O Serviço Nacional de Saúde (SNS) é um tema fundamental e relevante para a sociedade portuguesa. Neste texto, abordaremos a importância do SNS, seus dados de evolução, investimentos, peso na saúde financeira dos cidadãos em Portugal, bem como sua abrangência em comparação com outros sistemas de saúde na Europa. Analisaremos as políticas propostas por diferentes partidos políticos, tanto da direita como da esquerda, e também discutiremos o papel do investimento público em soluções privadas. Por fim, exploraremos o que poderia ser uma política verdadeiramente de esquerda para o SNS, bem como sua articulação com outras políticas nos setores sociais e laborais.
1. A importância do SNS
O SNS é um pilar fundamental para o bem-estar e a qualidade de vida dos cidadãos no nosso país. Desde sua criação, em 1979, tem sido responsável por garantir o acesso à saúde a todos os residentes em Portugal, independentemente de sua condição financeira. Através do SNS, os cidadãos têm acesso a serviços médicos, hospitais, centros de saúde, medicamentos e outros cuidados de saúde essenciais, contribuindo para aumentar a esperança média de vida e melhorar os indicadores de saúde no país.
No entanto, o sistema enfrenta desafios significativos, como a escassez de médicos e o subfinanciamento crônico. Alguns profissionais de saúde referem que neste momento o SNS já não existe.
2. A saúde em Portugal
Os cidadãos no nosso país não estão de boa saúde. De acordo com dados estatísticos sobre o perfil do país em termos de saúde, Portugal continua a ter um índice de mortalidade abaixo da UE, com uma evolução incrível ao nível da mortalidade infantil e melhoria das condições de saúde e de vida geral da população após o 25 de abril de 1974. Contudo, de acordo com a mesma fonte, em Portugal o peso das doenças não transmissíveis é elevado, sendo que as doenças cardiovasculares e o cancro são as principais causas de morte. De facto, cerca de um terço de todas as mortes registadas em 2019 podem ser atribuídas a fatores de risco comportamentais. O excesso de peso e a obesidade constituem um problema de saúde pública cada vez maior nos adultos e jovens.
A população de Portugal é dos que dentro da UE avalia menos positivamente o seu estado de saúde, quer na avaliação da sua saúde, onde é o 3.º pais com menos avaliações positivas sobre o estado subjetivo da sua saúde, quer na referência a uma doença crónica ou problema de saúde prolongado, com proporções acima dos 40%, uma das mais elevadas na UE. Em 2021, mais de um terço da população com 16 ou mais anos (34,9%) indicava sentir-se limitado na realização de atividades consideradas habituais para a generalidade das pessoas devido a problemas de saúde – destes, 25,3% referiam sentir-se limitados, mas não severamente, enquanto 9,6% referiam limitação severa. Esta estatística, coloca Portugal no 7.º lugar dos países da UE-27 com pessoas com limitações resultantes do estado de saúde.
3. Que serviço temos para a população? A radiografia dos serviços de saúde em Portugal
Analisemos agora alguns dados que permitem perceber que, para além das dificuldades económicas dos cidadãos, os serviços de saúde que recebem podem estar na origem da degradação da saúde e sua perceção por parte dos utentes.
Em 2020, existiam em Portugal 241 hospitais. Os hospitais existentes em 2020 repartiam-se em 128 hospitais privados (mais 26 do que em 2010), 110 hospitais públicos e 3 hospitais em parceria público-privada. Os hospitais públicos englobavam 105 hospitais de acesso universal e 5 hospitais militares ou prisionais. Em 2020, os hospitais privados e os hospitais públicos representavam, respetivamente, 53,1% e 45,6% do total de hospitais, enquanto a proporção de hospitais em parceria público-privada era de 1,2%.
A predominância dos hospitais privados em 2020 era abrangente a todo o território: no Continente, 116 hospitais privados e 107 hospitais de acesso universal (104 públicos e 3 em parceria público-privada); na Região Autónoma dos Açores, existiam 5 hospitais privados e 3 públicos; e na Região Autónoma da Madeira, 7 hospitais privados e 3 públicos.
4. Atividade assistencial
Em Portugal, assistimos a uma atividade assistencial cada vez mais deficitária. No final de 2022 o SNS contava com mais de 10,5 milhões de utentes inscritos, dos quais 65,9% se encontravam inscritos em unidades de saúde familiar. 14,1% dos utentes não tinham médico de família. Com efeito, a trajetória ascendente do número de utentes sem médico de família iniciada em 2019 não foi interrompida, observando-se um crescimento superior a 30% nos últimos dois anos. A região de saúde de Lisboa e Vale do Tejo continua a ser recordista neste cenário representando 69.1% do total de utentes sem médico de família. Este aspeto é central, na medida em que os médicos de família têm um importante peso na saúde geral, pois centram em si a maior parte dos encaminhamentos, processos de baixa médica e ligação da saúde com serviços de solidariedade social, encaminhamentos para hospitais para consultas da especialidade.
Podemos dizer sem paternalismos, que este aspeto é sintomático da orfandade que os cidadãos sentem com os seus serviços de saúde públicos. Para ter acesso a consultas de proximidade, são muitos os que se levantam de madrugada, vencem filas à chuva e ao vento e gastam dias de trabalho, dinheiro em transportes e sofrem em primeira mão com a ineficiência do serviço público de saúde.
Não é de estranhar, por isso, que as consultas realizadas nos cuidados primários diminuíram face a 2021 observando-se uma redução de 1,5 milhões no número de consultas médicas, assim como uma redução no volume de consultas de enfermagem, contrariando as subidas registadas nos dois anos anteriores.
5. Listas de espera, que já eram compridas, estão a aumentar
Como resultados dos problemas com os serviços de cuidados primários, temos uma procura intensa pelos serviços de urgência hospitalares que sobrecarregam os hospitais e diminuem a qualidade do atendimento. Para além disso, uma pessoa com poucos recursos acaba por adiar a sua ida aos serviços, sendo que, quando vão, o fazem em condições mais graves e com problemas mais sérios.
De facto, em 2019, 3,5 % das pessoas no quintil de rendimentos mais baixo comunicaram ter necessidades médicas não satisfeitas devido ao custo, à distância ou aos tempos de espera, em comparação com apenas 0,2 % no quintil de rendimentos mais alto, de acordo com o inquérito da União Europeia sobre a saúde em Portugal. A maioria destas necessidades não satisfeitas entre as pessoas no quintil de rendimentos mais baixo diziam respeito a razões financeiras. A percentagem de pessoas que comunicaram ter necessidades de cuidados dentários não satisfeitas é ainda maior, sendo que, em 2019, mais de 20 % das pessoas no quintil de rendimentos mais baixo comunicaram ter necessidades não satisfeitas, em comparação com 1,8 % das pessoas no quintil de rendimentos mais alto.
Os serviços de urgência e de internamento continuaram a apresentar diversos constrangimentos já patentes no período pré-pandemia. Nos episódios de urgência, o cumprimento dos tempos de triagem, continuou a cumprir-se em apenas 61% dos casos, à semelhança de 2021.A capacidade de resposta da atividade cirúrgica deteriorou-se em 2022. Apesar do maior volume de operações realizadas em 2022 (673 mil), que havia alcançado valores pré-pandémicos já em 2021 (628 mil), o número de utentes em Lista de Inscritos para Cirurgia (LIC) continuou a aumentar (para 235 mil, face a 210 mil utentes em 2021).
Neste contexto, observou-se uma diminuição da percentagem de inscritos a aguardar dentro dos tempos máximos de resposta garantidos (TMRG) (69,4%, face a 70,6% em 2021). Em sentido contrário, com um desempenho favorável face a 2021, destaca-se a melhoria do tempo médio de espera dos operados (2,9 meses, face a 3,2 meses em 2021).
O número de utentes em lista de espera para a primeira consulta voltou a aumentar em 2022. O maior número de primeiras consultas hospitalares realizadas em 2022 (+138 mil que em 2021) não foi suficiente para responder ao acréscimo de pedidos de primeira consulta hospitalar, o que se refletiu no aumento da lista de espera nesse ano. Os pedidos de primeiras consultas não concluídos (583 mil) registaram um aumento de 11,1% face a 2021 (+58 mil utentes em espera). Nas áreas assistenciais em que é possível medir os tempos máximos de resposta garantidos (TMRG), nomeadamente as Consultas a Tempo e Horas (CTH) e o Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC), ambos fazendo parte no Sistema Integrado de Gestão do Acesso ao SNS, também o grau de cumprimento se deteriorou. Em concreto, 68,4% das consultas CTH foram realizadas dentro dos TMRG (face a 77,3% em 2021).
Observou-se, contudo um acréscimo contínuo da actividade nas diversas áreas assistenciais em 2022. Concretamente, o número de consultas médicas hospitalares e de intervenções cirúrgicas programadas realizadas em 2022 ultrapassou os valores de 2019 e de 2021. Já o número de cirurgias urgentes realizadas foi inferior ao de 2019. O maior número de consultas médicas hospitalares e cirurgias programadas não foi suficiente para evitar a diminuição da capacidade de resposta do SNS nestas áreas, uma vez que o número de utentes em lista de espera para a primeira consulta voltou a aumentar em 2022, bem como o número de utentes em Lista de Inscritos para Cirurgia.
No âmbito da Rede Nacional Cuidados Continuados Integrados, apesar do maior número de assistidos em 2022, isto não foi suficiente para responder ao aumento do número de utentes referenciados nesse ano. Apesar de terem sido assistidos mais 2060 utentes através desta Rede face ao ano anterior, o número de utentes em lista de espera foi superior ao registado no ano precedente, situando-se em 1562 (um aumento de 19% face a 2021).
Ou seja, as pessoas são hoje mais demoradamente atendidas, com piores recursos e de pior forma.
Proximamente a parte II deste retrato, esteja atento.