As causas da crise no SNS

Todos os anos, sobretudo durante o Verão e também no período de Natal, somos confrontados com notícias relativas ao encerramento, parcial ou total, de serviços de urgência que obrigam os utentes a deslocações morosas com todos os riscos que isso comporta para a saúde dos mesmos. O caso mais mediático tem sido o das urgências de Obstetrícia mas os problemas não se esgotam na Obstetrícia. As urgências de pediatria ou de psiquiatria, por exemplo, estão em situação semelhante ou pior ainda que ultimamente se tenha falado menos sobre essas duas especialidades. Este problema das urgências de que tanto se fala não é de agora, só que agora a situação piorou.

É hoje indiscutível que o grande problema do Serviço Nacional de Saúde tem a ver com a retenção dos médicos. Está longe, contudo, de ser o único problema. Continua a haver carências graves ao nível das condições materiais apesar de um investimento significativo ao nível dos edifícios, nas últimas décadas. Essas carências refletem-se também, por exemplo, na falta de viaturas para a realização de serviços externos em muitas unidades ou no facto de muitos dos computadores ainda em serviço no SNS estarem obsoletos. Há também uma falta muito significativa de outros profissionais como sejam os assistentes técnicos, assistentes sociais, psicólogos e higienistas orais, entre outros. Estes profissionais são cruciais. Por exemplo, se não houver assistentes técnicos, a realização de consultas fica comprometida.

Mas o calcanhar de Aquiles do SNS tem, sem dúvida, a ver com a sua incapacidade de atrair e, posteriormente, reter os médicos. Cada vez mais, os concursos para recém-especialistas ficam com vagas por preencher em percentagens cada vez maiores e essa é, hoje em dia, uma situação transversal a várias especialidades. A situação abrange todo o país, apesar de ser mais grave no Sul do que no Norte.

A verdade é que o serviço público não é suficientemente atrativo por isso os médicos fogem para o setor privado, para o estrangeiro ou, se tiverem condições para isso, para a reforma. A consequência da fuga dos médicos é que o serviço se vai degradando. Há que dizer que o problema não tem a ver com o número total de médicos que existe em Portugal, que até é superior à média da OCDE, pelo que não adianta nada formar mais médicos, como o primeiro ministro propôs esta semana. O problema é que os médicos não querem ir para o setor público. Acresce que formar mais médicos só vai aumentar o já considerável contingente de médicos sem especialidade pois não há vagas de formação específica para todos. E com a fuga de médicos, haverá cada vez menos médicos formadores, o que impossibilita a abertura de mais vagas para a formação específica.

Esta situação de falta de atratividade do serviço público decorre de vários fatores: das carências materiais e de outros profissionais há pouco referidas; da burocratização da atividade e da falta de qualidade de grande parte das chefias intermédias da Administração Pública, entre outros. Mas há um fator que é essencial e que tem a ver com os baixos salários praticados no setor público e também no facto de atualmente não ser compensador, em termos remuneratórios, fazer horas extraordinárias. Em Portugal, os salários dos médicos (já para não falar dos outros profissionais) sempre foram baixos por isso os médicos recorriam às horas extraordinárias para “compor” o salário. Quem queria, fazia um grande número de horas extra e ganhava uma boa quantia de dinheiro embora, claro, isso lhe saísse do pelo. Nem todos os médicos queriam fazer muitas horas mas havia, de facto, um número significativo que fazia muitas horas e assim o sistema ia-se mantendo, à custa dessas horas. Pode até dizer-se que, em certos casos, havia um abuso de horas extra.

Quando a troika chegou a Portugal, em 2011, quis acabar com esses abusos e impôs um corte muito significativo no pagamento das horas extra através de uma série de mecanismos. Embora alguns desses cortes tenham, entretanto, sido revertidos, outros não foram. Por exemplo, as horas extra passaram a descontar para a segurança social, o que antes não acontecia, o que, só por si, implica um corte de 11% do seu valor bruto. Por outro lado, as horas extra passaram a somar ao valor do salário e o total desconta para taxas de IRS que aumentaram brutalmente. Ou seja, neste momento, não compensa fazer horas extra porque o que se ganha a mais é “comido” pelos descontos. Se a isto juntarmos que a nova geração de médicos não tem a mesma disponibilidade para fazer horas extra porque não está na disposição de abdicar da sua vida social e pessoal, como o faziam os médicos mais velhos, e que a falta de pessoal agrava a carga de trabalho para os que ficam, facilmente se percebe como o problema tem forte tendência para se agravar. Em desespero de causa, o governo apresentou um novo esquema de pagamento de horas extra que aumenta o valor pago conforme se fazem mais horas, mas isso é apenas um paliativo. As pessoas perguntam: para que é que eu vou perder noites e fins de semana a fazer horas extra se depois o estado me fica com grande parte do dinheiro?

A questão de fundo é que desde que a ideologia neoliberal estabeleceu a sua hegemonia nos países ocidentais, a partir dos governos de Reagan nos EUA e Tatcher no Reino Unido no começo da década de 1980, sob a orientação do FMI e do Banco Mundial, houve uma orientação estratégica dos sucessivos governos no sentido de enfraquecer os serviços públicos de saúde e de educação. O objetivo é o de criar nesses setores oportunidades de negócio para o setor privado. Claro que houve países onde se avançou mais nessa direção e outros onde se avançou menos. Em Portugal, há também partidos, como a Iniciativa Liberal, que defendem mais abertamente essa via de privatização subsidiada pelo estado enquanto outros partidos, como o PS, aparentam ser mais recatados nessa via mas, no fundo, tudo vai dar ao mesmo.

Para quem tenha dúvidas, basta observar a expansão do setor privado da saúde em Portugal desde o começo do século.

O resultado desta situação é que caminhamos rapidamente para um sistema de saúde a duas velocidades: quem tem dinheiro, recorre aos privados (CUF, Lusíadas, Luz, etc..), quem não tem dinheiro tem de recorrer a um serviço público cada vez mais degradado.

CK

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