Recuperar a memória, uma breve história da NATO

Entre muitos outros povos que lhes antecederam, a Ucrânia e o seu povo são as mais recentes vítimas das disputas entre projectos imperialistas. A invasão da Ucrânia pela Rússia tem origem numa disputa entre o imperialismo regional russo e o imperialismo ocidental.

Apesar das desastrosas intervenções no Afeganistão, no Iraque ou na Líbia, nos últimos 20 anos, existe uma ideia generalizada de que a NATO é o garante da paz e da segurança mundiais face a outros projectos imperialistas.

A maior parte dos media, ávidos por conquistar mais receitas de publicidade, prefere a superficialidade e o manuseio emocional dos acontecimentos, ao aprofundamento e à investigação dos factos que devia caracterizar o jornalismo. A desinformação e falta de memória facilitam a manipulação. Hoje, por exemplo, quem ousa questionar a NATO é trucidado por uma infame campanha de silenciamento. A crítica à NATO ou à UE está vedada da opinião pública. Nós fazemos questão de contestar esta narrativa, reavivando a memória.

Da nossa parte, que fique, desde já, clara, a seguinte declaração de intenções: denunciar o carácter imperialista da NATO e os seus interesses no actual conflito da Ucrânia, negando o seu suposto projecto de paz e segurança, não significa qualquer apoio a Putin. Opusemo-nos, desde o primeiro momento, à invasão russa da Ucrânia. Nunca prestámos qualquer apoio político a Putin ou ao seu regime. E contrariamente a muitos dos sectores da direita, extrema-direita e do próprio Governo PS em funções que agora se dedicam a denunciar o regime de Putin, nunca estabelecemos qualquer relação com o regime russo e a sua oligarquia. Nunca fomos financiados por Putin, como muita da extrema-direita europeia. Nunca estabelecemos qualquer relação comercial com Putin e a sua oligarquia, como têm feito inúmeros governos europeus, nos últimos 20 anos, nos quais se incluem os sucessivos governos PS e PSD/CDS-PP através dos célebres Vistos Gold, por exemplo.

Dito isto, a nossa intenção é a de demonstrar, pela história, que não existe qualquer carácter progressivo seja em que imperialismo for, pelo que desafiamos (e combatemos) a ideia de que a solução para combater a invasão Russa da Ucrânia deva passar pelo apoio a uma intervenção da NATO.

Os primórdios da NATO

Após as duas guerras mundiais e depois das conferências de Ialta (Fevereiro 1945) e Potsdam (Julho-Agosto 1945), que dividiram o mundo entre a zona de influência dos EUA e a zona de influência da ex-URSS, surge a NATO, em 1949, como aliança militar entre as principais potências imperialistas ocidentais, liderada pelos EUA, o maior credor dos esforços de guerra dos países europeus.

A aliança foi, portanto, criada com o objectivo imperial de servir de contraponto ao seu concorrente mundial directo, a ex-URSS. O Pacto de Varsóvia, aliança militar liderada pela ex-URSS, surge em resposta às Conferências da NATO de Londres e Paris, de 1954, onde foi definido o rearmamento e a adesão à NATO da Alemanha Ocidental, em 1955.

Com o colapso da ex-URSS, em 1989, o Pacto de Varsóvia dilui-se e desaparece o principal adversário da NATO, deixando os seus mentores sem justificação plausível, perante a opinião pública, para a existência de tal aliança.

Em 1990, a supremacia das potências ocidentais é decretada e é assinado o Tratado sobre Forças Armadas Convencionais, entre a NATO e os países do antigo Pacto de Varsóvia, através do qual é dfinida a redução da capacidade militar em todo o continente europeu. “Aquando do fim da guerra fria, os países europeus eram responsáveis por 34% das despesas militares da NATO. [Em 2012,] aquela despesa desceu para 21%”1.

Que propósito dar à NATO depois do desmantelamento da URSS?

À deriva, abriu-se uma discussão pública sobre a obsolescência da NATO que só vem a ser resolvida com o “11 de Setembro”. “Em vez de decretar a decadência da NATO, o ’11 de Setembro’ tornou-se o catalisador das mais importantes mudanças na história da NATO”2, assume Michael Rühle, Chefe da Secção de Segurança Energética da NATO, em 2011.

Michael Rühle sintetiza o novo propósito da NATO da seguinte forma: combate ao terrorismo e à proliferação de armas de destruição maciça, precisamente a mesma farsa que justificou a invasão do Iraque, em 2003.

O carácter imperialista da NATO

Os EUA procuraram, através da NATO, desde o seu início, coordenar e estabelecer alguma ordem aos interesses expansionistas das grandes potências ocidentais à escala mundial, no período pós-guerra, implementando uma hierarquia subordinada ao poder dos norte-americanos.

É por isso que, após o desmantelamento da URSS, nem todos ficaram confusos com a suposta falta de propósito da NATO. De acordo com documentos classificados a que a Jacobin teve acesso3, um grupo de conservadores do Departamento de Defesa dos EUA, chefiado por Dick Cheney, durante a Administração de Bush “pai”, entre 1989 e 1993, foi rápido a preparar o Plano de Defesa (PD) que iria garantir, daí em diante, a absoluta hegemonia americana, a nível mundial. Este foi precisamente o mesmo grupo que, 10 anos mais tarde, viria a ficar conhecido como responsável pela arquitectura da invasão do Iraque.

De acordo com o referido PD, o Departamento de Defesa dos EUA estabelecia que: “há potenciais nações ou blocos de nações que poderão, no futuro, desenvolver objectivos estratégicos e uma postura de dominação a nível regional ou global. A nossa estratégia deve agora focar-se em prevenir o surgimento de qualquer potencial concorrente futuro, a nível global”.

Face à assinatura do tratado de Maastricht, em 1992, e à potencial concorrência que um projecto europeu representou e representa para a hegemonia dos EUA, a NATO teria a finalidade de servir de “canal para a influência e participação dos EUA nos assuntos de segurança europeus”. Tanto assim é que as Administrações Bush “pai” e Clinton se opuseram ao plano de paz Vance-Owen para a Bósnia, liderado exclusivamente pelas potências europeias, por temerem que isso pudesse ser lido como uma aceitação dos EUA de uma política europeia separada da NATO. Nesta sequência, os EUA acabaram por se impor como líderes da abordagem à Guerra da Jugoslávia que, através da NATO, culminou com a assinatura do Acordo de Dayton para a Bósnia, em 1995, dirigido por Clinton.

Mas não é tudo. Para o Médio-Oriente e o Sudoeste asiático, o PD dos EUA estabelece que o objectivo dos EUA é “permanecer como a potência externa predominante de forma a preservar o acesso dos EUA e do Ocidente ao petróleo da região”, assim como defender “a propriedade dos EUA e manter o acesso ao espaço aéreo e marítimo” da região, objectivos para os quais se “mantém de importância fundamental a prevenção da hegemonia ou alinhamento de potências que possam vir a dominar a região. Com enfoque especial para a Península Arábica”.

É dentro do enquadramento de se preservarem como potência dominante no Médio-Oriente que os EUA decidem, com a ajuda da NATO, dividindo responsabilidades e usufruindo da localização estratégica dos aliados europeus, invadir o Afeganistão, em 2001, invadir o Iraque, em 2003, e bombardear a Líbia, em 2011. No mesmo sentido se enquadra a operação naval da NATO, lançada em 2009, para controlar o tráfego marítimo no golfo de Aden, via marítima fundamental para o petróleo do golfo Pérsico, que desemboca no Canal do Suez, tornando-o um ponto geoestratégico essencial para a economia mundial.

Portanto, como se pode verificar, quando os EUA não têm como intervir de forma autónoma, a NATO serve de cobertura aos EUA para amarrar os interesses das potências europeias aos seus próprios interesses e liderar o projecto imperialista das potências ocidentais.

Os planos expansionistas da NATO chocam-se com os planos expansionistas da Rússia

Ora, como não poderia deixar de ser, os planos imperialistas da NATO chocam-se com os planos imperialistas de outras potências regionais, sobretudo quando têm interesses conflituantes sobre o mesmos territórios e recursos.

Como forma de prevenir tais choques, de acordo com documentos desclassificados4, tanto a Administração Bush “pai”, como a Administração Clinton asseguraram hipocritamente a Mikhail Gorbachev e Boris Yeltsin que a NATO não se expandiria para o Leste europeu. Tal não se veio a verificar.

Nos anos seguintes ao colapso da URSS, aproveitando o estado enfraquecido da Rússia para consolidar a influência dos EUA em toda a Europa e cavalgando o justo sentimento contra a opressão Estalinista de muitos dos povos do Centro e Leste europeu, a NATO encontra uma boa oportunidade para dar azo ao seu projecto de expansão. A Administração Clinton (1993 – 2001) foi a primeira a avançar com uma expansão agressiva da NATO.

Em 1992-1995, a NATO faz as suas primeiras intervenções militares na Bósnia-Herzegovina, e, posteriormente, em 1999, na ex-Jugoslávia, com o objetivo de disputar a região para a sua orla de influência.

Em 1994, a NATO estabelece o programa que apelida de “Parceria para a Paz” (PpP), permitindo estender relações bilaterais individuais entre os seus membros e outros estados da ex-URSS, onde se inclui a própria Rússia. No mesmo ano, é assinado o “Diálogo do Mediterrâneo” que estende os acordos militares da NATO ao Norte de África (Argélia, Egipto, Jordânia, Marrocos, Mauritânia e Tunísia) e Israel. Em 2004, a Iniciativa de Cooperação de Istambul é lançada para disputar o Oriente-Médio, nas mesmas linhas do “Diálogo do Mediterrâneo”.

Entre 1999 e 2018, muitos dos países do Centro e Leste europeu acabaram por aderir à NATO: República Checa, Hungria, Polónia, Bulgária, Estónia, Letónia, Lituânia, Roménia, Eslováquia, Eslovénia, Albânia, Croácia, Montenegro e Macedónia.

O imperialismo russo que tem intenções de manter muitos destes territórios sob o seu jugo, tenta segurar tudo o que estiver ao seu alcance para manter ou recuperar influência estratégica. Em 2008, interveio na Geórgia, com um presidente pró-NATO, lançando operações militares de apoio aos separatistas das regiões da Abecázia e Ossétia do Sul. Em 2014, com a queda do Presidente ucraniano pró-Rússia, Víktor Yanukóvytch, a Rússia anexou a Crimeia e lançou operações militares de apoio aos separatistas de Donetsk e Lugansk. Em 2015, a Rússia interveio na guerra da Síria para fortalecer a sua influência no Médio-Oriente. Em 2020, a Rússia apoiou a Arménia, país seu aliado, no conflito com o Azerbaijão, com o objectivo de manter o controlo de um território estratégico para a distribuição energética. Já este ano de 2022, a Rússia interveio no Cazaquistão com o objetivo de reprimir os protestos contra o governo seu aliado, assim como invadiu a Ucrânia, como forma de não perder completamente a influência sobre o país.

Como se pode verificar, estamos na presença de um choque entre o imperialismo ocidental e o imperialismo russo, com inúmeras vítimas entre vários Estados, cuja solução não poderá vir de nenhum destes projectos expansionistas.

A NATO não é garantia de paz, nem de segurança

Sob a invasão russa da Ucrânia, muitos colocam como solução definitiva e imediata a intervenção da NATO (ideia apadrinhada por muitos sectores da sociedade e resistência ucraniana e pelo próprio Governo Zelensky). No entanto, o que nos dizem as últimas intervenções da NATO?

Estamos a falar da ocupação do Afeganistão, em 2001, capitaneada pelos EUA; a invasão do Iraque, em 2003, sob a falsa justificação da existência de armas de destruição maciça; e a intervenção na Líbia, em 2011. Todas elas foram um fracasso completo.

A recente retirada das tropas americanas do Afeganistão, após 20 anos de ocupação, deixou para trás um rasto de morte, destruição e miséria sobre o povo afegão. Não evitou sequer que os talibãs tenham assumido o controlo do país, para além de que a ocupação de duas décadas apenas serviu para manter a humilhação nacional e o ressentimento local vivo, alimentando organizações terroristas.

A invasão do Iraque nunca chegou a encontrar as armas de destruição maciça que lhe deram base de sustentação, tendo servido apenas os interesses políticos e económicos dos EUA e potências europeias.

O bombardeamento da Líbia que a NATO auto-proclamou como uma das intervenções mais bem-sucedidas da sua história, transformou o país num caos. De acordo com a ONU, a Líbia tornou-se numa plataforma de tráfico de armas5 para todo o tipo de grupos do Médio-Oriente, incluindo terroristas e criminosos, enquanto se transformou num próspero mercado de escravos, tendo tudo isto desencadeado uma importante crise migratória.

A NATO é uma aliança de guerra e instabilidade com vista à satisfação dos interesses das elites ocidentais, tal como Putin persegue os interesses expansionistas das suas próprias elites. Da NATO não virá solução para o povo ucraniano.

No entanto, relativamente à invasão russa sobre a Ucrânia, levanta-se a questão: porque é que a NATO não intervém directamente na guerra da Ucrânia com o envio de tropas e armamento militar para combater a Rússia? Será para evitar uma escalada militar que nos conduza a uma III Guerra Mundial?

O argumento de que uma intervenção directa da NATO na Ucrânia nos conduziria a uma III Guerra Mundial é forte e é parte da explicação. No entanto, com as expectativas de recuperação económica pós-pandemia, as grandes potências ocidentais, assim como a China, não têm necessidade, no presente momento, de entrar num conflito de proporções mundiais. Daí que nos pareça que a III Guerra Mundial seja, por agora, a hipótese, não impossível, mas menos provável.

De qualquer forma, tenhamos consciência de que o capitalismo e as suas crises cíclicas já demonstraram que precisam regularmente do carácter destrutivo da guerra para voltar a restabelecer as suas taxas de lucro. Estando nós a atravessar novamente um período histórico em que a velha ordem mundial, resultante dos acordos de Yalta e Potsdam, entrou em declínio, e uma nova ordem se vai acomodando, este reajuste levará, tal como já está a acontecer, a conflitos económicos e diplomáticos, assim como a guerras, sejam elas mais regionais ou venham a assumir um carácter mundial.

Voltando à possível intervenção directa da NATO na guerra da Ucrânia, parece-nos que a aliança não o faz, não por prevenção, mas porque está a conseguir atingir os seus fins mesmo sem o fazer: (i) duro desgaste do regime de Putin e da economia russa no plano económico, social, político e até ideológico, com o repúdio mundial à guerra; (ii) a recuperação do desgaste a que a NATO e as potências ocidentais têm vindo a ser sujeitas, nos últimos 20 anos, com as criminosas intervenções no Médio-Oriente; (iii) unificação da UE em torno do aumento substancial dos orçamentos de guerra das potências europeias, algo que, pela pressão pública, não foi possível, nos últimos 20 anos; (iv) maior aproximação da Ucrânia e do conjunto do Leste europeu às potências ocidentais; (v) apoio militar à resistência do povo ucraniano, sem que isso tenha de significar uma intervenção directa.

São estes os factores que, em grande medida, explicam a não intervenção directa da NATO na Ucrânia. A NATO está a gerir os seus interesses, como sempre faz, enquanto vai demonstrando os seus tons belicistas face ao imperialismo russo em confronto. Não existe qualquer plano plano de paz, nem de segurança para o povo ucraniano. Já os EUA utilizaram uma táctica semelhante durante a II Guerra Mundial, assistindo de longe ao desgaste provocado pela guerra entre os velhos imperialismos francês, inglês e alemão, entrando só vários anos depois no conflito, para se tornarem nesse processo e no seu rescaldo, a potência hegemónica do planeta.

Não à Guerra! Putin fora da Ucrânia! Não à NATO!

É por este conjunto de razões que, ao mesmo tempo que exigimos e lutamos para que Putin pare com a agressão militar na Ucrânia, não podemos deixar de exigir que a NATO pare com a sua escalada militar.

Uma das maneiras de evitar a escalada do conflito é precisamente questionar a existência da NATO, pois desempenhou um papel fundamental no aumento das tensões até ao momento actual e parece estar disposta a manter essa escalada, através do reforço das suas posições junto da Rússia e do aumento dos orçamentos militares de todos os seus aliados.

Historicamente, a juventude e os trabalhadores têm sido fundamentais na resistência contra as guerras imperialistas e contra a escalada militar. O segredo está na solidariedade entre os povos e na mobilização popular, de Lisboa a Moscovo, contra Putin e todos os governos e alianças internacionais disponíveis para aumentar os esforços de guerra.

Recordemos a nossa própria história, quando a 25 de Abril de 1974, a mobilização popular se juntou aos movimentos de libertação colonial e pusemos fim a 13 anos de guerra colonial. Recordemos a mobilização popular que ajudou a pôr fim à agressão indonésia sobre Timor. A juventude e os trabalhadores devem voltar a mobilizar-se em torno de um movimento anti-guerra que combata a invasão de Putin e não permita a intervenção da NATO. Não à Guerra! Putin fora da Ucrânia! Não à NATO! Pelo direito à autodeterminação do povo ucraniano e independência da Ucrânia!

Para além disso, é preciso evitar que as sanções recaiam sobre os povos europeus, pelo que exigimos que a UE coloque um fim imediato aos paraísos fiscais e empresas offshore. Exigimos o tabelamento dos preços e dos lucros das empresas de bens e serviços essenciais para controlar a inflação e combater a desvalorização salarial.

É urgente o apoio, militar e humanitário, à resistência ucraniana sem que isso signifique quaisquer condições ou tropas da NATO no terreno. Exigimos o perdão da dívida pública da Ucrânia, assim como o cancelamento imediato do programa de austeridade do FMI. FMI fora da Ucrânia!

Mobilizamo-nos contra o reforço das despesas militares da NATO e da UE, as maiores potências militares globais. Mobilizamo-nos contra o envio de tropas portuguesas para reforçar as posições da NATO. Fim dos blocos militares! Fim da escalada belicista!

1 https://www.economist.com/leaders/2012/03/31/bad-timing

2 https://www.nato.int/docu/review/articles/2011/09/02/nato-ten-years-after-learning-the-lessons/index.html

3 https://jacobinmag.com/2019/08/the-wolfowitz-doctrine

4 https://nsarchive.gwu.edu/briefing-book/russia-programs/2017-12-12/nato-expansion-what-gorbachev-heard-western-leaders-early

5 https://www.reuters.com/article/us-libya-arms-un/libya-arms-fueling-conflicts-in-syria-mali-and-beyond-u-n-experts-idUSBRE93814Y20130409

Anterior

A questão nacional e a autodeterminação nacional: “duas culturas”

Próximo

20 anos de relações entre as elites ocidentais e Putin: dos “democratas” à extrema-direita autoritária