A premissa inicial nunca poderia ser diferente: “A saúde é um Direito fundamental e inalienável de todos. Sem excepção. Nenhum profissional da saúde: médico, enfermeiro, ou auxiliar se pode furtar aos princípios básicos que regem o acesso universal aos cuidados de saúde. E não há poder político que imponha condutas que violem o código ético e deontológico na prestação de cuidados de saúde a quem deles necessite.
O SNS, na minha óptima, ex-áqueo com o sistema educativo, constituiu a maior conquista do pós 25 de Abril. Este desempenhou, e em certa medida ainda desempenha, um papel crucial na vida dos portugueses e de quem habita em território nacional. Não obstante, os desafios enfrentados, de sucessivas políticas desastrosas (quer de governos PS quer de governos PSD/CDS), que o têm vindo a enfraquecer, necessitam de uma especial atenção e de acções reivindicativas por parte da população.
A memória é curta, mas julgo que ninguém conseguiria conceptualizar actualmente, o que seria necessitar de cuidados médicos e não ter ninguém a quem recorrer. A Saúde e os cuidados de Saúde de qualidade não podem ser um privilégio de quem tem poder económico para usufruir de seguros de saúde. E essa é uma realidade que se adivinha às pessoas com fracos recursos económicos. O acesso aos cuidados de saúde transformou-se num verdadeiro jogo da roleta. Quando necessário, os serviços de urgência abertos, os tempos de espera, se é possível uma consulta em tempo útil num centro de saúde, etc, transformou-se num jogo de sorte ou azar. Por muito caricato que pareça, as notícias veiculadas pela comunicação social nem precisavam de ser recentes, já que as mesmas se vão repetindo ao longo dos anos: mais de 24h de espera nos SU, várias urgências de obstetrícia encerradas, grávidas a parir nas ambulâncias, demissões de médicos e enfermeiros, portugueses sem médicos de família, listas de espera infindáveis, etc.
O SNS, cuja génese foi alicerçada como garantia de acesso universal e gratuito à saúde e cujo princípio deve ser preservado, não preenche os requisitos de muitos interesses económicos que compreenderam a saúde como um grande negócio, e assim o mesmo tem sido delapidado ao longo dos anos, levando a que os profissionais, legitimamente procuram melhores condições de trabalho e remunerações adequadas aos seus níveis de conhecimentos científicos, técnicos e de responsabilidade. A realidade, demonstrada sucessivamente, visa criar condições adversas para que médicos, enfermeiros, técnicos superiores e administrativos e auxiliares, tenham migrado para o sector privado e para o estrangeiro, deixando lacunas difíceis de preencher. O SNS lá vai funcionando porque os seus profissionais vão vestindo a camisola. Mas tudo tem um limite.
Também para os profissionais que trabalham no SNS a sua prestação de cuidados se assume como um jogo de sorte ou azar. Não raramente, aceitam ingenuamente trabalhar com parcos recursos humanos, e se eventualmente existirem falhas, cuja responsabilidade seria institucional, são crucificados, passo a expressão, com um ónus de culpa individual. Naturalmente, muito conveniente ao poder político, desde a tutela até aos conselhos de administração das instituições.
O financiamento do SNS tem sido um ponto crítico ao longo dos sucessivos governos. Os recursos humanos, cada vez mais limitados, a aquisição de equipamentos modernos e a manutenção das estruturas tem sido negligenciada ao longo dos anos. O parque hospitalar, por exemplo da cidade de Lisboa, com alguns edifícios centenários, torna-se quase caricato. Aguarda-se, neste contexto, um verdadeiro Hospital de “Todos os Santos”.
Para a manutenção do SNS e garantir que o mesmo continue a cumprir o seu papel vital, é necessária uma abordagem urgente e com vontade política real, que infelizmente não parece existir. O investimento em recursos humanos (médicos, enfermeiros, técnicos superiores e administrativos, auxiliares, assistentes operacionais, todos) com remunerações adequadas e dignas, que possam competir com o sector privado e promover o financiamento em equipamento e estruturas físicas, é a única possibilidade de impedir o colapso do SNS que infelizmente está cada vez mais próximo.
É um dever colectivo impedir a extinção de um SNS de qualidade, que ainda é um pilar essencial da Sociedade Portuguesa. Vão ter lugar eleições presidenciais dentro de um ano e fazemos já um desafio a todos os (eventuais) candidatos: a primeira posição a tomar diante da sociedade é se posicionarem pela defesa e reforço do SNS com propostas concretas no sentido no que acima expusemos. Assim todos saberemos ao que vamos no momento de votar. Outra maneira de ‘votar’ é apoiar as diversas lutas que diversos profissionais de saúde têm correcta e justificadamente empreendido. Na luta também estamos a defender a saúde de todos, principalmente dos mais desfavorecidos.
Rui Marques de Carvalho
Médico-Especialista
Consultor em Obstétricia e Ginecologia
Demissionário do SNS em 2023