Qatarstrófico: Mundial bate recordes em exploração

Desde que foi anunciado que o Qatar receberia o Mundial de Futebol de 2022, em Dezembro de 2010, estima-se que tenham morrido mais de 6.750 trabalhadores migrantes no país na construção da infraestrutura do evento. A FIFA escuda-se atrás das suas estatísticas oficiais. O regime do Qatar, que sempre tentou vender uma imagem ao Ocidente como sendo o mais liberal dos seus vizinhos, anuncia reformas laborais que custam a sair do papel. No meio disso, qual a realidade dos trabalhadores e das suas famílias e como podemos lutar contra o silêncio dos governos ocidentais?

O Qatar é o primeiro país do Médio Oriente a receber um mundial de futebol. Independente do Império Britânico desde 1971, o emirado é governado pela família Al-Thani, tendo um regime de monarquia absolutista, e aplica uma interpretação ultraconservadora da lei islâmica, à semelhança dos restantes países do Golfo Pérsico. No entanto, ao contrário dos seus vizinhos, procurou constantemente passar uma imagem mais liberal para o resto do mundo, para a qual tem sido fundamental, por exemplo, a estação televisiva Al-Jazeera. Aliás, na última década tem mesmo procurado ter uma política independente da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos, desafio que lhe custou um bloqueio que terminou recentemente. Sem surpresa, nos dias que correm, o Qatar estende a mão à Alemanha perante a crise energética.

Já à data da decisão se conhecia de antemão a realidade social e laboral do país, mas na altura terá pesado mais o dinheiro gerado pelo gás e pelo petróleo, que são o centro da economia do país, e a abertura de novos mercados para os patrocinadores. Assim, o governo do Qatar responsabilizou-se pela construção de infraestruturas que englobam 9 estádios novos (posteriormente, reduzidos para 8) e a renovação de 3 estádios. A estas, soma-se a construção de acomodações para as equipas e visitantes, sendo esperados mais de um milhão, assim como a criação de redes de transporte. Entre promessas de sustentabilidade e melhoria das condições de vida, o governo aproveitou o momento como uma ação de marketing. Desde então se sabia, graças à grande dependência do país de mão-de-obra estrangeira, que as infraestruturas necessárias à competição seriam construídas por migrantes. Entre Dezembro de 2010 e Abril de 2022 a população do país cresceu de 1,6 milhões de pessoas para 2,8 milhões, sendo a maior parte dos trabalhadores oriunda de países como a Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka. Paralelamente, desde 2010, milhares de trabalhadores empregados em todos os projetos e setores morreram súbita e inesperadamente. A maior parte das mortes não foi investigada pelas autoridades, negando às famílias o direito de saber o que se passou, assim como procuraram escapar às compensações devidas. As certidões de óbito emitidas não especificavam a causa de morte, referindo apenas “causas naturais”, “paragem cardíaca” ou “insuficiência respiratória aguda”.

Até 2015, a FIFA não aceitou, publicamente, ter qualquer responsabilidade pela situação dos trabalhadores migrantes no país, fê-lo apenas em Maio de 2016, e apenas em 2018 começaram a ser introduzidas pelo governo algumas reformas acordadas, no ano anterior, com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). De acordo com a Amnistia Internacional (AI), o sistema kafala permaneceu praticamente inalterado entre 2010 e 2018. Este sistema de escravatura moderna, ao qual estão sujeitos os trabalhadores migrantes, priva-os de qualquer liberdade, incluindo de mudar de trabalho ou de abandonar o país, sem autorização do patrão. A maioria vê, aliás, os seus passaportes confiscados pelos patrões, deixando-os em risco de ser presos ou deportados. Os salários em atraso, ou não pagos, são a regra, podendo durar meses. Tudo isto depois de ser paga uma taxa exorbitante, no país de origem, de modo a garantir o emprego no Qatar, que ronda os 1.300 dólares americanos. Para além das condições de trabalho perigosas, junta-se o calor extremo, para o qual não existe praticamente proteção adequada. Isso faz com que a jornada de trabalho possa iniciar-se às 4:30 da madrugada, com interrupção à hora do calor (quando esta é respeitada), e só terminar pelas 7 ou 8 horas da noite. Estas jornadas podem durar entre 10, 12 ou 14 horas, havendo denúncias de pessoas que trabalham 148 dias consecutivos sem folgas.

Entre 2017 e 2022 observaram-se algumas reformas, que de qualquer forma não evitaram a continuidade dos abusos. Entre as medidas mais significativas estão a criação de um salário mínimo e de um fundo para o pagamento de salários em atraso, a liberdade para deixar o país ou mudar de emprego sem autorização do patrão, assim como a extensão dos períodos de pausa no verão, tendo introduzido medidas adicionais para mitigar os riscos da exposição dos trabalhadores ao clima extremo. Uma das medidas mais importantes diz respeito à legislação sobre o trabalho doméstico que estipula limites às horas de trabalho, intervalos obrigatórios, um dia de folga e férias pagas. O governo afirma que, desde Setembro de 2020, 242.870 trabalhadores conseguiram mudar de trabalho e que mais de 400 mil beneficiaram diretamente no salário mínimo. Como seria de esperar, de fora do acordo ficou a possibilidade dos trabalhadores se organizarem e criarem os seus sindicatos.
Desde logo, organizações internacionais, como a FIFA e a ONU, classificaram as medidas de “pioneiras”, considerando que abriam uma “nova era”. A federação sindical International Trade Union Confederation (ITUC) aclamou as medidas, enquanto diversas organizações de direitos humanos receberam-nas de forma cautelosa. A verdade é que as reformas anunciadas são areia para os olhos da opinião pública internacional, com a conivência dos nossos governos nacionais, da UE, da FIFA e da ONU.
A AI, por exemplo, continua a denunciar que a realidade laboral é marcada pelo trabalho forçado, por longas jornadas de trabalho e falta de dias de descanso, discriminação com base na raça, nacionalidade e língua. Muitos continuam dependentes do empregador para mudar de trabalho, ou enfrentam grandes barreiras, sujeitos a roubos nos salários e a condições de trabalho e de vida sub-humanas. Além disso, as medidas pouco ou nada alteraram a realidade vivida pelas trabalhadoras domésticas, que continuam entre as mais exploradas no país, levadas ao extremo pelas excessivas jornadas de trabalho (em média, 16 horas por dia, todos os dias da semana) e pelos abusos constantes dos patrões.

A realidade vivida na última década tem motivado campanhas como a #PayUpFIFA, que exige a compensação dos trabalhadores migrantes e das suas famílias por parte do Qatar e da FIFA, assim como a investigação das mortes ocorridas desde 2017.