista, com métodos nazis – o Estado Islâmico – para controlar os poços de petróleo e os portos marítimos da região. Estas elites locais servem agora de correias de transmissão da indústria de armamento americana e europeia. Segundo Clara Ferreira Alves (Expresso online 05.09.2015), a “A Alemanha e os Estados Unidos bateram recordes de venda de armas no Golfo em 2014”.
Os povos da região que antes estavam sob o domínio ditatorial dos seus governos e que, em última instância, respondiam aos interesses dos EUA e da Europa, incapazes de forjar uma direcção e governos que defendam as suas aspirações por mais democracia e melhores condições de vida, vêem-se agora sob o domínio das elites locais que estão dispostas a esmagar tudo para controlar o máximo de recursos possível.
Europa de Merkel tenta lavar a cara com um quinhão de refugiados
Aquilo que, durante anos, foi retratado, pelos governos europeus, como uma caprichosa migração de pessoas do Norte de África e Médio Oriente passou de um momento para o outro, assim que Merkel alterou a sua retórica, para uma crise de refugiados. Parece um jogo de crianças: Merkel comanda que se lave a cara, os governos europeus lavam a cara, os media mundiais lavam a cara… com uma amostra de refugiados!
Aquilo que foi apelidado pelo primeiro-ministro inglês Cameron de “praga”, tornou-se, oficial e repentinamente, numa calamidade humanitária. A construção de muros deu parcialmente lugar a um súbito gesto de misericórdia a alguns milhares de refugiados.
A verdade é que as pessoas e famílias que atravessam desertos e mares, em condições desumanas, às mãos de mercenários que traficam seres humanos, nunca deixaram de ser refugiados que ao fugirem de uma calamidade humanitária acabam por se meter noutra. Refugiados porque são obrigados a fugir dos territórios onde estavam localizados, uma vez que são perseguidos e ameaçados pela sua raça, etnia, nacionalidade, religião, associação a determinado grupo social ou opinião política. Calamidade humanitária, não só pela quantidade, mas pelas condições de vida a que estas pessoas são sujeitas.
A calamidade humanitária não surgiu desde a semana passada, é aliás tão antiga quanto a hipocrisia dos governos dos países europeus e dos EUA. Quantas crianças, mulheres, famílias inteiras chegam mortas à costa europeia? Há quanto tempo isso é um acontecimento recorrente? Porque é que a UE mudou a sua retórica e porquê agora?
A calamidade, de facto, assume uma nova dimensão. O amontoado de refugiados nas fronteiras dos Balcãs, Itália, França e Inglaterra é aterradora. Os números, as condições em que chegam e, principalmente, a justa indignação e mobilização dos refugiados, nos campos onde estão a ser concentrados, forçam uma resposta da UE.
Merkel, tendo pouco espaço político para impedir a chegada contínua de refugiados – ainda chamuscada pelas autoritárias negociações do novo plano de austeridade para a Grécia – e perante a pressão dos próprios refugiados, aproveita-se das circunstâncias, passa a imagem de protectora dos oprimidos, reabilita-se, e com a intenção de sacudir a fuligem, muda a sua posição face à “praga” – aproveitando ainda a entrada de uma reserva de mão-de-obra barata na Alemanha.
Por outras palavras, não podendo impedir a “infestação”, Merkel refugia-se na farsa política e passa a defender a abertura de fronteiras para alguns refugiados. Porque é que é a relocalização política de Merkel é uma farsa?
Comecemos pelos números. No final de 2014, os refugiados sírios alcançaram cerca de 4 a 5 milhões. Dados da ONU referem que, nos primeiros 6 meses de 2015, chegaram à Europa, por mar, cerca de 137 mil refugiados, comparado com os cerca de 75 mil no mesmo período de 2014. Destes, os principais deslocados são sírios (34%), seguidos de afegãos (12%) e de eritreus (12%).
Em 2014, existiam cerca de 800 mil pedidos de asilo na UE, sendo que apenas 185 mil foram aceites. A Europa não é, nem de perto, quem está a acolher mais refugiados sírios. Daqueles 4 a 5 milhões, cerca de 2 milhões estão deslocados na Turquia, 1,2 milhões estão no Líbano, 650 mil deslocaram-se para a Jordânia, 150 mil estão no Iraque, 132 mil estão no Egipto, etc.
A UE está a negociar o acolhimento de 160 mil refugiados. O que será feito aos restantes e daqueles que continuarão a chegar à Europa? Serão empurrados para o mar?
Os Estados europeus disponibilizam astronómicas somas dos seus orçamentos para a compra de armamento e para a construção de muros. Já quanto ao acolhimento de refugiados, encaram esse investimento como um desperdício. Basta reparar que nem Merkel, nem as instituições europeias condenam a construção do muro na fronteira da Hungria com a Sérvia, já quanto à aplicação do novo plano de austeridade para a Grécia não admitem qualquer tipo de alternativa.
Os Estados da UE escancaram as suas fronteiras e atribuem autorizações de residência a qualquer estrangeiro que possua elevadas riquezas. Exemplo disso é Portugal que atribui “vistos gold” a estrangeiros que invistam aqui capitais no valor de 350 mil euros ou adquiram imóveis no valor de 500 mil euros. Temos um país à venda, a perder a sua soberania, e a ser comprado por estrangeiros sem qualquer tipo de constrangimentos ou planificação. Temos aliás o ex-ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, interrogado no âmbito dos “vistos gold” por suspeita de crime de prevaricação de titular de cargo político e de tráfico de influências Já quanto a recolher refugiados que tentam escapar à guerra e à perseguição política é um enorme problema.
A Cimeira das Lajes, nos Açores, em 2003, que ditou a invasão do Iraque foi acolhida em Portugal com toda a pompa e circunstância, mas já para receber refugiados, o actual Governo de Passos Coelho e Paulo Portas tem a posição de “quanto menos, melhor” – a quota requerida por Passos Coelho foi de 2 mil refugiados. Para termos uma noção meramente numérica, não existindo aqui qualquer comparação entre os acontecimentos, Portugal acolheu cerca de 500 mil retornados das suas ex-colónias após a Revolução de 1974.
À esquerda, Catarina Martins, líder do BE, afirma que está ao lado de Merkel quanto à recepção de 160 mil refugiados na Europa. É tarefa política da esquerda europeia denunciar esta hipocrisia europeia que está a servir para que os grandes dirigentes europeus afastem as responsabilidades que têm nesta crise humanitária.
Ou seja, há dinheiro na Europa para armamento, há dinheiro na Europa para levantar muros nas fronteiras mas não há solidariedade na Europa para acolher quem mais necessita.
Propaganda anti-islâmica e retórica contra refugiados
Enquanto esta farsa política vai desfilando a nu, os sectores europeus mais xenófobos e racistas vão agitando a sua propaganda. Sobre isto deixamos aqui algumas notas.
Não fará muito sentido que existam elementos do Estado Islâmico entre os refugiados. A tendência tem sido contrária: o Estado Islâmico recruta nos países europeus para o Norte de África e Médio Oriente, não o contrário. Para além disso, o Estado Islâmico terá provavelmente ao seu dispor formas bem mais seguras para enviar os seus elementos para a Europa. A própria Igreja católica não poria à disposição as suas paróquias e misericórdias se esta fosse uma ameaça real. Entre os refugiados existirão sim, muito provavelmente, elementos progressivos que terão combatido o Estado Islâmico no terreno.
Não fará igualmente qualquer sentido que esteja em marcha uma invasão da Europa. Mesmo considerando o referido número de pedidos de asilo existentes em 2014 (800 mil), ainda que fossem todos aceites, coisa que não acontece, este número de pessoas representa apenas 0,1% da população europeia – 740 milhões.
Não existe portanto justificação plausível para negociar ou restringir qualquer tipo de auxílio aos refugiados.
Não à hipocrisia europeia! Acolhimento de todos os refugiados!
É necessário criar condições para que os refugiados consigam sair dos seus territórios em segurança!
É necessário criar condições para o acolhimento de todos os refugiados!
Menos “vistos gold”, mais solidariedade com os refugiados!