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Chile: Vitória popular no referendo por uma nova constituição

O referendo para uma nova constituição, realizado no Chile no dia 25 de Outubro, deu uma vitória esmagadora ao “sim” (78%). A constituição chilena herdada da ditadura de Pinochet, feita à medida das elites económicas chilenas e do capital estrangeiro, foi enterrada pela vontade popular.

O referendo contou com uma participação de pouco mais de 50% dos inscritos, apesar deste valor, foi a maior participação eleitoral desde 2012, altura em que o voto passou a ser voluntário. As poucas regiões onde o não venceu, são as regiões onde as elites chilenas vivem. Em Santiago, dos 34 municípios, em apenas 3 venceu o “não”, locais conhecidos como o “triângulo dourado”, situado no nordeste da cidade onde vive a larga maioria dos empresários abastados e dos políticos do regime1. O aumento da participação no referendo dos bairros pobres de Santiago foi visível2. Iniciar-se-á o processo de apresentação de candidaturas a constituintes , e no dia 11 de Abril serão eleitos os 155 constituintes que ficarão responsáveis pela redação do texto.

 

18 de Outubro de 2019 

Esta vitória eleitoral começou a desenhar-se no fim do ano passado com o eclodir de uma situação revolucionária que agitou todo o Chile e despertou a atenção de todo mundo. Esmagados com a precariedade e salários baixos, abandonados pelo estado e exasperados com os políticos do regime e os graves casos de corrupção saíram à rua contra o governo de direita de Piñera e todo o sistema político. Nas ruas exigiram-se mudanças estruturais e um país mais justo, longe do modelo neo-liberal em vigor até agora. O país foi, desde 1973, um laboratório social do neo-liberalismo, com a finalidade de aumentar a exploração da classe trabalhadora em função dos lucros de uma minoria. A burguesia, através dos seus políticos, colunistas de imprensa e “especialistas”, apresentava sempre inúmeros elogios à economia chilena que supostamente funcionaria em pleno e demonstrava as suas virtudes face às demais economias da região.

As classes populares chilenas é que não estavam de acordo com isso, e mostraram-no com a força transformadora que inundou as praças do país. As mobilizações diárias, as greves, os bloqueios e barricadas estiveram sempre sob ataque cerrado e feroz das forças, policiais. Apesar das torturas, das mortes, violações e feridos, as mobilizações continuaram, e a vontade das classes populares parecia não conhecer limites. Nos protestos a juventude estudantil e trabalhadora estiveram muito activas, as pautas feministas e as exigências do povo indígena também se evidenciaram durante o processo. Desta forma, com a situação fora do controlo, os partidos do regime com o apoio da esquerda parlamentar (Partido Comunista e Frente Ampla), num acordo de cúpulas, anunciou o “acordo de paz” que estipulava um referendo à constituição e uma série de medidas de renovação do sistema político mas permitia a continuidade do governo de Piñera e que a crise do regime não se tornasse ainda maior. As elites chilenas, receando que a situação se mantivesse fora do controlo, arriscaram perder parte dos seus privilégios e lucros, referendando uma constituição que lhes era altamente favorável mas com esta cedência ganharam tempo e asseguraram a continuidade do seu governo.

 

Entre a ilusão das urnas e o pesadelo da repressão.

Foram várias as tentativas de afrouxar a vontade popular e trazer de volta a “estabilidade”. Das mentiras habituais, usadas neste tipo de circunstância, para deslegitimar manifestantes, colocando-lhes os rótulos de “violentos” e “vândalos”. Das balas e prisões passando por algumas medidas sociais e anti-corrupção, foram diversas as tentativas para acalmar a situação. É neste contexto de grande descontentamento popular que a burguesia é obrigada a lançar o referendo. O referendo acabou por ser a válvula de escape, que impediu que o regime, sob fogo intenso da ira popular, explodisse a qualquer momento e a situação se tornasse perigosamente irreversível para os negócios dos donos do Chile. Apesar disso as mobilizações continuaram e voltou a realizar-se uma grande manifestação em Outubro, para celebrar o primeiro aniversário do início da revolução, que acabou em confrontos com a polícia e mais detenções3.

Os governantes do regime protelaram a realização do referendo, com a esperança que o tempo tornasse o clima mais respirável, a tensão social amenizasse e a correlação de forças voltasse a ser mais vantajosa para as elites. Para além da eleição dos redatores da constituição, o ano de 2021 será marcado por várias eleições regionais, parlamentares e presidenciais em Novembro de 2021. No caso de haver necessidade de segundas voltas podemos estar a falar em 6 eleições no próximo ano. A estratégica é clara: naufragar a revolução com a ilusão de processos democráticos e continuar a reprimir violentamente as lutas. O governo de Piñera, apesar da cedência no referendo, continua a usar a policia para meter ordem nas ruas e continua a recusar a libertação dos manifestantes presos.

 

Manobras e truques

O ódio ao governo de Piñera continua, observado numa taxa de aprovação baixíssima (17%), no repúdio pela velha constituição, no descontentamento face à atuação da polícia além de que a desconfiança nas instituições4 permanece. Face a este cenário os ricos e poderosos que mandam no Chile vão ensaiando truques e preparando armadilhas, para que os seus rendimentos não sejam afetados, e a normalidade regresse ao país. No referendo foram colocadas duas possibilidades: todos os constituintes (155) serem eleitos por voto popular, ou uma convenção constitucional mista, onde metade dos constituintes seria eleito através do voto e a outra metade através dos deputados parlamentares actuais. A tentativa era clara, continuar a serem os políticos do velho regime corrupto e bafiento a controlar as rédeas do processo constituinte. A classe trabalhadora não caiu na armadilha, apesar dos grandes partidos de esquerda parlamentar, o Partido comunista e a Frente Ampla (coligação de partidos), terem feito campanha por uma constituição mista, que seria segundo eles, o que garantiria a verdadeira expressão popular!

Apesar da vitória no referendo, este processo de elaboração de uma nova constituição, continua a salvaguardar os interesses dos poderosos. O “acordo de paz” estabeleceu que são necessários? de quórum para fazer acordos dentro da Convenção. Significa que uma minoria de um terço, poderá bloquear qualquer alteração. Ou seja, facilmente a direita conservadora e o centro-esquerda conseguirão bloquear qualquer aspiração popular que entre em choque com os seus interesses. Não é possível também levar acabo alterações aos acordos internacionais de livre comércio, o que impossibilita mudanças estruturais na economia chilena.

As elites nunca se dispuseram a mudanças significativas na constituição, estas só virão se a luta não esmorecer. Os activistas dos movimentos sociais, sindicais e territoriais devem fazer listas para a constituinte, exigindo que esta seja verdadeiramente democrática e soberana, algo que não é possível de acordo com as “regras” estabelecidas no “acordo de paz”. O governo conservador e truculento de Piñera continua em funções depois de provocar milhares de feridos e 4 dezenas de mortos na repressão dos protestos além de uma péssima gestão da pandemia. Só se a classe trabalhadora, através das suas organizações e dos movimentos sociais, voltar a sair à rua em massa é possível o fim deste governo, e garantir que o processo constituinte seja o mais democrático possível, denunciado todas as artimanhas da elite para que tudo permaneça na mesma, agora com nova vestimenta, lutando para que os anseios da população pobre, oprimida e marginalizada do Chile sejam incluídos na constituição.

Das ruas aos bairros populares, do Chile à Bolívia passando pela Costa Rica os trabalhadores demonstram que estão atentos e dispostos a lutar. E que são capazes de resistir, mesmo num contexto de pandemia e grande insegurança económica, às tentativas da direita em endurecer os regimes e impedir que novos planos reacionários e neoliberais possam ainda tornar a vida dos de baixo mais insuportável. Os ventos que sopram destes processos são suficientes para fazer tremer os planos do imperialismo para a região. Boas notícias portanto.

Fora Piñera!

Liberdade a todas as presas/os políticos!

Por uma constituinte verdadeiramente democrática e soberana!

 

Notas:

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